Arriba, Colômbia!
ESQUEÇA AS FARCS OU PABLO ESCOBAR: O PAÍS QUE SOBE NO PÓDIO DO TOUR DE FRANCE CONSOLIDA-SE COMO UM DOS MELHORES PARAÍSOS DA BIKE NO MUNDO
passar depois das 16h”, conta Tomás Molina, 42, colombiano que morou anos fora de seu país e atualmente é coproprietário da agência de turismo Colombia Cycling, focada em pedais desafiadores pelas montanhas locais. Enquanto ele diz isso, sua bike vai engolindo quilômetros e quilômetros de repechos, as subidas curtas e duras que compõem o “quebra-canelas” que é o relevo deste que pode ser considerado, sem nenhum dúvida, um dos maiores paraísos na Terra para quem ama bicicleta.
A Colômbia de hoje esbanja estradas de asfalto impecável, cercadas de pueblitos pacatos com bons hotéis, comida de qualidade e – o melhor! – montanhas a perder de vista, esperando ciclistas que queiram desvendá-las. Para deixar o cenário ainda mais legal, é em seu território que fica o Alto de Letras, subida de 80 km e 3.800 metros de ascensão acumulada que, de uns anos para cá, vem ficando famosa como uma das mais duras do mundo do ciclismo.
Com tudo isso em mente, decidi verificar de perto se a Colômbia poderia mesmo “quebrar o galho” como destino ciclístico, já que viagens para os Alpes, os Pirineus e outros lugares europeus custam caríssimo (e em euro, buááá). Além disso, eu estava curiosíssima para descobrir, in loco, por que o país não possui apenas a mais sólida cultura de amor à bicicleta da América Latina como também alguns dos mais talentosos ciclistas dos últimos tempos – em julho de 2019, o jovem Egan Arley Bernal Gómez, de apenas 22 anos, se tornou o primeiro sul-americano a ganhar um Tour de France.
A vitória de Bernal não é fruto da sorte, mas, sim, de diversos fatores que, juntos, ajudaram a tirar a nação de uma guerra civil braba e a arrancar de vez o fantasma de Pablo Escobar do imaginário coletivo. “A primeira razão é cultural. Na Colômbia, sempre se usou muito a bicicleta como meio de transporte”, diz Tomás. Até aí o Brasil também utilizava largamente a bike décadas atrás, depois deixada de lado para dar espaço às ambições da indústria automobilística. “Temos programas de incentivo à bike, incluindo um projeto que entrega bicicletas a povoados isolados, para que as crianças possam ir para a escola pedalando”, revela ele. Ah... que inveja! Isso mesmo em um território dominado por três grandes ramos da Cordilheira dos Andes, com ruazinhas íngremes de fazer chorar os mais destemidos atletas.
Enquanto mostra as belezas da região de Antioquia, no noroeste do país, onde tem uma casa linda e confortável apenas para receber seus clientes ciclistas, Tomás explica
“Aqui, pouquíssimo tempo atrás, havia postos de controle da polícia checando cada carro, e ninguém podia
que, na Colômbia, apenas 15% da população possui carro (enquanto no Brasil há um automóvel para cada 4,4 habitantes). Some a isso incentivos privados e governamentais ao ciclismo como esporte – a Vuelta a Colombia e outros campeonatos foram ganhando corações e mentes locais e ajudando a unir um país em torno de heróis em duas rodas. Daí surgiram estrelas como Lucho Herrera e, mais tarde, Nairo Quintana.
Acordos de paz foram amenizando conflitos com paramilitares, em especial com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs). Não que o país seja uma Suíça, longe disso. Ainda há grupos armados, e a desigualdade econômica é brutal. Pueblitos longínquos encravados nos Andes são paupérrimos, e o narcotráfico ainda é uma das principais indústrias locais.
Entretanto a Colômbia vive uma nova era, de maior esperança e, principalmente, de paixão pela bicicleta. Não é apenas a qualidade das estradas que encanta; os motoristas são muito educados e quase sempre afastam o carro quando passam do seu lado, não raro dando uma leve buzinadinha e falando “Vamos, Nairito!” para levantar o ânimo do pelotão.
Os três ramos de cordilheira que cortam o território oferecem inúmeros desafios, não só na estrada como no mountain bike (sem falar no BMX, modalidade que coroou a campeã mundial Mariana Pajón). Antioquia é bastante conhecida, e foi a região que eu escolhi para desbravar. Porém há departamentos igualmente ricos em preciosidades ciclísticas, como Boyacá, a terra de Bernal e Nairo.
Pedalar pelas montanhas colombianas requer pernas fortes e condicionamento em dia.
A altitude cobra seu preço, ainda mais de nós, brasileiros. Mas há roteiros para todos os tipos de ciclistas, e até o cicloviajante mais descontraído vai amar conhecer pedalando povoados como El Retiro, uma cidadezinha encantadora fundada em 1790 com casas de época, ruas de pedra e senhorzinhos com o típico chapéu de palha. Outro destino mágico é Guatapé, vilarejo que no passado foi inundado com a chegada de uma represa e que renasceu à beira da água, com construções ultracoloridas e uma espécie de “Pão de Açúcar” esquisitão, a Piedra del Peñol. O lugar é bastante turístico, mas chegar de bike e conhecer as vielas em duas rodas tira qualquer mal-estar com as multidões e se revela um programa peculiar e inesquecível. Das altas montanhas descemos 140 km até o vale que fica no pé da cordilheira, para enfim chegar à Reserva Natural Cañon de Río Claro. Trata-se de uma pequena área protegida cortada por um rio verde cristalino, cercado de paredões rochosos dramáticos e uma densa floresta. Ali, pernoitamos em um dos quartos mais lindos que já conheci: simples, porém praticamente dentro da selva, sem qualquer janela para te isolar do mato e do som do rio e dos grilos.
De lá, seguimos para a cidade de Honda, de arquitetura colonial e impressionantes 40 pontes que cruzam um rio. O mercado central vale a visita, após um pedal pelas estradas praticamente desertas do seu entorno. Rústico, o lugar é uma oportunidade única de interagir com locais, apreciar vegetais e frutas exóticas e, claro, tirar fotos.
Honda foi nosso ponto de partida para a conquista do Alto de Letras. Em nosso pedal, faríamos 100 km, pois a cidade fica a 20 km do pé da serra. Pedalar até o cume do Letras não é para qualquer um. Além de longo, o trajeto chega a mais de 3.500 metros de altitude, o que torna tudo muito mais difícil depois de mais de cinco horas em cima da bike. Porém vale a pena demais: ao longo do percurso, você pode apreciar plantações de café e povoados distantes. A paisagem vai mudando conforme a bike ganha altitude, saindo de um verde tropical até um mar de morros mais secos. A temperatura despenca e, como “presente”, ainda tomamos uma baita chuva de granizo na cabeça. Choro, desespero, cansaço extremo, sim, houve. Mas também abraços, força de vontade, sensação de missão cumprida. E um desejo enorme de retornar para lá assim que possível.
De cima do Letras, surge um calor no coração, apesar do frio cortante. Colômbia, te amo. Gracias por ser tan hermosa.
A Colômbia de hoje esbanja estradas de asfalto impecável, cercadas de pueblitos pacatos com bons hotéis, comida de qualidade e – o melhor! – montanhas a perder de vista, esperando ciclistas que queiram desvendá-las.