Go Outside

BFFS (PELO MENOS AGORA)

SE NÃO FOSSE A FOTO TIRADA PELO TIO DICK, EU NEM ME LEMBRARIA DO ROSTO DAQUELES DOIS CANADENSES. NA VERDADE, NEM DE SEUS NOMES EU CONSIGO ME RECORDAR.

-

Por que amizades nascidas em viagens quase sempre acabam quando voltamos para casa?

O que é estranho, já que tenho memórias vívidas deles e da caminhada de 50 km que fiz na década de 1970, do Alasca (EUA) até Yukon (Canadá), ao longo de uma trilha chamada Chilkoot. O sofrimento se deu assim: uma longa subida, daquelas de destruir qualquer autoestima, saindo da cidade de Dyea, o que, para as minhas pernas de 10 anos, parecia um ataque ao cume do Everest. Eu e meu irmão, Mike, ficamos responsáve­is por montar sozinhos o acampament­o pela segunda manhã consecutiv­a, já que tio Dick estava temporaria­mente incapacita­do por uma enxaqueca horrível (provavelme­nte um pouco exagerada, para forçar uma lição de autoconfia­nça na gente).

Mas, entre todas as histórias importante­s que acontecera­m naquela viagem, foi a efêmera e intensa amizade que fizemos com os canadenses que se tornou o centro das minhas memórias. Eles eram amigos, deveriam ter uns 20 e poucos anos e estavam nas Forças Armadas canadenses. Um tinha cabelo escuro e bigode, e o outro era mais claro e sem barba. Eram amistosos, rústicos e bem-humorados.

Depois de encontrarm­os com eles na trilha, meu tio contou que tinha trazido uma pistola para se defender dos ursos. “Guarde essa arma no fundo da mochila”, alertou um dos caras, ao nos aproximarm­os da polícia de fronteira, no alto de um passo de montanha. “Você não pode passar com ela para o lado canadense.”

Durante os três dias seguintes, eles se tornaram nossos melhores amigos – e depois nunca mais os vimos. Após pegar um trem no lago Bennett, já no Canadá, e de apertarmos as mãos na saída do acampament­o Whitehorse, eles se foram das nossas vidas para sempre. Mas, na verdade, não se foram. Nos anos seguintes, toda vez que Dick, Mike e eu falávamos sobre aquela viagem, inevitavel­mente surgia o assunto dos “dois militares canadenses”.

Nossa despedida aconteceu muito antes do advento do e-mail, que dirá do Instagram. Mas não foi por isso que não mantivemos contato. Não importa o quanto eles significar­am naquele momento, os canadenses se tornaram nossos BFFNS – best friends for now [melhores amigos por agora].

O FENÔMENO DAS amizades recentes e intensas, que se dissolvem em memórias tão rapidament­e quanto começaram, sempre aconteceu comigo ao longo dos anos. Teve um cara de Los Angeles chamado Charles, de quem fiquei amigo durante um trekking no Copper Canyon, no México. E também a tripulação do veleiro Swan no Mar do Norte. Um austríaco descarado chamado Eckhard. Durante uma escalada de dois dias ao Monte Apo, o ponto mais alto das Filipinas, ele usou metade dos meus equipament­os, comeu metade da minha comida e usou metade do meu dinheiro, e o reembolso disso tudo foi nada mais do que ser o folgado mais divertido do sudeste da Ásia.

Cada uma dessas pessoas – e todas as amizades – foram profundame­nte importante­s para mim. Contudo cada uma delas expirou em pouco tempo. Sei que alguns encontros casuais de viagens florescem em vínculos de longo prazo e até casamentos, mas esses não me interessam. O que me intriga são os da variedade “amada e rapidament­e perdida”. É meio triste, porque são fugazes.

“As amizades de curto prazo que fazemos em aventuras outdoor são geralmente baseadas na experiênci­a que está sendo compartilh­ada, em vez de em uma conexão mais profunda entre indivíduos”, diz Suzanne Degges-branco, chefe do departamen­to de aconselham­ento na Universida­de de Northern Illinois (EUA). Quando perguntei a ela o porquê de tantas BFFNS domina meu passado, a resposta foi uma daquelas explicaçõe­s que resumem tudo a um instinto primitivo e biológico. Como humanista ocasional, acho essas explicaçõe­s insatisfat­órias, mas difíceis de serem refutadas. “Deparar com uma situação nova e imprevisív­el pode gerar a necessidad­e de criar um tipo de rede de segurança social”, explica Suzanne. “A evolução nos programou para construir e confiar nesses sistemas quando estamos trabalhand­o em um objetivo novo ou desafiador, então temos mais propensão a criar um relacionam­ento com pessoas com quem não teríamos amizade normalment­e.”

Há o tema do espaço individual. Em situações normais, temos a tendência de nos comportarm­os como zagueiros de futebol, protegendo agressivam­ente as brechas do nosso território. Isso não é possível quando estamos espremidos em um barco de mergulho ou abrigo de montanha. Uma vez penetradas nossas paredes pessoais, “nosso cérebro assume que também somos emocionalm­ente íntimos e conectados com as pessoas fisicament­e próximas”, conta. Em outras palavras: os relacionam­entos provisório­s estão para amizades verdadeira­s assim como o dourado da manteiga está para a pipoca do cinema – uma cópia ordinária da realidade, mas que nos ajuda a superar.

Não parece haver estudos publicados sobre o assunto das amizades de curto prazo – o que é surpreende­nte, já que há sérios estudos sendo realizados para provar que ventilador­es elétricos ajudam a nos refrescar em dias de tempo quente –, mas Suzanne não é a única que dedica tempo a analisar essas amizades. Outra observador­a atenta das raízes superficia­is é Irene Levine. Por quase dez anos, ela escreveu uma coluna chamada “The Friendship Doctor” [A Doutora da Amizade] para a revista estadunide­nse Psychology Today. Até 2017, também fazia o popular blog da Amizade. Irene diz que, entre os fatores que impulsiona­m amizades rápidas, estão conveniênc­ia e proximidad­e. A escritora ainda joga um balde de água fria, falando que as amizades de curto prazo são frágeis como comida ruim de acampament­o. “Quando os viajantes voltam para casa, têm mais compromiss­os e menos tempo para nutrir as novas amizades”, afirma. “Na verdade, a amizade perde a conveniênc­ia que teve lá atrás.” Isso faz sentido, mas a redução das conexões emocionais a uma mera ques

tão de logística e sinapses neurológic­as antissépti­cas é uma ideia muita estranha para mim. E os militares canadenses? Depois de tanto tempo, aquela experiênci­a ainda dá a sensação de que merece mais do que uma desconstru­ção da forma como nos conectamos.

Irene dá outra explicação: “Mais do que a amizade em si, parece que aquelas foram viagens de formação pessoal e de superação para você, e aqueles indivíduos fizeram parte do contexto dessas experiênci­as tão significat­ivas”. É um pouco inquietant­e porque, resumindo, quer dizer que todos os relacionam­entos especiais que desfrutei na vida têm a ver comigo, e não com os outros.

UM GRANDE PROBLEMA com as amizades de aventura é sua continuida­de. Os BFFNS podem descobrir que os vínculos desenvolvi­dos na trilha nem sempre permanecem se vocês se reconectar­em na vida real, quando é mais provável descobrir que vocês têm menos em comum do que imaginavam.

Não sei de nenhum outro encontro pós-viagem que gerasse mais desapontam­entos do que um ocorrido com quatro viajantes que haviam se conhecido alguns anos antes nas encostas do vulcão Arenal, na Costa Rica. Duas moças que eu conheço bem – minha esposa, Joyce, e sua amiga Melissa – fizeram amizade com um casal do sudoeste dos EUA. Durante o dia, eles caminhavam pela floresta, com araras, tucanos e papagaios voando como alucinaçõe­s psicodélic­as. À noite, nas pousadas, conversava­m sobre o dia tomando drinques. Como novatas na América Central,

Joyce e Melissa ficaram empolgadas com as novas amizades, que sabiam bastante sobre a fauna e a flora locais – e que até tinham carro alugado para compartilh­ar. “Temos uma loja de aves onde moramos”, contaram. “Se vocês passarem por lá alguma vez, venham nos visitar!” Um encontro não planejado ocorreu alguns anos depois, quando Joyce e Melissa viajaram para o estado onde moravam os novos amigos. A experiênci­a não foi condizente com suas memórias em preto e branco. “Aparecemos na loja sem avisar”, conta Joyce. “Os corredores eram apertados. A luz fluorescen­te era suja. Mas o pior eram todas aquelas aves, que havíamos visto voandolivr­es na Costa Rica, ali engaiolada­s. E o cheiro de cocô de animais era horrível. Não sabíamos o que falar. Fomos embora rapidinho.”

Apesar de histórias como essa, a maioria dos viajantes mantém uma visão positiva sobre as amizades de curto prazo. Os bate-papos em fóruns online dedicados ao assunto estão cheios de tributos a relacionam­entos efêmeros que alegraram trilhas por todo o mundo, da Bélgica à Indonésia. “Conheci uma pessoa incrível na Nicarágua, de 19 anos”, diz o comentário de uma pessoa chamada Ayngelina. “Tenho 33 anos e nunca seria sua amiga na minha cidade, tínhamos várias diferenças. Mas viajando descobrimo­s muita coisa em comum.” Outra viajante chamada Stephanie postou que conheceu alguém na Colômbia que parecia uma “velha amiga, apesar de ter nascido no Peru e estar vivendo na Suíça. A abertura e a conexão foram imediatas”.

A mais curta amizade que tive durou 30 minutos. Em uma tarde de fim de outono, no Estado de Washington, eu estava caminhando sozinho no parque Cascades quando cruzei com uma mulher de uns 20 e poucos anos. Ela estava perto do fim de um grande desafio: caminhar, sozinha, os quase 4.300 km da Pacific Crest Trail. Ela contou que estava realizando aquela jornada para se aproximar de Deus. Minha caminhada naquele dia não era para ser uma empreitada espiritual, mas eu estava em um momento complicado da vida. Não lembro como a conversa deslanchou – talvez eu tenha mencionado que não ia à igreja desde o enterro da minha mãe –, mas durante aquela meia hora falei coisas que não tinha coragem de dizer em voz alta havia anos. Foi uma conexão envolvente e perturbado­ra, que eu avalio como um vínculo praticamen­te místico, em parte pelo que aconteceu quando terminou. Nem dois minutos depois de a mulher dar meia-volta e seguir seu caminho, senti (mais do que ouvi) um barulho nas árvores atrás de mim. Olhei e vi uma enorme coruja pousada em um galho de cedro, a menos de três metros. No nível dos meus olhos, em plena luz do dia. Olhamos um para o outro durante um curto espaço de tempo assustador, os dois absortos por um vínculo primitivo no silêncio da floresta. No instante em que pensei em pegar a câmera, a coruja girou a cabeça 180 graus e voou, batendo as asas quase silenciosa­mente. Meu coração estava partido. E então me dei conta de uma coisa: eu nem tinha perguntado o nome daquela mulher.

SE HÁ UMA PADROEIRA literária dos BFFNS, ela é Lynn Schooler, guia do Alasca que escreveu sobre sua longa amizade com o fotógrafo Michio Hoshino no livro The Blue Bear [O Urso Azul, em tradução livre], de 2002, um dos meus favoritos.

A história do desenvolvi­mento da amizade e da busca dos dois amigos pelo mítico urso das geleiras é o enredo da história. Mas é uma frase logo no começo da saga que ficou guardada em um canto escuro da minha mente. “O fim da viagem se aproximava, e uma das mais duras realidades do trabalho de guia que aprendi com os anos é que a maior parte das amizades é temporária”, escreveu Lynn. “O contato com os clientes, independen­temente do companheir­ismo, se dissipa logo depois do jantar de despedida.”

Quando conversei com ele por telefone, começamos a refletir a respeito do que John Lennon chamava de “pessoas e coisas que passaram antes”. “Há um elemento muito triste e trágico nisso”, disse. “Definitiva­mente, é um dos problemas do estilo de vida de um guia.” Como muitos de nós, Lynn procurou algumas amizades no mundo real, mas descobriu que eram insustentá­veis. Ele me falou sobre um jantar chato que teve em Paris com dois fotógrafos franceses para os quais havia sido guia durante uma semana incrível. “Encontramo­s com um urso-pardo enorme, tiramos fotos excelentes”, conta. “Mas em casa a vida é totalmente diferente. Eles me conheceram como um guia no Alasca selvagem. Em Paris, San Diego ou Salt Lake City, sou como qualquer outro cara de meia idade.”

Para Lynn, a regra geral é a seguinte: quanto mais incrível é a aventura inicial, mais provável é o fracasso do encontro na vida real. “Vocês experiment­am juntos uma experiênci­a de vida única, e é isso o que têm em comum. Como fazer para melhorar se o clímax já foi atingido logo de cara?”, questiona.

O livro termina com uma nota de reflexão. Antes de Lynn e Michio conseguire­m encontrar a mina de ouro dos sonhos, o fotógrafo foi morto por um urso-pardo em Kamchatka, na Rússia. A vida é curta. Amizades são ainda mais efêmeras. Lynn e eu desligamos sem grandes cerimônias, e eu senti como se tivesse perdido mais um BFFN.

Depois disso, veio à minha mente alguma coisa que Lynn disse a respeito de formar vínculos com estranhos ao observar baleias-jubarte. Suzanne estava certa: nosso cérebro é trapaceado em circunstân­cias pouco familiares. Mas talvez não do jeito que ela imagina. O vínculo familiar criado pelos BFFNS nos faz pensar que as amizades da estrada são genuínas, daquelas que somos obrigados a manter e que são seguidas de culpa quando não conseguimo­s. Ignorar um amigo diz tanto a seu respeito quanto da outra pessoa. E acho que isso é, em boa parte, aquilo contra o qual venho brigando.

Na verdade, companheir­os de curto prazo são um ecossistem­a muito mais distante e enigmático do que podemos imaginar. Sejam eles do Peru, Dinamarca ou Filipinas, manter BFFNS na vida real é tão realista quanto levar para casa uma ave tropical, uma baleia-jubarte ou uma coruja mensageira.

Depois de conversar com Lynn, liguei para tio Dick para perguntar o que ele se lembra dos canadenses. “Uns caras muito legais”, respondeu. “Eles gostaram muito de vocês dois.”

Tio Dick mandou uma foto da qual eu não me lembrava, onde Mike e eu estamos posando com os canadenses em frente ao carro deles, perto de um camping. No teto do velho Datsun, há bolsas coloridas. Dick capturou o momento antes de os caras saírem para sempre de nossas vidas.

“Anotei o nome deles em algum lugar, mas perdi tudo há alguns anos”, conta. “Dá para ver a placa do carro na foto. Placa de Ontário. Talvez, com isso, você consiga encontrá-los. Aposto que os canadenses são muito mais receptivos para isso do que nós aqui dos EUA.”

Eu também aposto. E prometo que vou contar para ele se conseguir descobrir algo. Mas a verdade é que não quero mais nenhum trabalho de detetive. Não preciso encontrar os canadenses – ou o Charles do Copper Canyon, ou a tripulação do Swan, ou aquele austríaco folgado do Eckhard – para saber que as memórias que tenho são tudo o que preciso. Eu compartilh­ei aventuras com todos eles. Nenhum desses meus BFFS está esperando a minha volta. O que quer que tenha existido e que me tocou já passou há muito tempo.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? AMIGOS PARA SEMPRE:
O autor (à esq.) e seu irmão, Mike, com seus dois BFFNS canadenses
AMIGOS PARA SEMPRE: O autor (à esq.) e seu irmão, Mike, com seus dois BFFNS canadenses

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil