BIKES NOS ANDES
Quatro amigos descobrem os encantos da cordilheira sul-americana em uma viagem recheada de beleza, companheirismo e celebração à vida
Uma cicloviagem libertadora pelo coração montanhoso da América do Sul
QUALQUER UM PODE fazer uma cicloviagem. Eu sei porque já fiz duas. Quase qualquer um, na verdade: é preciso saber pedalar e, claro, é preciso gostar de pedalar – mas isso é o que normalmente acontece com quem começa a pedalar de um jeito ou de outro... Enfim, se você preenche esses dois requisitos, sugiro que pense em fazer uma cicloviagem algum dia. Acho que você vai adorar.
No caso da nossa travessia dos Andes, os dois requisitos estavam lá, mas a ideia foi surgindo progressivamente. Ciclistas podem ser gente um pouco excêntrica (por que ser normal, afinal?), porém até os mais entusiasmados costumam pensar um pouco antes de atravessar uma cordilheira. Assumo a maior parte da culpa: a sugestão, talvez um tanto excessiva, foi minha, e a insistência para que os amigos Bruno Uehara, Vitor Monteiro e Paula Torres viessem também foi minha. Quando sair em uma pequena aventura, certifique-se de levar pessoas sensatas com você. Mas a verdade é que nossa intenção original era bem mais simples.
A história foi mais ou menos assim: um amigo, também ciclista, havia se mudado para Santiago do Chile. Por que não aproveitar as férias de fim de ano e visitá-lo? Parecia uma ideia perfeita. Mas quem já fez uma reforma em casa conhece o famoso princípio do “já que”... Assim a singela visita ao amigo foi mudando de tamanho. Já que vamos para Santiago, que tal levarmos as bicicletas para pedalar pela cidade? Já que vamos com bicicletas para Santiago, por que não fazer uma pedalada de um dia até Yerba Loca (sim, há um lugar no Chile chamado Yerba Loca) ou Valparaíso? Já que vamos levar as bicicletas para o Chile e fazer uma viagem de um dia, por que não chegar logo a Santiago pedalando? E já que vamos chegar a Santiago pedalando, por que não sair, digamos, de Mendoza, na Argentina, e atravessar a Cordilheira dos Andes?
Diferentemente do que acontece com certas reformas, nós não nos arrependemos nem um pouco da megalomania.
Com a ideia definida, começamos o planejamento – algo tão aconselhável em cicloviagens como em reformas e igualmente provisório em ambas. Considerando os recursos de hoje, como mapas online, aplicativos e sites de reservas, a tarefa não é nada de outro mundo. O objetivo era fazer uma viagem econômica, e chegamos a pensar em acampar pelo caminho, porém a oferta e os preços de hostels e Airbnbs eram mais que adequados, e pudemos deixar as barracas em casa. Quanto menos peso na bicicleta, melhor.
Também era preciso um mínimo de equipamentos para as eventualidades – ferramentas e vestuário, principalmente –, mas uma lição que o cicloturismo ensina (e a gente esquece) é que basta levar alguns poucos itens básicos e práticos. A bicicleta é uma máquina simples, e o corpo humano, bem mais adaptável do que o sedentarismo pode fazer crer. Sempre voltei com a sensação de ter levado um pouco mais do que devia nas viagens que fiz – porém nesta última levei menos que na primeira, e na próxima devo carregar menos ainda. Uma escolha importante, não só pela economia de peso, mas para deixar espaço nas bolsas e alforjes para comida e – obviamente – água. Vale a pena investir, dentro do possível, em itens de boa qualidade, que sejam leves e confiáveis. No nosso caso, já tínhamos quase todo o material de viagens anteriores, e essas mesmas roupas e apetrechos ainda deverão servir em muitas futuras viagens.
Naturalmente, também conversamos com pessoas que tinham atravessado a região pedalando e pesquisamos relatos na internet. Pode parecer incrível, mas hoje quase não há cicloviagem no mundo que não tenha sido feita por alguém, em algum momento, e registrada em blog, vlog ou revista – para não falar de formatos arqueológicos, como livros. Nada de novo sob os pneus.
Eu mesmo já havia feito uma cicloviagem de Barcelona a Paris com o Vitor, grande amigo, ótimo ciclista e excelente fotógrafo (como as imagens destas páginas demonstram tão bem). Ele mesmo acumulava bastante experiência como viajante; na verdade, já tinha percorrido praticamente a mesma rota andina de moto alguns anos antes, e fez um comentário espontâneo no alto da cordilheira que, para mim, virou um dos maiores elogios ao cicloturismo: “Da primeira vez, não vi metade do que estou vendo agora...”. É fato: outras formas de viajar podem ser mais rápidas ou luxuosas, mas a contemplação da paisagem é um luxo dos “lentos” cicloturistas.
Seja como for, ter experiência é sempre útil, porém não absolutamente necessário. Alguns conhecimentos básicos como trocar um pneu e fazer ajustes essenciais são importantes (e fáceis de adquirir). Uma bicicleta confiável e bem regulada – em geral, quanto mais simples, melhor – e o bom senso no planejamento e desenrolar do trajeto dão conta da maior parte das situações. Conosco, atravessamos uma mistura de regiões bem servidas de infraestrutura e áreas relativamente inóspitas em dois países, Argentina e Chile, com um bom nível de desenvolvimento no contexto latino-americano. Sabíamos essencialmente o que esperar e partimos com ótimas bicicletas, bem preparados para eventuais problemas mecânicos e com boa capacidade de carga, sem exageros – com bicicletas mais simples e menos acessórios teria sido perfeitamente possível fazer a mesma viagem.
Também tínhamos uma variedade de experiências em nosso próprio grupo: Vitor, que além de tudo também é um bom mecânico, era o mais expert como um todo. Até por ter feito o trajeto antes, definiu os detalhes da rota e foi o responsável pela “navegação” (era, como eu brincava, o nosso VPS). Paula, sua namorada, já havia atravessado o Uruguai pedalando e usa a bicicleta como meio de transporte regularmente. Apesar de não estar tão acostumada a longas subidas, ela se superou de maneira extraordinária nesse ponto – acho que posso dizer que voltou da viagem com outra percepção da sua capacidade como ciclista. Assim como eu, basicamente apenas um commuter, que há poucos anos teria gargalhado se alguém dissesse que iria pedalar até o topo dos Andes sem empurrar uma única vez (a não ser quando obrigado pela ventania...). E por último, mas não em último, Bruno, ótimo ciclista e excelente mecânico – e mais que excelente pessoa –, que nunca fizera uma cicloviagem na vida, mas já queria repetir tudo de novo assim que chegamos a Santiago. Insisti bastante para que ele fosse – a velha regra de levar pessoas sensatas –, e acho que ele concordaria que valeu a insistência.
Mais que a experiência ou o equipamento, o que realmente importa é o que tínhamos todos nós: o entusiasmo, a vontade de sentir a paisagem e a estrada, o prazer de pedalar e
Uma bicicleta confiável e bem regulada – em geral, quanto mais simples, melhor – e o bom senso no planejamento e no desenrolar do trajeto dão conta da maior parte das situações.
de chegar pedalando, de parar a qualquer momento para descobrir algo bonito ou surpreendente, de conversar e conhecer, de adensar o tempo pela experiência e encher os olhos, os pulmões e a memória de natureza – a mesma natureza de que todas essas coisas são feitas, de que todos somos feitos. A beleza é certa, e os imprevistos também: parte da beleza vem justamente deles, e parte deles é apenas outra forma de beleza, inesperada, didática ou, simplesmente, ainda não conhecida.
Só me resta, quem sabe, relembrar um pouco dessas belezas e imprevistos e tentar provar o que escrevi no começo: vale a pena fazer uma cicloviagem.
Primeiro, destaque para a majestade inesquecível da Cordilheira dos Andes, que vimos do alto antes de pedalar; nosso voo para Mendoza fazia conexão em Santiago, e chegamos ao nosso destino pelo céu antes de alcançá-lo por terra – o que nos deu a oportunidade de medir nossa pequenez diante da natureza duas vezes e sentir, nas turbulências do avião, uma prévia do vento que enfrentaríamos na estrada.
Depois, a chegada ao aeroporto, levando a multimodalidade às últimas consequências: desembarcamos, apanhamos as caixas e montamos as bicicletas lá mesmo. Pedalamos o punhado de quilômetros até Mendoza, com sua graça singela, casas assinadas por arquitetos e curiosas valetas para a água de degelo.
Então veio a viagem propriamente dita: a estrada, com os picos nevados sempre no horizonte, onde chegaríamos em poucos dias; as dicas de um motoqueiro/ciclista hermano divertidíssimo, que nos pouparam bons quilômetros; os azuis do lago de Potrerillos e o farmacêutico mais falante da Argentina, que conhecemos ali; a vegetação surpreendente dos vales andinos, por sua variedade, cores e pelas verdadeiras nevascas de esporos ao amanhecer; o pôr do sol nos Andes, clarão branco se adensando em azul por trás das montanhas; o vale do rio Mendoza e seus mil tons terrosos e pastéis; o sol forte e o ar seco que, estranhamente, aumentavam a sensação de vida; os altares de beira de estrada, cheios de garrafas d’água e devoção simples a uma santa dos oprimidos; o churrasco imaginário que comi em Uspallata, preparado por uma linda chef de 2 anos de idade, e as empanadas reais, deliciosas, que também comemos lá; a simpatia do povo interiorano, livre das garras apressadas da “Capital Federal”; a luta contra o vento, transformando descidas em subidas leves e subidas leves em pequenas batalhas; as ruínas incas, que marcavam outra estrada, bem mais antiga, nos confins de um império desaparecido; a comida inesperadamente deliciosa em uma parada de caminhoneiros em Polvaredas; a cachoeira que nos surpreendeu e refrescou na beira da pista (e que Vitor não tinha visto de moto); a primeira visão majestosa do Aconcágua, descortinado ao entardecer por uma curva em aclive; a neve pela primeira vez na mão (e na caramanhola); o vento forte e gelado de uma manhã em Las Cuevas, onde por muito pouco não chegamos a 4.000 metros de altitude; a descida dos famosos caracoles, driblando o vento e os caminhões no cenário natural mais espetacular que já vivi; a reta de quase 30 km em declive, despencando do topo cinza e azul da cordilheira rumo à exuberância do vale, em direção ao Pacífico, quase uma mudança de planeta; o quartel dos bombeiros onde dormimos em Los Andes – um clássico do cicloturismo – e os filhos dos bombeiros, que nos encheram de perguntas divertidas; os pneus furados no que seria o dia mais fácil (valeu, Uehara!) e o restaurante incrível que Paula descobriu em uma ruazinha em Catemu; o chalezinho no crepúsculo plácido e sereno de Ocoa; a chegada ao oceano em Con-con (e o restaurante estranho, com gente esquisita); as ladeiras, as cores e os grafites de Valparaíso (e as aventuras nas “quebradas” da cidade); as saborosíssimas nêsperas de Curacavi, que uma senhora gentil me deu na porta do mercado e que amarrei na bicicleta; a linda e dura subida antes de Santiago (no topo dela, comemos as nêsperas); a chegada à capital chilena, em um pelotão cerrado para evitar os riscos da autoestrada; e o pôr do sol no Cerro, com a cidade espalhada, espraiada abaixo, e as silhuetas dos três amigos que viveram tudo isso recortadas em primeiro plano.
Eu insisto: se você sabe e gosta de pedalar, faça uma cicloviagem. Pequena ou grande, não importa – todas são enormes, porque o mundo é enorme. Escolha a rota, empacote a bicicleta (em caixas, sempre disponíveis em uma bicicletaria perto de você) e parta. Pensando bem, a minha talvez não tenha começado em Mendoza, nem mesmo dois anos antes em Barcelona. Quem sabe se iniciou quando fui ao trabalho de bicicleta pela primeira vez, ou antes, quando pedalei para buscar pão para a minha avó, ou talvez, até mesmo, com a primeira bicicletinha na infância – época em que o tempo passa devagar porque tudo é novo, e a gente tem a natureza nos olhos, nos pulmões e na memória. Não é preciso muito, afinal, qualquer um pode fazer uma cicloviagem.