Bikes ao mar!
APÓS ANOS DE LUTA, ATIVISTAS DE SÃO PAULO CONSEGUEM ORGANIZAR EVENTO HISTÓRICO COM 40 MIL CICLISTAS E A PROMESSA DE UMA ROTA SEGURA E DEFINITIVA ATÉ SANTOS
UM ESFORÇO DE GUERRA para garantir uma festa pacífica de bicicletas. Daria para resumir assim a epopeia de centenas de pessoas que trabalharam de forma incansável ao longo de muitos meses para que ciclistas pudessem, enfim, ter um dia tranquilo para pedalar da cidade de São Paulo até Santos. O trajeto, de 55 km, é velho conhecido de muita gente apaixonada por bike. Porém mesmo os mais entusiastas se espantaram com o resultado: no dia 2 de dezembro de 2018, quase 40 mil ciclistas se reuniram para pedalar até a costa do estado, em um evento batizado de Pedal Anchieta. Foi, muito provavelmente, a maior celebração ciclística da história do Brasil (e da América Latina) e que atraiu pessoas de todos os perfis. Tornou-se, também, uma prova inesquecível do quanto se pode conquistar quando há de fato um trabalho cooperativo entre sociedade e poder público.
O melhor é que, mais que um dia feliz para se lembrar, o legado direto que fica é de três enormes projetos para 2019: a repetição do evento nos mesmos moldes, com melhorias; a abertura permanente da Rota Márcia Prado, que permitirá a ciclistas descerem com segurança de São Paulo até a praia pela Estrada de Manutenção da Rodovia dos Imigrantes, de forma legal e com pontos de apoio; e a assinatura de um decreto que cria o Plano Cicloviário do Estado de São Paulo, que prevê, entre outros pontos, a implementação de infraestrutura viária para o trânsito de veículos de propulsão humana nas estradas de rodagem estaduais, com implantação de ciclovias ou ciclofaixas e a integração com o sistema intermunicipal de transportes.
A demanda por esse tipo de iniciativa é enorme e de longa data. “No Pedal Anchieta, a contagem da Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) e da Polícia Rodoviária foi de 40 mil participantes. Sabemos pelas fichas de inscrição que foram 15 mil da capital e outros 10 mil da Grande São Paulo e o restante de outros estados. Veio gente até de Belém do Pará e de São Luís do Maranhão”, diz Aparecido Inácio Ferrari de Medeiros, ciclista, advogado que preside a comissão de mobilidade urbana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) e membro do Ciclo Comitê Paulista, que organizou as conversas entre os órgãos públicos e a sociedade civil envolvidos no evento. Inácio não esconde a satisfação: “Encerramos o acesso aos formulários na véspera, com 33.442 inscritos, e tivemos ainda mais 7.000 acessos ao formulário de última hora. No dia, o corredor com milhares de ciclistas unidos para a descida teve 12 km contínuos de bikes, formando uma massa compacta gigantesca descendo ao litoral”, comemora.
O resultado contrasta enormemente com a Descida a Santos de dezembro de 2017. Naquela vez, cerca de
3.000 ciclistas foram barrados com violência pela Polícia Militar, que usou jatos d’água e bombas de gás lacrimogêneo para cumprir uma decisão do juiz Celso Lourenço Morgado, da Vara de São Bernardo do Campo, que alegou que o evento “ameaçaria a circulação de veículos no sistema Anchieta/imigrantes”.
Essa descida ao mar existe informalmente desde os anos 2000, saindo do Km 12,6 da Rodovia Anchieta, em São Paulo, e seguindo pela Estrada de Manutenção da Imigrantes, chegando até Cubatão. Apesar de não ser uma rota oficial, sempre foi repetida por pequenos grupos durante o ano inteiro.
Tentando formalizar a liberação do caminho, cicloativistas começaram a organizar uma grande descida anual, que a cada edição teve mais adesões. A rota ganhou o nome de Márcia Prado em homenagem à cicloativista Márcia Regina Duarte Prado, uma das signatárias do Manifesto dos Invisíveis, documento que pedia mais segurança para todos, especialmente ciclistas, nas vias urbanas. Márcia morreu em 2009 ao ser atropelada por um ônibus, tragédia que causou grande comoção e acabou se tornando um marco do cicloativismo paulistano. Além de seu nome batizar a rota no ano seguinte, a ghost bike que relembra sua morte permanece na avenida Paulista.
Esse salto de acontecimentos de 2017 para 2018 foi fruto de muita labuta. “Foram 41 reuniões, no diálogo, na conversa, sem enfrentamentos, sem necessidade de ir para o tudo ou nada”, conta Inácio. Mas o que mudou exatamente, sendo que a demanda se arrastava há anos, com pilhas de relatórios e estudos de viabilidade da rota e uma massa de apoiadores? “Vontade política: o Palácio dos Bandeirantes falou ‘vamos fazer’”, conta o advogado. “Contamos com o envolvimento do Estado, das secretarias, das prefeituras municipais, principalmente de São Bernardo do Campo, Cubatão e Santos, que ofereceram diversos serviços. Desenvolvemos em conjunto um ótimo plano médico, incluindo cerca de dez ambulâncias, além de postos de abastecimento com água da Sabesp, apoio mecânico e banheiros químicos. E ainda houve a participação da Ecovias, Artesp e Polícia Militar, com batalhões em todos os quilômetros, Polícia Civil e Guardas Municipais. Tudo com a autorização
O melhor é que, além de um dia feliz para recordar, o pedal deixará legados diretos, como um plano cicloviário estadual, a Rota Márcia Prado e a repetição do evento em 2019.
do Departamento de Estradas e Rodagem (DER)”, diz Eduardo “Du” Gomes, um dos membros do Ciclo Comitê.
Para dimensionar o público de forma mais concreta, foi criado um site para inscrição obrigatória e totalmente gratuita, que também serviu para transmitir informações e orientações de segurança aos participantes, assim como organizar a logística, que envolveu CET, empresas de ônibus intermunicipais e fretados e o metrô de São Paulo (a volta para a capital não podia ser de bike, mas por meio de ônibus ou outros transportes motorizados). Planejamento mais que necessário: só em Santos, de acordo com Inácio, houve um aumento de 252% a mais de venda de passagens por causa do pedal. Embarcaram 9.000 ciclistas – vendeu-se mais passagem nesse dia do que no Réveillon.
Cerca de 120 voluntários trabalharam no dia do evento, divididos entre um grupo que observava as câmeras do Centro de Controle de Operações da Ecovias e outras dezenas de voluntários com colete laranja ao longo do trajeto. Além do policiamento normal, todas as rotas de fuga contavam com viatura para casos de emergência, e a rede de prontossocorros das cidades do trajeto estavam de sobreaviso. Os acidentes considerados de maior gravidade (17 casos, incluindo uma morte por acidente) representaram 0,03% do total de ciclistas participantes e foram prontamente atendidos pelas equipes de socorro e encaminhados a hospitais da região. Cerca de 800 atendimentos mecânicos gratuitos foram feitos, e cinco caminhõesvassoura deram assistência para 60 ciclistas que apresentaram problemas mecânicos irrecuperáveis ou dificuldades físicas para concluir o percurso.
Graças a toda essa movimentação para viabilizar o Pedal Anchieta, o Ciclo Comitê acabou por trazer outros assuntos à tona. “Desde dezembro de 2017, montamos um grupo de advogados da OAB para discutir mobilidade urbana. Começamos a pesquisar e descobrimos uma lei arquivada em 1998 que previa um plano cicloviário estadual. Se essa lei tivesse sido regulamentada no prazo previsto, o conflito na descida de 2017 jamais teria acontecido”, diz Inácio. “Essa lei garante o direito de ir e vir do ciclista, a obrigação de construir ciclovias com novas obras rodoviárias – em túneis, por exemplo. Ela foi arquivada de propósito. Fizemos uma proposta de decreto de regulamentação, que foi assinada pelo governador”, conta o advogado.
O decreto 63.881 que regulamenta o plano cicloviário prevê rotas cicloviárias em todo o estado, a construção de ciclovias em novas estradas e rodovias e aponta a obrigação das concessionárias de fazer verificação das demandas dos ciclistas e as adaptações para que eles possam circular em segurança. Além disso, prevê a criação do Portal do Cicloturismo do Estado de São Paulo, organizando o mapeamento de como o cicloturista pode fazer rotas e caminhos seguros, fora das grandes rodovias. “As pessoas poderão entrar na briga e colaborar na construção dessa rede”, incentiva o cicloativista.
A depender de conversas com o governo, também deve sair em 2019 a abertura oficial da Rota Márcia Prado, que já teve a verba de R$ 5 milhões liberada. “O projeto da rota está elaborado e em tramitação na Artesp, com contrato assinado”, diz Du Gomes. “Nossa ideia é que a construção da infraestrutura seja iniciada nos primeiros meses de 2019.”
As obras da Rota Márcia Prado vão incluir a construção de uma ciclovia separada da estrada, com proteção total do ciclista. Haverá ainda uma passarela para que a bike consiga atravessar de um lado para o outro da Interligação da Imigrantes com a Anchieta sem ter de dividir espaço com os veículos. Segundo a Ecovias afirmou nas reuniões, as obras têm duração prevista de seis meses. Pontos críticos como a passagem por Cubatão, onde relatos de assaltos a ciclistas são frequentes, também devem receber atenção.
“A secretaria de turismo de Cubatão está envolvendo a comunidade, é do interesse de todos trazer turismo para a região. A própria Ecovias está melhorando a estrada de manutenção e dando todo apoio. Já tem decreto assinado, contrato assinado, testemunhas, verba liberada. É uma decisão difícil de ser revertida”, acredita Inácio. “Nós saímos da invisibilidade. Não há como um governante ignorar 40 mil pessoas pedalando até a praia. O manifesto dos invisíveis se concretizou.”
A rota Márcia Prado já teve verba liberada e o projeto já está em tramitação na Agência de Transporte do Estado de São Paulo.