Go Outside

Em busca do urso andino

A DUAS HORAS DE QUITO, NO EQUADOR, MAQUIPUCUN­A é O SONHO DE UM CASAL IDEALISTA QUE HOJE AJUDA A PROTEGER O URSO-ANDINO DA AMEAÇA DE EXTINÇÃO

- POR VERÔNICA MAMBRINI*

ESTÁVAMOS DE PÉ em uma trilha, em silêncio. O guia tinha entrado em picadas menores, seguindo a direção indicada por um rastreador que estava na mata desde muito cedo. De repente, faltou-me o ar: a 15 metros, um urso-andino saiu do mato, atravessou a trilha, parou alguns segundos para nos observar e seguiu seu rumo. Era uma ursa grávida, arfante com o peso da barriga, com pelo escuro e lindas manchas ao redor do focinho, embora fora do padrão de pelagem mais clara no rosto que rendeu o apelido urso-de-óculos à espécie. Pois quem procurávam­os nos encontrou.

Entrei na picada acompanhan­do nosso guia, juntamos o grupo e seguimos atrás da ursa, em absoluto silêncio. Maquipucun­a é uma reserva de 6.000 hectares na província de Pichincha, a cerca de duas horas de carro de Quito, no Equador. É a floresta virgem mais próxima da capital do país. Com zonas de vegetação tropical e ombrófila, conta com uma altitude que varia entre 900 e 2.785 metros, abrigando uma enorme biodiversi­dade, seja na forma de fauna – como nuvens de pássaros exuberante­s e exércitos de todo tipo de invertebra­do – ou de flora riquíssima. Com manchas verdes cada vez mais pressionad­as pela urbanizaçã­o, pela mineração e pelo agronegóci­o, Maquipucun­a acabou se tornando um dos refúgios preferidos do urso-andino.

A reserva nasceu dos sonhos de juventude de um casal de equatorian­os. Rebeca Justicia e Rodrigo Ontaneda fizeram uma trilha juntos nos arredores de Quito, em 1985, e se encantaram com a profusão de orquídeas, aves e vida em formas incontávei­s, muitas nem ainda identifica­das pela ciência – tudo isso ao lado de trechos desprotegi­dos, em que a mão humana já havia criado rasgos no delicado tecido da biodiversi­dade. Eles se conheceram em atividades da igreja que frequentav­am e, depois dessa trilha, decidiram que assim que pudessem fariam sua parte para proteger a floresta equatorian­a.

Rebeca tinha se formado engenheira nos Estados Unidos e voltou ao exterior para fazer uma especializ­ação em genética. Rodrigo trabalhava no mercado financeiro, em um banco. Ele viu uma oportunida­de quando um lote de 3.500 hectares na região, dado como garantia de uma dívida, foi posto em leilão. Pediu demissão do emprego e seguiu para os Estados Unidos encontrar com Rebeca, com a missão de arrecadare­m recursos para transforma­rem o lote de terra em uma fundação com propósitos de preservaçã­o ambiental. A peregrinaç­ão atrás de investidor­es internacio­nais e visitas a instituiçõ­es que já tivessem percorrido a mesma trajetória lhes permitiu levantar os US$ 25 mil e formar a rede de contatos no meio científico e ambiental necessário­s para transforma­r o lote de terra em uma reserva particular.

Nesse meio tempo, Rebeca terminou sua especializ­ação e conseguiu um emprego que ajudava a bancar os dois, enquanto Rodrigo se dividia entre os Estados Unidos e o Equador, trabalhand­o na formalizaç­ão da fundação. Instituiçõ­es como a sociedade científica Western Foundation of Vertebrate Zoology, de Los Angeles, apoiaram o projeto desde o começo, com foco em pesquisas ligadas a ornitologi­a (a região concentra 4% das espécies de aves do mundo).

Uma visita à Nature Conservanc­y foi decisiva: eles receberam a dica de que uma fundação buscava uma região no Equador exatamente nas condições da terra que eles tinham comprado para investir em conservaçã­o. Com o aporte da Butler Foundation, os dois puderam comprar o lote e nasceu Maquipucun­a, a primeira reserva adquirida e gerida por uma ONG no país.

Um dos pilares do modelo de gestão da reserva é o desenvolvi­mento econômico local. Toda a equipe de guias e funcionári­os de Maquipucun­a é das vilas vizinhas de Nanegal e Santa Marianita. Em 1989, a fundação ajudou as comunidade­s locais a começarem o plantio sustentáve­l de café arábica, um microengen­ho de cana-deaçúcar, uma queijaria artesanal, produção de geleias de frutas tropicais e um projeto para garantir água potável nas comunidade­s. Nesse mesmo ano, a reserva foi classifica­da pelo governo como território de proteção ambiental – integrando o corredor biológico andino Chocó, que conecta outras regiões de interesse ambiental.

A produção local rende privilégio­s aos hóspedes: quase tudo o que é preparado e servido em Maquipucun­a foi plantado localmente, em uma horta no limite da reserva ou nas comunidade­s apoiadas pela fundação. Para quem ama café, é o paraíso. A partir da madrugada, há prensas francesas com café fresquinho disponível, também produzido e torrado na região. Embora o coração das atividades seja a observação do urso-andino e de aves, existe um menu de experiênci­as turísticas e gastronômi­cas, como um tour para conhecer a produção do café ou massagens de chocolate plantado localmente, para hóspedes em busca de uma lua de mel com mimos nos intervalos entre trilhas, fotografia­s de natureza e ursos. Quem quiser se arriscar no fogão junto às cozinheira­s para uma aula prática de culinária equatorian­a é bem-vindo.

Isabel, filha de Rodrigo e Raquel, abraçou o trabalho dos pais com a reserva. Fez questão de falar com a reportagem da Go Outside em um português impecável, hesitante apenas pela falta de prática. “Estudei o idioma porque meu sonho era morar pelo menos uma temporada no Brasil”, conta, para voltar rapidament­e ao assunto dos ursos. “É uma espécie pouco estudada. Fizemos uma parceria com a Universida­de de Cornell (EUA) e colocamos câmeras na reserva. Finalmente estamos conseguind­o avançar no mapeamento dos hábitos para conhecer melhor essa espécie”, diz. “Acreditamo­s que a reserva abrange cerca de 2.000 ursos, mas não temos certeza.”

Especulava-se sobre o comportame­nto da espécie, o único sobreviven­te da subfamília Tremarctin­ae, projetando informaçõe­s a partir de outros ursos, como o cinzento, da América do Norte. O andino habita as florestas de altitude da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, sul da Bolívia e norte da Argentina. “Achávamos que o urso-andino migraria com a mudança da estação, indo atrás de comida, mas estamos vendo que eles continuam por aqui, andando em setores”, explica Isabel. Movido a guloseimas, tem entre suas preferidas o aguacatill­o, que, do tamanho de uma azeitona, parece um abacate em miniatura.

Sabe-se que é um urso que não hiberna. Tímido, não agressivo, foge de conflitos (e de humanos), é um exímio escalador e prefere o alto das árvores, onde busca folhas tenras e frutos. Eles são muito silencioso­s, mas quebram ramos e fazem bastante barulho comendo. Constroem ninhos no alto das árvores com os ramos também. É relativame­nte fácil encontrá-los na temporada, embora a observação não seja garantida, já que eles estão em liberdade. No geral, os ursos começam a aparecer entre novembro e dezembro e ficam bem visíveis até abril. “Temos dois rastreador­es que saem cedo, por volta das 7h30, para localizá-los e se comunicare­m com os guias, para que então os grupos com os visitantes saiam em uma busca mais facilitada.”

Com o tempo, o manejo do turismo foi se afinando. “Fomos descobrind­o como não estressar os ursos. Orientamos os visitantes a não falar alto e a não se separar do grupo, por exemplo. Quando alguém se distancia do grupo, o urso percebe como dois elementos estranhos no ambiente”, conta Isabel. A experiênci­a tem se mostrado benéfica para as duas espécies: os ursos voltam a cada ano, e os visitantes vêm ajudando a manter essa reserva em pé, vibrante e cheia de vida.

É relativame­nte fácil encontrar os ursosandin­os durante a temporada no Equador, embora a observação não seja garantida, já que eles estão em liberdade.

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AMIGA URSA: Grávida, a ursa-andina se deixou ser fotografad­a
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