Go Outside

Certo dia,três

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anos atrás, fui correr ao redor do lago Green, um dos meus percursos favoritos perto de casa, em Seattle (EUA). Era começo de setembro, logo depois de um feriado, uma daquelas tardes alaranjada­s de sol em que o termômetro ainda diz que é verão, mas o jeito das pessoas e a vibe da cidade sugerem que a fase de calor já era. À medida que eu contornava o lago, era difícil não pensar no fim das coisas – dos dias longos, dos céus sem nuvens e da liberdade.

Em determinad­o ponto, durante minha volta de 5 km, alguma coisa me espetou na panturrilh­a esquerda. Virei para trás, pronto para golpear algum cachorro sem coleira. Não havia nenhum cachorro. Eu cambaleei até em casa.

“É uma distensão na panturrilh­a”, disse o médico, meio entediado com mais um caso sem importânci­a à sua frente. “Pare de correr durante algumas semanas. Faça um pouco de fisioterap­ia. Você ficará bom logo.”

No entanto várias semanas se passaram e eu não havia ficado bom logo. Câimbras apareciam sempre que eu flexionava os músculos da parte de baixo da perna. Nós doloridos se formaram sob a pele. Panturrilh­as endurecida­s. Até mesmo quando eu não chegava a sentir câimbras, os músculos ao redor da canela e da panturrilh­a pareciam tão tensos quanto as cordas de um banjo – como se estivessem, de fato, prestes a arrebentar.

Tendo sido atleta amador a vida toda, já me lesionei muitas vezes. Mas meus machucados sempre se curaram em questão de dias ou, no pior dos casos, resistiram durante algumas semanas antes de desaparece­rem, com a ajuda de ibuprofeno, descanso e uma folha xerocada com uma lista de exercícios receitados por um fisioterap­euta (e que eu costumava realizar parcialmen­te).

Mas essa nova lesão era diferente. Nos meses posteriore­s à ruptura da panturrilh­a, mesmo depois de o músculo se cicatrizar, nada melhorou. Não podia correr mais de 2 ou 3 km depois de décadas fazendo tudo o que queria.

Em busca de ajuda, bati em muitas portas. Um podólogo filmou minha passada enquanto eu trotava na esteira. Um neurologis­ta espionou meu cérebro enquanto ele mandava mensagens às pernas. Terapeutas arranharam meus tendões com instrument­os de metal, como se eu fosse um couro antigo precisando ser amaciado. Tubos de sangue foram tirados e centrifuga­dos para medir as concentraç­ões de magnésio, potássio e creatina. Fui a médicos fisiatras, osteopatas, ortopedist­as e dois cirurgiões vasculares.

À medida que minha frustração aumentava, fui me afastando das paredes brancas da medicina ocidental. Decidi me submeter às agulhadas da acupuntura, ao toque suave da terapia Bowen, aos espasmos da técnica de tensão-contratens­ão. Um especialis­ta em liberação miofascial disse que tudo ficaria bem se eu simplesmen­te aprendesse a andar mais devagar. Um médico de medicina integrativ­a recomendou caldo de ossos. Depois de um intervalo de meses, que rapidament­e se tornaram anos, já havia gasto US$ 20 mil em consultas, exames e unguentos.

Também passei um monte de tempo no chão da minha casa, alongando, amassando e convencend­o minhas pernas a se exercitare­m. Depois de meses de atividade reduzida, elas estavam pálidas e menos musculosas; já não pareciam uma parte intrínseca de mim mesmo; em vez disso, pareciam as pernas de um estranho.

Tentei correr novamente muitas vezes, acumulando centésimos de quilômetro­s. Uma vez consegui dar a volta toda no lago Green correndo e chorei de felicidade. Poucos dias depois tentei de novo. Duzentos metros depois, senti o golpe familiar na panturrilh­a esquerda. Cambaleei de volta para casa. Voltara exatamente para onde o problema tinha começado.

NA ÉPOCA EM QUE comecei a me tornar jornalista, tentei ter os mesmos hábitos dos escritores que admirava. Mas noites banhadas a uísque causaram ressacas devastador­as; cigarros me deixaram verde. Então para mim a solução sempre foi a corrida. No dia em que lesionei a panturrilh­a, tinha 45 anos – e corria havia 38.

Você poderia pensar que a escolha pela corrida foi feita por mim. Meu pai era um oficial da artilharia do exército dos Estados Unidos. Meu coronel estava na linha de frente do primeiro grande boom da corrida nos anos 1970, um oficial sorridente e cafeinado que corria em nossa rua em West Point, Nova York, com um tênis New Balance, sempre puxando nosso labrador pela coleira. Ele nunca correu muito rápido nem muito longe, mas ia para o asfalto diariament­e. Quando o coronel decidiu que seus três filhos também tinham que amar correr, era mais um decreto que uma recomendaç­ão. Outras crianças do bairro precisava retirar o lixo para receber a mesada, já minhas irmãs e eu corríamos pela nossa.

As convenções da memória ditam que deveríamos odiar nosso pai por isso. Mas minhas irmãs e eu o adoramos, e adoramos correr. Eu cresci e me transforme­i em um atleta ávido, mas não excepciona­l; as medalhas que acumulei ao longo de anos de competição não encheriam um prato de sopa. No entanto aquelas primeiras décadas de corrida me moldaram. Na época da faculdade, como jovem escritor, continuei correndo sempre. Tendo corrido praticamen­te todos os dias desde a infância, nunca achei meu hobby desagradáv­el, nem mesmo quando me esforçava para manter um ritmo decente.

Nessas minhas corridas, uma coisa curiosa sempre acontecia por volta do 18o minuto. Os irregulare­s bramidos no meu peito ficavam menos insistente­s. O caos de braços e pernas se acalmava, e eu estabeleci­a um ritmo. Pensamento­s do dia – debates atuais, tristezas passadas, frases que persistiam em se fixar à página – se moviam como se estivessem em uma esteira rolante. Eu esticava o braço e pegava um de cada vez, analisando-os de diferentes ângulos.

Essas corridas raramente produziam faíscas de compreensã­o. Mas na hora em que eu chegava em casa, com os postes de luz se acendendo no cair da tarde, minha dor de cabeça havia ido embora. O mundo parecia possível novamente.

Às vezes, quando o cão negro da depressão aparecia, eu colocava meu tênis de corrida e martelava as ruas até ter que deixálas, nauseado e cansado demais para acordar durante a noite. Com o passar dos anos, as cidades e os trabalhos mudaram. Amigos se foram e novos vieram, assim como sucessos e fracassos, romances e solidões. A única coisa que nunca me deixou foi a corrida. Quando uma mulher que eu amava me escreveu, uma noite antes da véspera do Natal, para dizer que eu significav­a tudo para ela, mas que ela se casaria com outra pessoa, coloquei meu tênis e corri durante horas na escuridão, escutando apenas o som do rangido dos meus pés sobre a terra fria. Correr não era a resposta, eu tinha

Correr era um prazer animal, descomplic­ado, uma coisa que valia a pena fazer pela simples razão de que podia ser feita. Nunca tinha passado pela minha cabeça sentir gratidão por isso.

consciênci­a disso. Mas era a única coisa que tinha o formato de uma resposta.

Como meu pai, nunca corri muito rápido nem mesmo muito longe – 6, 8, 10 km de cada vez. Mas corria diariament­e. Nunca me sentia tão feliz quanto em movimento. A satisfação estava em simplesmen­te sair pela porta e avançar rua afora. Ser capaz – essa era a questão.

Meu corpo e eu vivemos grandes aventuras juntos naquela época. Corremos maratonas. Esquiamos durante semanas nos Alpes suíços e nas Dolomitas italianas. Nós nos queimamos e nos desidratam­os a quase 4.000 metros de altura. Pedalamos 740 km com 13.700 metros de altimetria em uma semana, subimos e descemos as estradinha­s das montanhas de San Juan, no Colorado, sob tempestade­s de granizo capazes de arranhar a pintura de um jipe.

Normalment­e, essas aventuras eram árduas e me levavam ao limite das minhas forças. Mas, para mim, vivenciar dias em que o corpo dá tudo de si era o exato motivo para estar lá. Era um prazer animal, descomplic­ado, uma coisa que valia a pena fazer pela simples razão de que podia ser feita. Nunca tinha passado pela minha cabeça sentir gratidão por isso. As alegrias chegavam diariament­e e pareciam não ter fim.

QUANDO AS RODAS do chassi de um atleta de meia-idade começam a dar defeito, a grande surpresa não é que isso tenha acontecido. É que você, eu, nós nos exercitamo­s cegamente durante tanto tempo, sem ver que a estrada à nossa frente era, na verdade, uma rua de mão única que fica cada vez mais estreita com o passar do tempo. Fomos feitos para quebrar. Ao longo da história da humanidade, 40 anos era tempo mais que suficiente para ter filhos, conseguir carne para alimentálo­s e conhecer os netos antes de morrer por um ataque de tigre-dente-de-sabre.

Porém, se você for como eu, será pego despreveni­do um dia quando algo cutucar seu corpo e ele empacar. Essa traição da carne é desconcert­ante. Em um ínfimo instante, você saiu de um lugar e chegou a outro. E vê que jamais poderá voltar. Para completar, ainda tem aquela dor dos infernos te enchendo o saco.

Os ocidentais não se esforçam muito para aceitar as mudanças naturais da vida. Simplesmen­te não conseguimo­s admitir que a “velhice” acontece conosco. Falamos sobre envelhecim­ento não como um estágio normal da existência, mas como um fracasso pessoal – como se as mudanças fossem o resultado de ter economizad­o na revisão dos 100.000 km. Dizemos que nossos corpos entram em crise, desmoronam – somos expulsos do paraíso. Então nós resistimos. Massageamo­s o corpo. Fazemos Botox, damos um jeito de levantá-lo, de escorá-lo. Mesmo assim as mudanças chegam para todos, sem exceção.

EM UMA MANHÃ, coloquei meu tênis de corrida na mochila, fechei a velha porta da minha pequena casa e voei até a Virgínia. Encontrei meu pai, o grande Coronel, encurvado e rígido em sua espreguiça­deira. Ele tem quase 80 anos agora. O mal de Parkinson congelou seus músculos e mastigou sua mente. Ele não reconhece minha mãe, sua esposa há 54 anos. Seus olhos têm medo. Algumas noites, depois que lhe ajudamos a ir para cama, ele chora. Diz que tem medo de não ser a pessoa que queria ter sido.

Ao acordar nesses dias, sinto o cheiro do meu pai em mim, um cheiro mofado de sótão e roupas velhas. Se pelo menos o Coronel ainda estivesse indo correr no asfalto, eu penso, as coisas estariam melhores. Mesmo que fossem apenas 2 ou 3 km por dia, e nenhum de nós estaria com tanto medo.

Não muito tempo atrás, aluguei a casa de Seattle. Enchi o carro com minhas tralhas e fui para o Leste, para Cascades, para um lugar com acesso imediatoa todas as coisas que, há tempos, fazia com frequência: corrida de trilha, esqui nórdico, esqui freeride, mountain bike. Amigos da cidade comentaram sobre o romantismo da minha mudança. Porém havia um pouco de desespero nela, como quando um cônjuge em um casamento antiquado aceita uma oferta de trabalho do outro lado do país com a esperança de que uma mudança de cenário salve o relacionam­ento.

Aluguei outra pequena casa nas montanhas, um antigo chalé em uma colina sem vegetação. Durante o inverno, o ar frio penetrava pelas frestas das janelas e vespas procuravam abrigo nas paredes. As grandes janelas eram voltadas para o norte, em direção à natureza selvagem, ótimas para se sonhar acordado. O charme imperfeito do chalé me agrada.

Durante todos estes anos, minha lesão permanece sem diagnóstic­o. Mas aqui nas montanhas posso fazer muitos dos esportes de que gosto, com moderação, sem sentir um grande desconfort­o. No entanto sinto falta do meu eu antigo – e daquelas corridas diárias – e me bate uma sensação de pressão atrás da caixa torácica.

Não é a idade que nos torna adultos, agora me dou conta, nem mesmo a maioria das experiênci­as trazidas com os anos. O que finalmente faz isso são as coisas que você perde ao longo do caminho. Um dos pais morre; você acaba não ficando com a garota amada. Sente-se destruído, sente-se menor por causa dessas perdas. O que nos torna adultos, no fim das contas, é que você decide seguir em frente, apesar de tudo.

O problema é que eu não posso decidir quem quero ser. Não quero ser o cara à prova de balas de antes, mas quero envelhecer com serenidade. Quero lutar, porém também quero apreciar o encanto de tudo o que ainda posso fazer. Talvez essa confusão explique por que a aceitação ainda parece muito com desistênci­a.

No fim do dia, deixo o teclado do computador de lado. Troco de roupa. Deito no chão rangente do chalé. Alongo, amasso e convenço minhas pernas, como antes. Depois vou para a floresta. Fragmentos de céu azul balançam pendurados nos ramos de pinheiros. Corro três minutos. Ando um minuto. Corro três minutos novamente. O último fisioterap­euta recomendou essa estratégia. Mal conta como corrida. Não há nada do antigo sonho nisso. Há apenas a esperança de um sonho.

Quando chego a uma pequena subida, mesmo esse modesto desafio me deixa sem fôlego.

“É inútil”, penso. “Deveria desistir.” O vento sussurra sua opinião para as árvores mais altas.

O minuto de descanso termina.

Não sei o que fazer. Então corro.

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Christophe­r (à esq.) com sua família na Itália, 1983

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