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NO TOPO DO MUNDO

a cineasta elizabeth Chai vasarhelyi não escala, mas sua determinaç­ão em contar a vida de montanhist­as extremos resultou em dois dos melhores documentár­ios sobre aventura da última década: Meru e o novo Free Solo, ambos realizados com seu marido, jimmy Ch

- celeste sloman FOTOS DE_______

Quem é a diretora por trás do sucesso – e do Oscar! – do documentár­io Free Solo

diz a cineasta norte-americana Elizabeth Chai Vasarhelyi durante um almoço em um restaurant­e indiano de Nova York (EUA). Ela parece muito com o que se poderia definir como uma nova-iorquina sofisticad­a: esguia e elegante, com uma jaqueta de couro de aparência cara jogada nas costas. Faz 37oc na sombra lá fora, e, mesmo assim, ela pede uma sopa asiática quente de cúrcuma. Além disso, aceita com entusiasmo minha oferta de dividir meu prato de paneer (queijo) e naan (pão).

Elizabeth e o marido, o escalador e cineasta Jimmy Chin, dirigiram juntos em 2015 o incrível filme Meru, de narrativa rica e imagens de cair o queixo. O documentár­io conta a história da primeira ascensão a um rochedo traiçoeiro chamado Shark’s Fin, localizado no Monte Meru (4.565 metros), no Himalaia indiano.

Os palavrões a que ela se refere estão na versão não muito final da sua última produção com o marido: Free Solo. O filme, que neste ano venceu o Oscar de melhor documentár­io, conta a história da primeira ascensão em solo (sem corda de segurança) do El Capitan, feito realizado em 3h56 pelo astro norte-americano da rocha Alex Honnold. O El Capitan é a mais famosa formação rochosa do Parque Nacional do Yosemite, na Califórnia (EUA).

Na versão que assisti em junho de 2018, Alex manda quatro “caralho” nos primeiros oito minutos. E Free Solo foi financiado pela National Geographic – que não combina muito com termos como “caralho”. Então, antes de Elizabeth poder viajar de Nova York (onde ela mora a maior parte do tempo, com o casal de filhos) para se encontrar com Jimmy Chin em Jackson Hole, no Wyoming (onde ele mora e trabalha a maior parte do tempo), a diretora precisa editar os palavrões. “Esses caras xingam o tempo todo”, reclama.

“Foi importante o fato de ela não dar a mínima para a escalada”, diz o escritor norteameri­cano Jon Krakauer, grande fã de Elizabeth e principal narrador de Meru.o filme é cheio de momentos de Krakauer explicando a cultura da escalada e os perigos envolvidos na tentativa daquela montanha, assim como sua motivação – estratégia que a diretora defendeu muito, para ajudar o público mais leigo a entender esse esporte.

Ainda assim, seu casamento e a parceria de trabalho com Jimmy deixam alguns escaladore­s surpresos, pela diferença de mundos dos dois. “Todo mundo fica perguntand­o: ‘Como eles conseguem, com Elizabeth morando em Nova York e Jimmy em Jackson?’”, comenta o veterano escalador norte-americano Conrad Anker, um dos protagonis­tas de Meru. E completa, irritado com a fofocaiada: “Sei lá como eles fazem, só sei que conseguem! E dá certo”.

Durante os três anos entre a tentativa frustrada de Conrad, Jimmy e Renan Ozturk na Shark’s Fin em 2008 e a conquista em 2011, Renan quase morreu em um acidente horrível de esqui, e Jimmy milagrosam­ente sobreviveu a uma grande avalanche. Tudo isso está em Meru, assim como as entrevista­s com as esposas, namoradas e irmãs dos escaladore­s – cenas que já apareciam nas primeiras edições do filme, mas que foram regravadas depois que Elizabeth se envolveu no projeto, para aumentar a emoção do documentár­io. Ela ajudou a quebrar o padrão predominan­temente masculino dos filmes de escalada e esportes extremos em geral. Meru examina os medos e o apoio em comum entre as famílias desses homens. Isso também se deve muito à influência de Elizabeth. “Meu pescoço também está em jogo aqui”, diz. Em outras palavras, é porque ela ama um cara que escala montanhas que podem matá-lo e precisava explicar a si mesma a razão disso.

Em Meru, o lendário Conrad abre seu coração (“Foi uma entrevista de oito horas”, admira-se Elizabeth) ao falar sobre sua amizade com Alex Lowe, companheir­o de escalada morto em 1999 em uma avalanche no Himalaia e sobre como se apaixonou e casou com a viúva do amigo, Jenny, adotando os três filhos do amigo.

Alex Honnold entrou nesse jogo, para um filme do mesmo porte, quando começou a pensar em escalar o El Capitan solo. Nada que ele realizasse como escalador superaria o feito. O El Cap é uma divindade no mundo da escalada. “Elizabeth trouxe uma abordagem totalmente diferente da filmagem que eu havia feito antes”, conta ele por telefone, da sua casa em Las Vegas. “Na maior parte do tempo nos outros filmes que fiz, você está filmando para uma marca, vai lá e grava a cena. Repete 17 vezes. Com Elizabeth, pela primeira vez, trabalhei com alguém que estava preocupada em captar o momento verdadeiro.”

Quando começou a pensar seriamente em escalar o El Capitan, Alex havia encontrado Elizabeth apenas uma vez, em uma reunião de atletas patrocinad­os pela The North Face. “Estava passando um jogo na TV. Um monte de gente estava com cookies de maconha. Eu já tinha ouvido falar de uma mulher muito inteligent­e de Nova York, que estava com o Jimmy, uma cineasta, tipo chiquérrim­a do Upper East Side. A primeira coisa que eu disse a ela foi: ‘Muito prazer. Estou totalmente chapado’. E passei o resto do jogo ao lado dela.” Depois do que Alex descreve como seis meses de “namoro”, ele escolheu Elizabeth e Jimmy para filmar a escalada. Sabia que eles dariam atenção especial à história e que conseguiri­am documentar a tentativa sem compromete­r sua segurança.

“É estranho, mas Elizabeth e Alex são parecidos”, conta Jimmy, que ligou do meio de uma viagem de surf em algum lugar na costa mexicana do Pacífico, de cima de uma pedra que escalou para conseguir sinal de celular. “Seus filmes são montados meticulosa­mente. Ela não para enquanto não tenha tentado todas as ideias. Há uma certa mentalidad­e de escaladora nela, de nunca desistir.”

“EU SEMPRE FICO pensando sobre a palavra ‘intensa’”, comenta Elizabeth. “Intensa é uma

Ela não para enquanto não tenha tentado todas as ideias. Há uma certa mentalidad­e de Escaladora nela, de nunca desistir. “Hoje eu estava revisando palavrões.tive que fazer eu mesma. ninguém mais poderia fazer isso”,

palavra usada para descrever as mulheres. Os caras são intensos, mas não são descritos dessa maneira.”

Ok, mas... ela é bem intensa. Tem apenas 39 anos, e sua vida sempre foi intensa, viajada, em uma família de intelectua­is. Os Vasarhelyi­s são da velha guarda do bairro nobre de Upper East Side de Manhattan, meritocrat­as cultos, que conquistar­am aquela parte da cidade antes de os especulado­res a dominarem. Os pais de Elizabeth, Marina e Miklos, eram imigrantes de Hong Kong e da Hungria, respectiva­mente, que foram para os Estados Unidos nos anos 1970 para estudar e lecionar, quando se conheceram na Califórnia (“Acho que a verdadeira história era que ele era professor, e ela, sua assistente”, conta Elizabeth).

Durante a infância em Manhattan, ela frequentou a Brearley School, que descreve como um lugar para “meninas de intelecto aventureir­o”. Ela era boa em ciências. O apartament­o da família ficava muito perto do Whitney Museum, e ela conta que passava muitas tardes passeando pelo Metropolit­an Museum of Art, onde sua mãe trabalhava antes de virar CFO da New School (também trabalhou no Fashion Institute of Technology e na Universida­de Columbia).

Quando Elizabeth tinha 12 anos, foi apresentad­ora assistente de um programa de TV do canal Nickelodeo­n, chamado Totally Kids Sports. “Você nunca vai achar nenhuma gravação. O que é ótimo”, diz, enfaticame­nte.

Seu pai, atualmente professor de administra­ção na Universida­de de Rutgers, ensinou Elizabeth e seu irmão mais novo a esquiar, em Jackson Hole. Parece que ensinou direitinho. “Elizabeth consegue dropar e descer em alta velocidade”, admira-se Jimmy. “Ela chega em Jackson Hole e arrebenta.”

Elizabeth começou a carreira de cineasta quando estudava na prestigios­a Universida­de de Princeton e trabalhand­o para o âncora do jornal da noite Peter Jennings, da ABC News. Em seu primeiro documentár­io, A Normal Life [Uma Vida Normal], de 2003 (quando ela tinha apenas 23 anos), sete amigos em idade universitá­ria lutavam não só para viver, mas para prosperar em Kosovo, apesar do conflito bósnio. “A única coisa que nos diferencia­va eram as circunstân­cias”, comenta. “Eu nasci com privilégio­s. Eles nunca tiveram oportunida­des, ainda mais no contexto de uma guerra que deveria ter terminado.” A Normal Life ganhou o prêmio de melhor documentár­io no Tribeca Film Festival de 2003 e chamou a atenção do falecido diretor Mike Nichols, que acabou contratand­o Elizabeth como assistente do filme Closer – Perto Demais.

Ela passou grande parte da última década trabalhand­o em filmes sobre o Senegal. Se você faz parte da esfera pessoal de Elizabeth, meio que tem que gostar do Senegal: “Meu irmão foi para lá três vezes, meus pais também”, conta. “Morei lá por cinco anos. Jimmy já foi ao Senegal. Nossa filha, Marina, foi para lá quando era bebê, e tínhamos que colocar uma tela antimosqui­to em volta do berço.”

Seu documentár­io

Youssou N’dour: I Bring

What I Love [Eu Trago o que Amo], sobre o grande músico senegalês, estreou nos festivais de Telluride e de Toronto, em 2008. Depois veio Touba, um “poema visual” em forma de filme, nas palavras de um crítico, que acompanha a peregrinaç­ão anual de mais de 1 milhão de muçulmanos sufi senegalese­s até a cidade que dá título ao filme. Em 2012, Elizabeth conheceu Jimmy na conferênci­a Summit Series, onde ele estava dando uma palestra sobre fracasso em Meru.

Para encurtar a história, a primeira parte: “Estávamos sozinhos, na entrada da sala onde eu daria a palestra, e comecei a falar,” conta Jimmy. “Eu disse: ‘Ah, você é cineasta. Vou começar uma palestra agora. Quer ir lá ver?’.

E ela me deu um fora, tipo: ‘Não estou interessad­a’. É a cara dela fazer isso.”

Elizabeth apresentou Jimmy a Sarah Elizabeth Lewis, uma amiga de infância, escritora e professora da Universida­de de Harvard, que estava escrevendo um livro sobre criativida­de e fracasso, e que por acaso também estava no evento. Logo se formou uma conexão entre os três – mas Sarah diz que se sentiu “imediatame­nte segurando vela”.

Para encurtar a história, a segunda parte: “Eu falei: ‘Ei, você quer dar uma olhada na minha montagem?’”, conta Jimmy, referindo-se às imagens que tinha de Meru. Naquele tempo, o filme já passara dois anos batendo de porta em porta, procurando patrocínio, e não conseguira entrar em Sundance ou qualquer outro festival. “Eu o mandei para a Elizabeth, e três meses depois ainda não tinha nenhuma resposta. Pensei: (A) ela não gosta de mim ou (B) ela não gosta do meu filme.”

Nenhum dos dois era verdade. Elizabeth estava no Senegal durante os três meses, filmando Incorrupti­ble [Incorruptí­vel], um olhar visceral sobre os confrontos violentos entre estudantes e o governo de Abdoulaye Wade em 2012. Quando voltou a Nova York, ela entrou em contato com Jimmy, começaram a trabalhar em Meru e se apaixonara­m. Àquela altura, o projeto tinha míseras 35 horas de gravações, incluindo a escalada e as entrevista­s. Foi ideia de Elizabeth reescrever e refilmar, para “ver se Conrad, Renan e Jimmy conseguiri­am mostrar melhor suas emoções verdadeira­s”.

Jon Krakauer chama a primeira versão de apenas um bom filme de escalada. “Elizabeth é que fez dele um filme ótimo de verdade, e não só um ótimo filme de escalada. Provavelme­nte, é o melhor filme do gênero. Sei que Jimmy concorda comigo.”

“Ela tem a sensibilid­ade da narrativa e uma visão à frente de seu tempo”, diz Jimmy. “Às vezes ela consegue visualizar o filme antes de ele ser rodado. Também entende como a indústria funciona. Eu tenho essa capacidade de lidar com as expedições, mas não sou muito bom no mundo da produção de filmes.”

Meru ganhou o prêmio do público de melhor documentár­io do Festival Sundance e foi aclamado pela crítica. Também rendeu mais de US$ 2,4 milhões de bilheteria, tornando-se um dos documentár­ios mais rentáveis de 2015. Elizabeth convenceu Krakauer a fazer parte da campanha publicitár­ia, pois esperava que o filme fosse indicado ao Oscar. Ela falou com Krakauer, Jimmy e Conrad, mas Meru não foi para a lista de melhor documentár­io. Provavelme­nte foi a primeira vez na vida que Elizabeth não conseguiu alguma coisa que almejava. MERU, NO FUNDO, é um filme sobre amizade e limites, e ficou claro que algumas amizades foram alteradas ou terminadas com o advento da parceria de Jimmy com Elizabeth. Naquela época, ele ainda fazia parte da Camp4 Collective, produtora que ele fundou com Renan e com o fotógrafo Tim Kempel. Mais tarde, os três chamaram o diretor Anson Fogel para se juntar a eles. Pouco depois de Elizabeth e Jimmy se unirem, a Camp4 se desfez, por razões ainda não esclarecid­as, mas que parecem envolver atritos criativos entre Jimmy e os outros parceiros e seu desejo de continuar trabalhand­o em Meru.

O mundo dos escaladore­s cineastas é uma ilha, com seus próprios costumes. Elizabeth era considerad­a uma intrusa. Quando lhe perguntei a respeito do falatório que circundava Meru – de que ela é autocrátic­a, que foi responsáve­l pela saída de Jimmy da Camp4 –, ela responde: “Humm, falam essas coisas, é? Não tenho nada a dizer sobre isso”. Em 2015, Jimmy disse à National Geographic: “Eu prefiro não falar sobre o assunto, mas fico feliz em dizer que fundei a Camp4 com Tim Kemple e Renan Ozturk em 2010. Trouxemos Anson Fogel dois anos depois, e eu saí da empresa em 2013”. Anson não quis comentar.

Apesar de quaisquer ressentime­ntos que possam permanecer no mundo da escalada, a parceria de Elizabeth com Jimmy parece que continuará a produzir excelentes filmes. “Temos um ritmo. Cada um sabe o que o outro tem a oferecer”, conta Jimmy. Eles comentam as afinidades que sentiram ao se conhecerem: comprometi­mento com a autenticid­ade, a narrativa e a inovação, a ascendênci­a chinesa e até mesmo o amor por Jackson Hole, além de se complement­arem profission­almente. Juntos, seus talentos produzem filmes com imagens extraordin­árias e uma baita carga emocional. Como diz Jimmy: “Mundos diferentes trabalham bem juntos”.

Em nenhuma outra situação isso fica mais evidente do que em Free Solo. Talvez o maior paradoxo do filme seja que ele precisou de uma operação monumental, mas que pareceu invisível. Cinco câmeras tinham que estar prontas e posicionad­as na parede com poucas horas de sobreaviso, e outras três estavam no chão. Havia um helicópter­o que varria a parede para os grandes planos aéreos, com o Alex aparecendo como um pequeno ponto vermelho na vastidão da parede. Ele tinha que poder decidir o momento da escalada de acordo com a sua intuição e preparo, e não porque deveria seguir uma agenda de produção. Ele tinha que se sentir livre para desistir. Queria ser filmado, mas não queria se sentir sendo filmado.

Elizabeth conta que “Alex avisou ao Jimmy às 5h da tarde que achava que sairia na manhã seguinte. A equipe do Jimmy estava posicionad­a, mas Alex não fazia ideia disso”. Como foi possível? Como eles conseguira­m? “Desaparece­ndo”, responde. “Fazendo com que Alex sentisse que estava tudo bem, ele escalando ou não.”

Agora é a vez de Elizabeth demonstrar toda sua admiração pelo que o marido conseguiu... “Eles se empenharam de verdade na operação. Havia muitas câmeras, um total de nove.” Algumas estavam armadas perto das partes mais angustiant­es da via. A equipe não conseguia sequer imaginar a possibilid­ade de filmar uma queda fatal de Alex. E o escalador não suportaria a possibilid­ade de que algum deles se sentisse responsáve­l. Os riscos eram altos em todos os aspectos. Todos os envolvidos eram intimament­e ligados entre si.

“Por isso o filme captou a elegância da escalada. E também do meu processo de trabalho”, diz Alex. “Eles poderiam ter feito um filme cheio de adrenalina, tipo ‘olha um cara doido a caminho da morte...’ . ”

Mas não foram para esse rumo. Elizabeth pode não ser escaladora, mas admira profundame­nte o esporte e não tem nenhum interesse em apresentar Alex como um escalador viciado em risco ou que está atrás da morte – como às vezes o atleta é retratado pela grande imprensa. A ideia central de Free Solo, ela descreve, é mostrar “um garoto que tinha tanto medo de falar com as outras pessoas que achava mais fácil escalar sozinho, sem cordas. Era importante ver os olhos do Alex antes de ele começar a escalada. Como estavam seus olhos na manhã em que ele começou a escalar?”.

E o que a câmera viu? Os olhos de Elizabeth se iluminam. “Ele estava empolgado.” Longa pausa. “E muito bem preparado.”

“Eu sempre penso na palavra 'INTENSA'. INTENSA É UMA PALAVRA USADA PARA DESCREVER MULHERES. Os caras são intensos, mas não são descritos dessa maneira”, diz a diretora.

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Em sentido horário: Pôster de Free Solo; Elizabeth nas gravações; com Jimmy Chin; cenas dos documentár­ios dela, Touba e A Normal Life
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