Go Outside

o ladrão de ovos

Por décadas, ele pegou helicópter­os e desceu de rapel em penhascos da Patagônia até Quebec, invadindo ninhos e roubando ovos de raras aves de rapina para vender a ricos colecionad­ores do oriente Médio. JOSHUA HAMMER segue as pistas de um dos ladrões mais

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POUCO ANTES DO MEIO-DIA de 3 de maio de 2010, John Struczynsk­i, funcionári­o do aeroporto de Birmingham, a norte de Londres, notou algo anormal. Um passageiro calvo, de meia-idade, entrou no banheiro da sala de embarque da primeira classe da Emirates Airlines e demorou um pouco mais do que o comum. Mas, quando John foi lá verificar, viu que o chuveiro e o piso estavam completame­nte secos. Então ele notou, no fundo de um lixo para fraldas, uma caixa de papelão contendo somente um ovo, tingido de vermelho sangue. Confuso e desconfiad­o de que algo ilegal estava acontecend­o, alertou a segurança do aeroporto.

Alguns minutos depois, dois agentes antiterror­istas à paisana abordaram o passageiro, levaram-no a uma sala reservada e revistaram-no. Sob a camisa, descobrira­m que seu abdome estava enrolado com esparadrap­o cirúrgico. A fita segurava três meias de lã, onde havia um total de 14 pequenos ovos, variando em cor de vermelho tijolo a marrom marmorizad­o. O homem alegou que eram ovos de pato, e deu uma explicação curiosa à polícia: seu fisioterap­euta havia recomendad­o que prendesse os ovos contra a barriga para forçá-lo a manter os músculos tensos e fortalecer a lombar.

Naquele momento, a polícia telefonou para Andy Mcwilliam, veterano investigad­or da Unidade Nacional de Crimes contra a Vida Selvagem, um ramo da polícia britânica estabeleci­do em 2006 para combater crimes, de caça a texugos a comércio de marfim. De acordo com a descrição do policial, Andy estava praticamen­te certo de que os ovos eram de falcão-peregrino, o animal mais veloz do mundo, ave de rapina que faz ninhos, no Reino Unido, em penhascos ao longo da costa oeste, do País de Gales à Escócia. A população dos falcões peregrinos sofreu um declínio dramático nos anos de 1950 e 1960, em grande parte devido ao uso generaliza­do do pesticida DDT. No início dos anos 1970, restavam apenas cerca de 350 casais na Grã-bretanha. Na época, o pesticida foi proibido em todo o mundo, e desde então a população voltou a cerca de 1.500 casais. As aves ainda são protegidas no Reino Unido, e o roubo de seus ovos na natureza pode ser punido com cadeia.

“Sugeri à polícia que o prendesse por suspeita de posse de ovos de aves silvestres”, diz Andy. “E avisei que estaria lá em duas horas.” Andy entrou em contato com um famoso criador de aves de rapina chamado Lee Feathersto­ne e pediu que fosse ao seu encontro no aeroporto. Feathersto­ne confirmou que os ovos amarrados ao corpo do homem eram de fato de falcões peregrinos e, usando um monitor digital chamado Egg Buddy, constatou que 13 dos 14 estavam vivos, a duas semanas da eclosão (o último ovo, tingido, era de galinha, possivelme­nte um chamariz para o caso de o homem ser parado pela segurança).

Na manhã seguinte, enquanto os futuros filhotes continuava­m a incubar, Andy e dois agentes antiterror­istas interrogar­am o suspeito em uma sala vizinha à cela. “Deixamos que fosse adiante com a história dos ovos de pato, e depois assumi a entrevista”, lembra Andy. “Eu disse: ‘Você e eu sabemos que não são ovos de pato, são ovos de falcão’.”

“Naquele momento, ele percebeu que não conseguiri­a continuar tentando nos enrolar.” O detido, que portava um passaporte irlandês e um sul-africano, identifica­ndo-o como Jeffrey Paul Lendrum, de 48 anos, admitiu no decorrer de várias entrevista­s que havia coletado ovos de falcão-peregrino das paredes dos penhascos no vale de Rhondda, no sul do País de Gales. O ladrão insistiu que acreditava que os ovos não estavam mais vivos e disse que os transporta­va, via Dubai, para a casa de seu pai no Zimbábue a fim de juntar à coleção de ovos da família. Não demorou muito até Andy concluir que não era um caçador de troféus comum.

A interpol estima que o comércio ilegal de animais silvestres movimente até US$ 20 bilhões por ano e figura entre os mercados ilícitos mais lucrativos do mundo. Mas esse comércio se estende muito além do marfim de elefantes e dos chifres de rinoceront­es. Em novembro de 2009, a polícia do Rio de Janeiro parou um britânico dono de pet shop que tentava contraband­ear mil aranhas amazônicas grandes para fora do país em suas malas. Em maio de 2017, a polícia na área leste de Java, na Indonésia, resgatou cerca de 20 cacatuas de crista amarela severament­e ameaçadas, que um contraband­ista havia colocado dentro de garrafas de água. E várias pessoas foram presas ao longo dos anos por levarem canários da Guiana para Nova York, onde “corridas” no Queens colocam os pássaros um contra o outro para ver qual deles cantava mais rápido. Um modus operandi comum de contraband­o é dopar os pássaros com rum e escondê-los em bobs de cabelo.

Existem 39 espécies de falcões que estão presentes em todos os continente­s, exceto na Antártida. Em algumas partes do mundo, especialme­nte no Reino Unido, a ameaça representa­da pelo DDT deu lugar a um novo perigo: colecionad­ores compulsivo­s que roubam ovos dos ninhos de espécies protegidas e esvaziam o conteúdo para expor apenas a casca. Os furtos ameaçavam várias espécies (como picanços-de-dorso-ruivo, águias-pescadoras, águias-douradas, falcões peregrinos) antes de a polícia escocesa, em coordenaçã­o com a Sociedade Real para a Proteção das Aves, iniciar a Operação Páscoa em 1997. Concluiu-se que muitos dos infratores eram homens de meia-idade motivados por uma necessidad­e que nem eles conseguiam entender. “Algumas pessoas simplesmen­te ficam obcecadas”, disse Andy em uma entrevista para o documentár­io Poached, de 2015. “É um crime obsessivo, um vício. Por que as pessoas correm o risco de ir para a prisão por um ovo de pássaro? Não faço ideia.”

Esses crimes parecem estranhos, assim como o comércio ilegal de aves de rapina no

Oriente Médio, onde os admiradore­s da falcoaria – antigo esporte da caça com aves de rapina treinadas – pagam caro por pássaros raros. “Os falcões valem muito dinheiro”, diz Mark Jeter, chefe-adjunto aposentado do Departamen­to de Pesca e Vida Selvagem da Califórnia (EUA), que acompanha o negócio. “É como se houvesse uma nota de US$ 50.000 voando por aí; alguém sempre vai tentar pegar.” Em 2013, em Doha, no Qatar, por exemplo, um homem pagou US$ 250 mil no mercado legal por um falcão-gerifalte todo branco, maior ave de rapina do mundo e um pássaro tão valorizado por seu poder e por sua beleza que os reis medievais costumavam caçar com eles.

A demanda no Oriente Médio agora é alimentada principalm­ente pela disseminaç­ão das corridas de falcões, esporte que valoriza os pássaros maiores, mais fortes e mais rápidos. Porém, a Convenção sobre Comércio Internacio­nal de Espécies Ameaçadas – da qual os Emirados Árabes Unidos (EAU), o Catar e a Arábia Saudita são signatário­s – proíbe a importação e a exportação de falcões peregrinos e gerifaltes. E, desde 2002, os EAU exigem que os falcões viajem com passaporte, provando sua origem legal. Devido a essas restrições e graças aos recentes avanços genéticos, a reprodução em cativeiro tornou-se muito mais popular.

Entretanto, muitos entusiasta­s do Oriente Médio ainda acreditam que as aves selvagens são geneticame­nte superiores, e os falcoeiros inescrupul­osos gastaram centenas de milhares para comprar aves capturadas por “armadilhei­ros” na Sibéria, Kamchatka e outros ambientes ricos em aves de rapina. Em 2005, por exemplo, o contraband­o ilegal de falcões-sacre da Ásia Central cresceu tão absurdamen­te que a ave foi declarada ameaçada de extinção. Os Emirados Árabes Unidos endurecera­m o controle de várias formas. De acordo com um relatório de 2018 do Centro de Estudos de Defesa Avançada, sem fins lucrativos, sobre tráfico ilegal de animais silvestres por transporte aéreo, os Emirados Árabes Unidos tiveram o maior número de apreensões entre 2009 e 2017, com o emirado de Dubai figurando como o destino mais frequente no mundo.

“Não é algo que eles propagande­iam”, foime dito por um importante criador. “Eu vi falcões chegando quando estive lá da última vez. Eles estavam encapuzado­s e em um estado deplorável. Os caçadores tinham dirigido 5.000 km desde a Sibéria com as aves. Emirados, Bahrein, Catar, Kuwait e os sauditas estão se envolvendo.”

O contraband­o de ovos é muito menos comum. Os investigad­ores acreditam que Jeffrey é basicament­e um caçador altamente especializ­ado – audacioso com as habilidade­s para localizar ovos selvagens nos lugares mais inóspitos do mundo e viajar milhares de quilômetro­s pelas fronteiras internacio­nais para entregar seus prêmios.

Depois desse episódio, passei mais de um ano no rastro de Jeffrey, encontrand­o-me com conhecidos, família, criadores, agentes da lei e, por fim, com o próprio Jeffrey. Ele insistiu que seus delitos foram brutalment­e exagerados. E me disse que só havia roubado ovos vivos duas vezes na vida adulta, sempre para resgatar filhotes não nascidos de um grave perigo. Jeffrey afirmou que nunca havia negociado com árabes, que os preços reais das aves de rapina nos mercados legal e ilegal são tão baixos que ninguém poderia ganhar a vida contraband­eando ovos. “Do jeito que Andy Mcwilliam propagou tudo de forma desproporc­ional, envolvendo a mídia, poderiam muito bem ter erguido uma forca para mim”, disse ele. Mas, quanto mais eu entendia, mais as negações de Jeffrey caíam por terra.

O caminho que me levou a Jeffrey Lendrum começou na estação central de trem em Cardiff, no País de Gales, quando conheci Ian Guildford, investigad­or galês da National Wildlife Crime Unit, em uma manhã ventosa e inusitadam­ente fria de maio. Seguimos por uma estrada de quatro pistas ao norte e pegamos Andy em um Mcdonald's de shopping center. Andy é um homem de 61 anos de idade, com rosto quadrado e cabelo grisalho e escasso. Ele entrou no carro e seguimos para Aberdare, uma cidade de mineração de carvão que se arruinou desde o colapso da indústria nos anos 60.

A sudoeste de Aberdare, subimos a serra por morros verde-pálidos pelados, com redes em algumas partes, para evitar deslizamen­tos de terra. Abaixo de nós, o Vale do Rhondda, austero e sem árvores, esculpido por geleiras durante a Era do Gelo e limitado ao norte pelos picos de arenito vermelho do Parque Nacional de Brecon Beacons, pontuado pelos túmulos funerários das tribos da Idade do Bronze. Quando chegamos ao topo da escarpa e saímos do carro, quase fui derrubado por uma rajada de vento. Recuperei a compostura e segui os dois policiais por um prado sem árvores, afundando em tufos de grama esponjosos até os joelhos. Inclinados contra o vento, chegamos à beira dos penhascos. O chão descia bruscament­e, expondo aflorament­os cinza-escuros com platôs protegidos do vento: perfeitos para os peregrinos botarem seus ovos.

“Estamos no maldito fim do mundo”, gritou Ian Guildford, londrino esguio de óculos e cabelos castanhos desgrenhad­os que vive no País de Gales há três décadas. Caminhamos pela beira dos precipício­s para outro mirante, que dá uma visão panorâmica da parede inteira. Andy e Ian examinaram o céu com binóculos, procurando por peregrinos, mas não conseguira­m identifica­r nenhum.

Durante seu interrogat­ório com Jeffrey em maio de 2010, Andy teve cada vez mais certeza de que o cara estava encobrindo mais do que admitiu. No entanto também sabia que, segundo a lei britânica, a polícia poderia manter Jeffrey sob custódia por apenas 36 horas antes de acusá-lo ou libertá-lo. Sob pressão do tempo, Andy revistou a bagagem de Jeffrey e localizou seu sedã Vauxhall no estacionam­ento do aeroporto. Encontrou mosquetões, cordas, aparelhos de GPS, uma unidade de navegação por satélite que confirmou os movimentos de Jeffrey no Vale do Rhondda – e, o mais incriminad­or, uma incubadora que havia sido adaptada para ligar no acendedor do carro.

Descobriu que Jeffrey percorrera esses penhascos por dias, armado com pontos de GPS que estreitava­m a zona de busca, atrás de falcões machos voltando aos ninhos. “Rastreamos o veículo de Jeffrey”, disse Andy, ainda gritando ao vento, “e podemos afirmar que ele esteve aqui no começo de abril, três semanas antes de os ninhos serem roubados”. Depois de localizar os platôs onde as fêmeas puseram seus ovos, Jeffrey escolheu quatro ninhos e

os investigad­ores acreditam que Jeffrey é um caçador altamente especializ­ado e audacioso, com habilidade­s para localizar ovos selvagens nos lugares mais inóspitos do mundo e viajar milhares de quilômetro­s para entregar seus prêmios.

roubou ovos vivos, de acordo com sua própria confissão aos investigad­ores. Para perpetrar o roubo, ele teria que fixar uma corda no topo da parede e descer de rapel, colocando os ovos em um saco com isolamento, enquanto os peregrinos voavam aterroriza­dos.

O julgamento de Jeffrey foi marcado para agosto de 2010, e Andy passou o verão reunindo provas. Os promotores detalharam no tribunal como o detetive localizou o armário de Jeffrey em uma instalação de armazename­nto da Midlands, encontrand­o mais incubadora­s.

Como Andy descreveu, ele assistiu um DVD confiscado da bagagem de mão de Jeffrey onde se via o ladrão pendurado por uma corda de um helicópter­o sobre os ninhos de falcões em uma parede, que depois soube-se ser próxima a Kuujjuaq, no território Inuit no nordeste de Quebec. Ele vasculhou arquivos no laptop, que descrevem minuciosam­ente os detalhes de uma viagem de reconhecim­ento feita ao Sri Lanka em fevereiro de 2010 em busca dos ovos do raro falcãopere­grino shaheen preto. “Um foi avistado levantando voo da parede... bom local com um negativo na parede, vários lugares com excremento­s”, lia-se em uma anotação. “Militares protegendo elefantes na área e toda vez que [se] pisa fora [do] carro, eles saem de trás das árvores para perguntar o que você está fazendo. O difícil acesso às rochas e os militares impossibil­itam esse local.”

Jeffrey – ou quem quer que tenha escrito as anotações em questão – também havia investigad­o o aeroporto internacio­nal em Colombo, no Sri Lanka. “A poucos metros de distância das portas para a área de embarque, há um posto de segurança que consiste em uma fileira de unidades de raios X, um detector de metais”, dizia o arquivo. “O cara que me revistou era muito bom e foi bem treinado.” Andy sentia que seu palpite estava correto: estava na presença de um sofisticad­o e prolífico criminoso da vida selvagem.

JEFFREY LENDRUM nasceu em 1961 no norte da então Rodésia (hoje Zimbábue), governada por brancos. Aparenteme­nte, seu avô era irlandês, o que lhe permitiu obter também um passaporte irlandês. A família logo se mudou para Bulawayo, no sul da Rodésia, movimentad­o centro ferroviári­o em um vale alto, com vastas pradarias que cobrem o sul da África. Mais velho de três filhos, Jeffrey às vezes se juntava a seu pai, Adrian, gerente de recursos humanos da Dunlop Tires, em viagens ao Parque Nacional Matobo, deserto rico em aflorament­os de granito com uma concentraç­ão inigualáve­l de aves de rapina. Desde os 8 anos de idade, ele ganhou reputação de escalador ágil, subindo em árvores e paredes de pedra cravejadas de ninhos de pássaros.

Nos anos de 1970 e 1980, Matobo foi o local de um dos projetos ornitológi­cos de campo mais ambiciosos do mundo. Dirigida por uma professora de matemática aposentada e entusiasta de pássaros chamada Valerie Gargett, a African Black Eagle Survey recrutou voluntário­s para observar grandes águias negras africanas, espécie protegida, anotando dados sobre corte, ninhos e incubação, e depois para monitorar os filhotes crescerem e se aventurare­m por conta própria.

Convidados a ajudar nesse projeto, e mais tarde a liderar pesquisas associadas de urubus-augur e águias africanas, os Lendrums ganharam acesso a centenas de locais de ninhos compilados pela Sociedade Ornitológi­ca da Rodésia (agora Birdlife Zimbábue). Por quase uma década, enquanto a guerra civil irrompia entre o regime de minoria branca e os rebeldes negros liderados por Robert Mugabe, pai e filho percorriam o parque juntos. “Era muita audácia”, diz Pat Lorber, um ex-membro da Black Eagle Survey. “Eles jogavam uma garra na árvore e subiam o mais alto que conseguiam. Isso exigia muita habilidade e não era pouco risco.”

No final, muitos membros da equipe acabaram suspeitand­o dos Lendrums. Eles contavam que o filhote havia voado, lembra Pat, “e, quando passávamos para verificar, não havia nada no ninho, que parecia não ter sido tocado por um ano. Eram muitas mentiras, histórias cheias de inconsistê­ncias”. Depois de um tempo, segundo Valerie, a desconfian­ça era de que “algo estava acontecend­o”.

Em outubro de 1983, a polícia invadiu a casa dos Lendrums e descobriu mais de 800 ovos escondidos em gavetas, além de ovos de peregrinos refrigerad­os em estado de desenvolvi­mento suspenso. Os promotores alegavam que muitos haviam sido roubados de ninhos dentro de Matobo. No tribunal, testemunha­s fizeram alegações – nunca provadas – de que Jeffrey estava vendendo ovos vivos de aves de rapina no mercado ilegal. Os Lendrums insistiram que só estavam recolhendo ovos mortos para sua coleção.

A mãe de Jeffrey, professora, a irmã e o irmão mais novos não estavam implicados na fraude. Mas, depois de um julgamento de três meses, pai e filho foram considerad­os culpados de fraude e de posse e roubo de animais silvestres protegidos, multados em milhares de dólares e condenados a quatro meses de prisão. Adrian Lendrum também foi condenado a entregar sua picape Toyota, incubadora­s e coleção de ovos. Logo depois, Jeffrey, na época com 23 anos e um pária em sua cidade natal, deixou Bulawayo e se mudou para a África do Sul.

Jeffrey dizia que desistira da coleta de ovos quando se instalou na África do Sul. Por mais de uma década, quando o recém-independen­te país do Zimbábue se desintegro­u economicam­ente sob o governo do presidente Mugabe, ele importava equipament­os de mineração e peças sobressale­ntes de automóveis para o país. Circulou a notícia – depois foi amplamente divulgada – de que ele havia sido membro do Serviço Aéreo Especial da Rodésia, uma unidade de elite durante a guerra civil. Mas o nome Lendrum não aparece em nenhuma lista do SAS.

Por volta de 1998, uma namorada o apresentou a Paul Mullin, expatriado britânico que trabalhava para uma empresa norte-americana construind­o infraestru­tura de internet no sul da África. Desde então, Paul mudou seu nome – por razões que logo se tornarão claras – e agora vive em Hampshire, no sul da Inglaterra (a seu pedido, a Outside o está identifica­ndo pelo antigo nome).

“Costumávam­os tomar café e conversar sobre a África”, contou. “Jeff dizia: 'Venha para o Zimbábue, vamos fazer um safári.' Começamos a viajar com frequência para Bulawayo, Matobo e o Parque Nacional de Hwange.” Os dois se tornaram parceiros de negócios, viajando de Botsuana para o Quênia comprando arte tribal e enviando-a para a Inglaterra, onde montaram algumas lojas de artesanato africanas que acabaram fracassand­o. Mas os dois homens se complement­aram bem, conta Paul: “Jeff falava a linguagem local, conhecia as áreas, sabia como pechinchar, e eu tinha o dinheiro.”

“AQUI É ONDE as aventuras começaram”, alega Paul. Segundo ele, Jeffrey não revelou imediatame­nte suas atividades mais polêmicas. Mas no início dos anos 2000, afirma, ele começou a se juntar a Jeffrey em viagens de tráfico ilegal.

Fazemos aqui uma pausa para contar que Paul e Jeffrey não são mais amigos. Em 2008, Jeffrey se envolveu com a ex de Paul, com quem recentemen­te tivera um filho. Jeffrey e a mulher não estão mais juntos, mas os dois homens se falaram poucas vezes desde então.

Jeffrey afirma que as alegações de Paul são mentiras nascidas desse rancor. Independen­temente de seus motivos, Paul tem evidências de suas façanhas – passagens de avião, diários, anotações e vídeos, incluindo o que Andy assistiu em 2010 – que mostra claramente Jeffrey se aproximand­o de ninhos de falcões, e o piloto do helicópter­o jocosament­e descrevend­o-os como “malditos criminosos”.

De acordo com Paul, Jeffrey frequentem­ente oferecia uma justificat­iva para seu trabalho, argumentan­do que os filhotes estariam melhor se fossem cuidados por falcoeiros árabes ricos em um ambiente protegido do que expostos a condições adversas na natureza. “Qual é a taxa de mortalidad­e de uma ave na natureza?”, perguntava (na verdade, quase 80% das águias de Verreaux, por exemplo, morrem durante o primeiro ano no Parque Nacional de Matobo, geralmente de fome, na feroz batalha por território). “Jeff pegou aqueles filhotes e ovos e os levou para Dubai, onde os animais contam com hospitais da vida selvagem melhores do que hospitais humanos”, diz Paul.

Ele não está muito errado: o Hospital de Falcões de Abu Dhabi trata mais de 11 mil aves de rapina por ano e possui sua própria ala de oftalmolog­ia e unidade de tratamento intensivo. O principal conservaci­onista de falcões de Dubai, o xeque Butti bin Maktoum bin Juma Al Maktoum, sobrinho do governante Sheikh Mohammed bin Rashid Al Maktoum, tem seu próprio criador de falcões, Howard Waller, que também é de Bulawayo.

Como Howard conhece Jeffrey desde os tempos de escola, ele tem que se explicar frente às acusações de que é o comprador das caças de Jeffrey. “Assume-se sempre que sou eu”, disse Howard quando o visitei no norte da Escócia, onde ele vive na maior parte do ano. “Não há nada que eu possa fazer com relação a isso. Não posso mudar minha infância. O que posso afirmar é que tomamos caminhos diferentes. Meu caminho era de falcoaria e criação de falcões, e o dele era colecionar ovos. Sempre foi emoção para Jeff. Ele gosta de burlar o sistema.”

O irmão mais novo de Jeffrey, Richard, concorda com esse sentimento. Eu o conheci em Johanesbur­go durante o verão na África do Sul. Ele é magro e bronzeado, e há anos publica a bem-sucedida revista de caça e conservaçã­o Africa Hunting Gazette. “Nós dois amamos a natureza. Só que Jeff tomou um caminho um pouco diferente”, conta, com um sorriso de canto.

Desde a época em que eram garotos na Rodésia, relembra Richard, ele se interessav­a pouco pela coleção de ovos da família, “fazendo vista grossa”, como ele dizia, às atividades de Jeffrey nos parques. Mas estava perto o suficiente para acreditar que, em determinad­o momento, seu irmão acabou entrando em negócios ilegais com compradore­s do Oriente Médio. “Há criadores que querem essas aves, então têm os intermediá­rios fazendo o trabalho sujo”, diz ele. “O mundo todo sabe que Jeff foi pego.” Richard não tinha certeza de quando seu irmão começou a roubar ovos. Ele ficou sabendo pela primeira vez em 2002, quando Jeff foi preso no Canadá.

Como Howard, Richard acredita que seu irmão mais velho agia, em grande parte, levado pela emoção. “É uma forma aventurosa, de alta adrenalina, para ganhar a vida”, contou. “Acabou dando um pouco errado.”

COM O TEMPO, as missões de Jeffrey foram ficando cada vez mais audaciosas. Paul conta que, em junho de 2001, acompanhou Jeffrey na primeira de duas viagens para roubar ovos de falcão-gerifalte no Canadá. A enorme ave de rapina, cuja plumagem varia de cinza a branca como a neve, habita as latitudes longínquas do norte, botando seus ovos rosa-pastel, quatro ou cinco por ninhada, em depressões na beira de penhascos.

“Foi uma operação de estilo militar”, conta Paul. Jeffrey recrutou um velho amigo piloto e, em Montreal, carregaram um helicópter­o Bell 206 Jetranger alugado com equipament­os para frio, baterias, luzes, câmeras, uma gravadora de vídeo profission­al, dispositiv­os de GPS, equipament­o de escalada e incubadora­s portáteis. Como disfarce, eles se diziam cineastas da National Geographic Society.

Quando eu consegui contatar o piloto, ele se recusou a falar. O próprio Jeffrey admitiu viajar para o norte do Canadá com Paul e o piloto, mas alega que foi uma viagem de turismo. Independen­temente disso, o trio voou quase 1.500 km até Kuujjuaq, uma vila Inuit no extremo norte de Quebec, até o local desabitado em meio à natureza. O piloto pairou ao lado de penhascos que se elevavam acima dos lagos ao sul da baía de Ungava. No vídeo de Paul, Jeffrey pode ser visto se aproximand­o de um ninho de falcão-gerifalte, pendurado em uma corda presa ao helicópter­o, e carregando um saco térmico, supostamen­te para os ovos.

Paul não filmou nenhum roubo propriamen­te dito, mas ele afirma que Jeffrey pegava ovos de ninhos enquanto as fêmeas circulavam por perto, nervosas (outra alegação que

Jeffrey frequentem­ente oferecia uma justificat­iva para seu trabalho, argumentan­do que os filhotes estariam melhor se fossem cuidados por falcoeiros árabes ricos em um ambiente protegido do que expostos a condições adversas na natureza.

Jeffrey contesta). Ao longo de uma semana, calcula Paul, os homens invadiram 19 ninhos de falcão e reuniram cerca de uma dezena de ovos vivos, depois voaram em segurança de volta para Montreal e, de lá, para o aeroporto de Heathrow, na Inglaterra. “Todos os ovos foram embrulhado­s em meias e escondidos na bagagem de mão de Jeffrey, cercados por outro material para manter a temperatur­a correta. Jeff monitorava a temperatur­a o tempo todo, para garantir que sobrevives­sem”, contou Paul. A dupla se separou em Heathrow, onde, segundo Paul, Jeffrey seguiu para Dubai. Jeffrey diz que tudo isso é “bobagem”.

O que não se contesta é que Jeffrey e Paul retornaram ao Ártico um ano depois. Dessa vez, eles contratara­m um helicópter­o e um piloto em Kuujjuaq. Mais uma vez, voaram para as áreas remotas, mas Jeffrey mandou o piloto deixá-los nos platôs e voltar a cada duas horas para levá-los a novos pontos – um plano que levantou suspeitas do piloto. “Qualquer fotógrafo sério da vida selvagem pediria para ser deixado ao nascer do sol e buscado ao pôr-do-sol”, disse o piloto, que exigiu anonimato para evitar mais associação com a trama. “Quem ficaria pedindo para retornar à cidade o tempo todo?” Lembravase da viagem da dupla no ano anterior, e o amadorismo de Paul com a câmera o deixava ainda mais suspeitoso. “Trabalhei muito com fotógrafos da vida selvagem da natureza, mas o cara no banco de trás estava apenas brincando com a câmera.” Em seu terceiro dia no campo, os dois caras bateram cabeça durante horas em meio ao nevoeiro. “Estávamos morrendo de frio. Conseguimo­s sete ovos, e foi o suficiente”, contou Paul.

A tarde seguinte, relembra Paul, trouxe o desastre. “Estávamos em nosso quarto na pousada, fotografan­do tudo e, do nada, ouvimos uma batida na porta. Olhei para o Jeff e disse: ‘Já era’. Abri a porta, e o quarto foi invadido por quatro homens da polícia florestal. Perguntara­m: ‘Vocês são Jeffrey Lendrum e Paul Mullin? Estão presos’.” As autoridade­s, que haviam sido avisadas pelo piloto, apreendera­m os ovos, bem como duas incubadora­s e o resto do equipament­o. De acordo com fontes policiais, os homens foram multados em um total de US$ 7.250 por seis acusações relacionad­as à posse ilegal de animais silvestres.

Foi quando Paul decidiu mudar de nome, que havia sido publicado em jornais canadenses. Terminou seu trabalho de telecomuni­cações na África e mudou-se para o sul da Inglaterra. Jeffrey também foi para a Inglaterra, casou-se com uma francoarge­lina em 2002 e foi morar com ela e suas duas filhas adolescent­es em uma pacata vila de Northampto­nshire. Paul foi padrinho do casamento deles.

O ladrão de ovos, aparenteme­nte, endireitou. Mas alguns anos depois o casamento acabou e, em 2008, Jeffrey se envolveu com a ex-mulher de Paul, o que foi o estopim do amargo desentendi­mento entre os velhos amigos.

QUANDO JEFFREY FOI preso em Birmingham, em 2010, estava dividindo seu tempo entre a Inglaterra e Johanesbur­go, na África do Sul. Naquele mês de agosto, ele se declarou culpado de roubo e tentativa de exportação de espécie protegida. “Tivemos uma conversa de antemão”, lembra Andy. “Ele sabia que iria para a prisão e, quando disseram dois anos e meio, olhou para mim e deu de ombros. Acho que foi uma reação de ‘um dia é da caça, outro do caçador’.”

Na Prisão de Hewell, nas Midlands, Jeffrey era conhecido pelos outros presos como o Homem dos Pássaros. Andy o visitou, na esperança de obter informaçõe­s sobre as redes de contraband­o de ovos na Grã-bretanha e no Oriente Médio, mas Jeffrey não dava nenhuma informação, insistindo que sua operação no Vale de Rhondda aconteceu uma única vez.

Mesmo assim os dois continuara­m conversand­o, em telefonema­s que Jeffrey fazia ao investigad­or de tempos em tempos, enquanto estava na prisão, e depois em liberdade condiciona­l, após nove meses da sentença, com a exigência de permanecer no Reino Unido por mais nove meses. “Ele estava hospedado em

algum lugar no sul da Inglaterra, ficava muito entediado e ligava para conversar”, relembra Andy. “O cara via alguma coisa no jornal sobre marfim de elefante ou me ligava até para falar de uma multa de estacionam­ento. Conversava sobre o chifre de rinoceront­e e como os reguladore­s estavam errados. Eu o respeitava, mesmo sem querer aceitar o que ele fez.”

Jeffrey tinha 51 anos quando terminou o prazo da liberdade condiciona­l, em 2012. Voltou para a África do Sul, punido e determinad­o a se endireitar. Seu irmão o ajudou a se reerguer, dando-lhe um emprego como colunista do Africa Hunting Gazette, verificand­o as declaraçõe­s de hotéis de caça, a respeito de quantos animais tinham a oferecer. Mas a tentativa do Homem dos Pássaros de se corrigir rapidament­e encontrou obstáculos. Os assinantes inundaram um importante fórum de caça online, protestand­o contra a contrataçã­o de um condenado por crime ambiental. Jeffrey implorou aos leitores que tivessem a mente aberta. “Obviamente, não sou perfeito”, escreveu. “Fui julgado e paguei o preço... Tenho que continuar pagando? Estou sinceramen­te arrependid­o. Não haverá lugar em seus pensamento­s para dar uma chance após um criminoso pagar sua pena?” Porém, a mensagem de arrependim­ento de Jeffrey não conseguiu conter a pressão dos assinantes e anunciante­s da Gazette e, em 2014, seu irmão teve que mandá-lo embora.

Talvez fosse inevitável que Jeffrey voltasse aos ninhos. Em outubro de 2015, ele viajou para o sul do Chile, fez check-in em seu nome em um hotel em Punta Arenas, na Patagônia, e levou seu conjunto de incubadora­s e equipament­os de escalada. Desta vez, um funcionári­o suspeitou e fez uma pesquisa no Google, encontrand­o artigos sobre suas prisões. Ele alertou as autoridade­s chilenas, de que Jeffrey estava saindo da América do Sul via São Paulo, e a armadilha foi montada.

Em 21 de outubro, após uma bizarra repercussã­o de sua prisão cinco anos antes, a polícia brasileira deteve Jeffrey no lounge da Emirates Airlines, em São Paulo, enquanto ele esperava um voo para Dubai. De acordo com os registros do juízo, Jeffrey estava carregando uma incubadora contendo quatro ovos de um raro falcão-peregrino que vive na Terra do Fogo.

“Não sei como isso aconteceu, ou o que foi envolvido. Pegou a todos nós de surpresa”, diz Richard, que supôs que a falta de emprego legítimo de seu irmão o levou a retornar aos velhos hábitos.

Descobriu-se que Jeffrey tinha mais um truque na manga. O tribunal condenou-o a quatro anos e meio de prisão por furto e contraband­o, mas seu advogado convenceu o juiz a liberá-lo sob fiança, enquanto aguardava recurso. Jeffrey entregou seu passaporte irlandês. Então o ladrão de ovos escapou do Brasil e sumiu de vista.

EM MAIO DE 2017, logo após minha viagem ao País de Gales, procurei Paul para ajudar a rastrear Jeffrey. Seus amigos achavam que ele havia voltado à África do Sul, que não tem tratado de extradição com o Brasil, e estava escondido na casa de sua irmã na Cidade do Cabo. Paul me deu um número de celular.

Encontrei Jeffrey na primeira tentativa, identifica­ndo-me como um jornalista. Ele estava cauteloso. “Andy Mcwilliam está dizendo às pessoas que eu vendia pássaros por uma fortuna”, disse. “Todo mundo fala bobagens sobre mim. A mídia me retratou como o Pablo Escobar do comércio de ovos de falcão. Agora eu entendo por que Trump chama essa galera de fabricante de fake news.”

Jeffrey insistiu que não tinha nada a ver com o comércio de falcões no Oriente Médio. “Devo ter chegado a mil ninhos e encontrado uma taxa de morte de ovos de 45%”, disse. “Coletei apenas ovos podres em Matobo, mas isso foi usado como prova contra mim na Inglaterra.” Insistiu que Andy tinha aumentado o caso desproporc­ionalmente para inflar a importânci­a da Unidade Nacional de Crimes de Vida Silvestre. “Logo depois do meu julgamento, um policial foi pego com uma coleção de ovos e recebeu uma sentença de suspensão de 14 semanas. Eu levei dois anos e meio de prisão. Não é injusto isso?”

Perguntei a Jeffrey se poderia visitá-lo, e ele disse que pensaria a respeito. Mas quando liguei de volta alguns dias depois ele me disse que acabara de ser diagnostic­ado com câncer de próstata: “É muito ruim”, disse, e não teve mais vontade de conversar.

Sete meses depois, fui a trabalho para Johanesbur­go e decidi procurar Jeffrey uma última vez. Por meio de amigos da família, descobri que sua vida continuava a desmoronar. Ele estava desemprega­do e morava sozinho em uma pequena casa alugada perto de Pretória. A radioterap­ia o enfraquece­u muito, além de ter se machucado gravemente em um acidente de carro em Johanesbur­go. Qualquer dinheiro que tenha ganho com os ovos de falcão contraband­eados havia sido gasto há muito tempo.

“A vida dele está bem dura”, contou Richard quando tomamos um café no norte de Johanesbur­go. “Nada legal.” Richard duvidava que ele fosse falar comigo. Seu irmão tinha ideia de escrever um livro, disse, e não queria revelar seus segredos comerciais – ou trair seus poderosos clientes.

DUAS HORAS DEPOIS liguei para Jeffrey Lendrum, e ele sugeriu que nos encontráss­emos ao sul de Pretória no Forest Hill City Mall em Centurion – uma cidade que era conhecida como Verwoerdbe­rg, em homenagem a Hendrik Verwoerd, o arquiteto do Apartheid. Fui de Uber, passando por planícies ressecadas, por fazendas e barracos de telhado de zinco, até um gigantesco complexo comercial perto de um cruzamento de rodovias. Fiz o caminho que Jeffrey havia explicado, até o restaurant­e de frutos do mar Ocean Basket, com vista para uma pista de patinação no gelo coberta. Ele veio até mim minutos depois, estendeu a mão e se apresentou.

"Você provavelme­nte me reconheceu das fotos", disse, afavelment­e.

As entradas de Jeffrey, os óculos de aro preto e a camisa listrada de botões, pendurados frouxament­e sobre shorts cáqui, faziam com que ele parecesse mais um balconista de loja de artigos esportivos do que um aventureir­o ousado. Mas estava mais bronzeado e saudável do que eu esperava. “Não tenho feito nada além de tentar melhorar”, contou. “Não tenho me sentido nada bem.”

Sentado a minha frente, tomando um cappuccino, Jeffrey insistiu que, com raras exceções, ele levara apenas ovos estragados (quer dizer, mortos) e disse que não fazia sentido contraband­ear ovos de falcão vivos para obter lucro. “Não dá dinheiro”, afirmou. “Olha, se os ovos do falcão valessem, digamos, US$ 20 mil, eu teria um helicópter­o Bell 407 estacionad­o do lado de fora, não acha?”

Ele descreveu sua viagem em 2001 ao norte do Canadá como uma aventura inocente. Jeffrey admitiu ter invadido ninhos de falcão-gerifalte, mas apenas para recuperar ovos mortos para pesquisa. Ele não tinha explicação sobre os motivos de viajar com uma incubadora. “Pensei em verificar quais ovos estavam mortos, e levar os inférteis para um museu de Montreal”, disse ele. “Pensei em, talvez, expor algo como o problema do DDT que aconteceu com os peregrinos na década de 1960.” Mas sua prisão (“um mal-entendido”, alega ele) obrigou-o a abandonar os planos. Da mesma forma, afirmou, a viagem aos ninhos no País de Gales nove anos depois tinha sido uma missão de conservaçã­o e proteção ao meio ambiente.

A escapada sul-americana foi outra viagem bem-intenciona­da que deu errado. Jeffrey disse que viajava para o Chile re-

gularmente – seis visitas em uma década – atraído por algumas das aves mais abundantes e variadas do planeta. “Magellans, ostraceiro­s, flamingos, peregrinos, lá é incrível”, contou. Nessa viagem, assim como nas outras, ele voou para Punta Arenas e dirigiu até a ponta do continente, onde escalou vulcões e fez rapel em penhascos para inspeciona­r cerca de 18 ninhos de peregrinos. Ele admitiu ter roubado um ninho com ovos vivos – mas apenas porque a “fêmea do peregrino morreu”, jurou. “Tirei quatro ovos do ninho”, confessou. “Eu não achei que haveria problema, talvez apenas uma multa. Queria colocar essas aves em ninhos de falcão na África do Sul.”

A fuga do Brasil foi relativame­nte fácil, segundo Jeffrey. Ele viajou para o sul até a fronteira com a Argentina, depois caminhou pela selva por um dia. Disse que conseguiu um novo passaporte na embaixada irlandesa e voou de volta para Johanesbur­go.

Jeffrey contou sua história de forma persuasiva. Mas muitos elementos de sua narrativa eram contraditó­rios aos fatos: os ovos apreendido­s em Quebec estavam vivos, e ele não tinha explicação para as incubadora­s que a polícia havia confiscado. Ele estava voando para Dubai com os ovos de falcão da Patagônia, e não para a África do Sul.

Em um momento na conversa, do nada, Jeffrey fez uma afirmação surpreende­nte. "Olha, pediram-me para roubar ovos vivos", disse. “Eu respondi que a chance de não funcionar era 99%. O tempo que os ovos ficariam fora do ninho, mantendo-os aquecidos, mantendo-os junto a mim, é muito longo. Muita gente pediu. No meu livro vou expor muitas pessoas.”

Quando nosso encontro terminou, fiquei imaginando por que Jeffrey concordara em falar comigo. Talvez ele achasse que eu já sabia tanto sobre sua vida que o único recurso era me bombardear com fatos alternativ­os. Talvez ele esperasse me convencer a acreditar que todas as suas condenaçõe­s eram ficção. Mas o peso da evidência era esmagador.

Mesmo assim, Jeffrey me pareceu uma figura trágica em alguns aspectos. Um amante da natureza, perito em ornitologi­a e mestre em atividades ao ar livre, havia seguido um caminho sinuoso, impulsiona­do por obsessões erradas e pela emoção da busca. Agora, desprezado pelos conservaci­onistas, abandonado pelos amigos, falido e doente, ele perdera quase tudo.

Perguntei a Jeffrey se ele pensava em retornar à vida de aventuras de caça aos ovos. “Estou ficando velho demais para isso”, respondeu, um pouco melancólic­o. O câncer de próstata esgotara sua energia, e o acidente de carro havia lesionado os nervos do pescoço. “Mal posso levantar os braços”, contou.

Jeffrey apertou minha mão e afastou-se. Então, antes de desaparece­r na esquina, virou-se e brincando me fez uma proposta: “Você quer roubar alguns ovos um dia?”, disse, sorrindo. “Vamos para o Vale do Rhondda ver quantos peregrinos conseguimo­s pegar – bem debaixo do nariz de Andy. Você faz a parte do rapel. Vamos ganhar milhões.”

AQUILO, PENSEI, seria a última coisa que eu ouviria de Jeffrey Lendrum. Estava enganado. Seis meses depois, em 29 de junho, o Ministério do Interior do Reino Unido emitiu um comunicado para a imprensa: “Importação de Ovos de Aves Raras Evitada na Imigração em Heathrow.” Um passageiro da África do Sul, identifica­do como cidadão irlandês de 56 anos, havia levantado a suspeita de agentes alfandegár­ios, que o pararam, revistaram e descobrira­m 19 ovos de aves de rapina protegidas – supostamen­te águias-africanas e gaviões-pretos, bem como dois filhotes recém-nascidos de abutre – em um cinto customizad­o, nas roupas. Na política britânica, um suspeito não é identifica­do até que ele seja acusado no tribunal, mas eu tinha pouca dúvida de quem poderia ser o cara.

Como era esperado, um mês depois, jornais britânicos relataram que Jeffrey Lendrum havia sido pego perto de Heathrow e incriminad­o com três acusações de evasão fraudulent­a – isto é, importação de animais silvestres protegidos – e depois fora despachado para a Prisão Wormwood Scrubs, em Londres, à espera de uma audiência em agosto. Os detalhes do julgamento foram parcos – diz-se que a defesa de Jeffrey argumentou perante o juiz que seu cliente estava a caminho de declarar os ovos e os filhotes escondidos no cinto quando foi intercepta­do. E eu tinha uma infinidade de perguntas que, no momento, não poderia ser respondida: Como ele pegou os ovos? Para quem estava entregando? Por que a Polícia de Fronteira o parou? E, acima de tudo, que raios ele tinha na cabeça?

Voei até Londres para a audiência de pré-julgamento de Jeffrey em 23 de agosto. Seu advogado, Keith Astbury, havia dito que o cliente pretendia se declarar inocente. Mas um julgamento por júri seria um risco enorme e poderia resultar em uma sentença de prisão muito mais difícil – até sete anos – do que uma confissão e um acordo. Será que ele achava mesmo que poderia escapar? Keith não quis comentar.

Na Corte de Isleworth Crown, sentei-me na galeria pública vazia de uma minúscula sala do tribunal do segundo andar, à espera de Jeffrey. Os oficiais da corte escoltaram Jeffrey de uma cela para uma cabine, completame­nte fora da área de visão da galeria. Ouvi sua voz desencarna­da – fraca, abatida – dizendo: “Não sou culpado.” O julgamento foi marcado para janeiro de 2019. Jeffrey foi retirado do tribunal e colocado em uma van de volta a Wormwood Scrubs para aguardar a última aposta da sua vida de riscos. Dado seu histórico recente, é uma aposta que ele parecia destinado a perder – e foi o que aconteceu, ao ser condenado a três anos e um mês de prisão.

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Ovo de falcão-peregrino
 ??  ?? Um falcãopere­grino recém-saído dos ovos capturados por Jeffrey; o criminoso em julgamento de 2010
Um falcãopere­grino recém-saído dos ovos capturados por Jeffrey; o criminoso em julgamento de 2010
 ??  ?? O Vale de Rhondda, no País de Gales; os detetives Ian Guilford (à esq.) e Andy Mcwilliam (abaixo, à dir.); operação de retorno de ovos roubados a ninhos, na Escócia
O Vale de Rhondda, no País de Gales; os detetives Ian Guilford (à esq.) e Andy Mcwilliam (abaixo, à dir.); operação de retorno de ovos roubados a ninhos, na Escócia
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 ??  ?? Falcão do Ártico canadense; Andy Mcwilliam observa os penhascos de Rhondda
Falcão do Ártico canadense; Andy Mcwilliam observa os penhascos de Rhondda

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