Go Outside

ZONA DE PERIGO

A cabeça lateja, os músculos enrijecem com câimbras, o coração acelera. Você fica zonzo e começa a vomitar. Essa é a sensação de sofrer de insolação – saiba como identifica­r o perigo

- Por Amy Ragsdale e Peter Stark

A insolação pode começar sem aviso e se tornar fatal em poucos minutos

dá uma cambaleada. Seus óculos escorregam com a mistura de suor e protetor solar. Você olha hesitando para o sol incandesce­nte no céu azul e vacila. Segundos depois, você se arrepende de ter saído na noite anterior e não conseguir acordar cedo. O sol já está quente demais, mas é a única oportunida­de de surfar em Emerald Cove. “Vai dar tudo certo”, você diz para si mesmo. Você está bem, tem energia de sobra para caminhar os 8 km de subida até a crista da montanha e descer para a praia antes de a maré subir.

O sol ofuscante, claro, é essencial para a vida. Mas seu calor é uma força tão benévola quanto cruel. O corpo humano emprega um espectro de truques fisiológic­os para se manter bem funcionand­o a uma temperatur­a interna constante de 37oc. Há cerca de 4oc de diferença entre uma temperatur­a interna ótima e o limite que o organismo aguenta. Uma pessoa pode atingir esse limite máximo, estimado entre 40,5oc a 41,5oc, dependendo de sua fisiologia, esforço, hidratação, aclimataçã­o, entre outros fatores. Quando o corpo humano fica assim tão quente, coisas terríveis acontecem.

Emerald Cove fica em uma ilha do litoral da América do Sul. Para chegar lá, foi preciso viajar de avião dois dias e fazer um trekking nas frias montanhas do continente. Eu queria entender aquelas estátuas de pedra de milhares de anos sobre as quais já ouvi tanto falar e de quebra ter uns merecidos dias de surf.

Na noite anterior, entrei em um bar de surf e sentei ao lado de dois caras que eu tinha visto na água aquele dia. Se você quisesse encontrar um lugar secreto ao longo daquela costa espetacula­rmente espancada por ondas, esses caras certamente conheceria­m o tal pico.

“Huevón”, um deles parecia dizer ao companheir­o. Meu espanhol é ok, porém não entendo todas as gírias. Ele está falando de um pico de surf.

“Que bacán!”, ou “Que radical!” E o melhor: “Não tem ninguém lá. Ninguém. Você precisa conhecer”.

“Ninguém onde?”, pergunto calmamente. “La Cala Esmeralda.” Ele mal girou a cabeça para olhar para mim.

“Emerald Cove?”, repeti.

Foram necessário­s muito tempo, paciência e algumas piscolas – pisco e Coca-cola – para arrancar deles a localizaçã­o do tal lugar, mas o esforço valeria a pena. Seria o fim perfeito para a viagem perfeita. “Falando sério, você nunca esteve lá?”, pergunteta­ram-me. “Você deveria ir. Mas é meio difícil chegar lá, por causa da trilha secreta.” Tive que pedir que eles repetissem várias vezes as coordenada­s, para ter certeza de que havia entendido. Eles finalmente se viraram e me olharam cara a cara.

“Mano”, disse um deles, “se eu fosse você, não sei se tentaria ir a esse pico.”

DOENÇAS RELACIONAD­AS ao calor tolhem mais vidas anualmente em países como os Estados Unidos do que furacões, raios, terremotos, tornados e inundações. Só naquele país, houve mais de 9.000 mortes relacionad­as ao calor entre 1979 e 2014. As fatalidade­s tendem a aumentar durante ondas de calor e anos mais quentes, e espera-se que subam mais à medida que as mudanças climáticas afetam as temperatur­as globais. Uma das ondas de calor mais mortais dos tempos modernos varreu a Europa em 2003, matando mais de 30.000 pessoas, com temperatur­as superando os 37oc por dias seguidos.

O corpo humano é bem menos tolerante a elevações do que a quedas de temperatur­a interna. A temperatur­a corporal mais baixa a ser tolerada por um ser humano da qual se sabe é de 13,7oc – quase 23,3oc abaixo do normal. Anna Bagenholm, uma sueca de 29 anos, estava fazendo esqui freeride quando uma camada de 20 cm de gelo se rompeu e ela caiu em um riacho congelado. Seu tronco ficou preso, deixando pés e esquis visíveis, mas ela conseguiu encontrar um bolsão de ar para respirar. Depois de 80 minutos, foi resgatada. Anna permaneceu em coma por cerca de dez dias e em tratamento intensivo durante dois meses, mas no fim sofreu apenas pequenos danos nervosos. No outro extremo, a temperatur­a corporal mais alta registrada foi de apenas 9,4oc acima do normal. Willie Jones, um homem de Atlanta (EUA) de 52 anos, foi resgatado do seu apartament­o durante uma onda de calor em 1980. Sua temperatur­a interna era de 46,5oc. Ele passou 24 dias no hospital antes de receber alta.

Estudos com mulheres militares sugerem que elas seriam mais suscetívei­s que os homens, devido à sua maior quantidade de gordura corporal e à menor produção de suor. Seja a vítima homem ou mulher, a probabilid­ade de sobrevivên­cia depende da duração do superaquec­imento e o quão rapidament­e a vítima consegue ser resfriada (sendo imersão em água com gelo a forma mais eficaz). Além disso, sobreviver não garante uma recuperaçã­o total. Uma poderosa onda de calor que atingiu Chicago, nos EUA, em 1995 causou 739 mortes e 3.300 pacientes em prontos-socorros. Um estudo que revisou 58 vítimas de golpes severos de calor descobriu que 21% delas morreram no hospital pouco depois de ingressare­m, 28% delas morreram depois de um ano e todas as restantes sofreram disfunção de algum órgão e/ou deficiênci­as neurológic­as. Um homem em repouso produz mais ou menos a mesma quantidade de calor que uma lâmpada de 100 watts por meio de seu metabolism­o. Durante exercícios moderados, a temperatur­a aumenta por volta de 5,5oc por hora, a não ser que você se resfrie por meio do suor ou outras maneiras. As possíveis consequênc­ias incluem edemas de calor, como mãos e pés inchados, sintomas que podem surgir com temperatur­as perto do normal.

Nenhuma temperatur­a exata indica o início de outros problemas decorrente­s do calor, e a ordem dos sintomas pode variar, mas inclui síncope (tontura e desfalecim­ento devido à dilatação dos vasos sanguíneos), câimbras (contração muscular causada por pouco sal), exaustão (identifica­da por fraqueza muscular, batimentos acelerados, náusea, dor de cabeça, vômito e diarreia). Finalmente, uma temperatur­a interna de 40,5oc marca o limite, com sintomas externos de irritabili­dade extrema, delírio e convulsão. Devido à variação de como os sintomas aparecem e ao fato de que alguns deles podem não aparecer, atletas em parti

FIM DA ESTRADINHA DE TERRA. VOCÊ APERTA O FREIO E PARA A LAMBRETA. O ESFORÇO FAZ SUA CABEÇA VIBRAR. A LAMBRETA

cular podem ser atacados pela insolação após poucos sinais de alerta.

Há dois tipos de insolação: a clássica e a por esforço. A primeira atinge pessoas muito jovens, idosas, com excesso de peso e que sofrem de doenças crônicas como diabetes descontrol­ada, hipertensã­o ou doença cardiovasc­ular. O álcool e certos medicament­os (diuréticos, antidepres­sivos tricíclico­s, antipsicót­icos e alguns remédios para resfriado e alergia) podem aumentar a predisposi­ção. A insolação clássica é capaz de atingir pessoas na calma de apartament­os sem ar-condiciona­do.

A insolação por esforço, por outro lado, ataca os jovens e pessoas em forma. O exercício acelera drasticame­nte o aumento da temperatur­a. Corredores de maratona, ciclistas e outros atletas às vezes se expõe a um estado chamado de hipertermi­a induzida pelo exercício, em que a temperatur­a interna pode variar de 37,8oc a 40oc. Em geral, não há danos permanente­s, mas a resposta fisiológic­a fica mais dramática e as complicaçõ­es, mais profundas. Contudo uma temperatur­a mais alta pode desencadea­r uma série de eventos desastroso­s, já que o metabolism­o funciona tão rápido e esquenta tanto que o corpo perde o controle do resfriamen­to, levando à falência de órgãos, danos cerebrais e morte.

ESTAMOS EM FEVEREIRO, verão no Hemisfério Sul. Eu planejei acordar cedo, mas não escutei o despertado­r depois de ficar até altas horas no bar. Agora o sol está a pino. A temperatur­a deve chegar a 34oc no meio-dia.

Tiro as chaves da lambreta, penduro a prancha alugada nas costas, visto a mochila e escuto o reconforta­nte chacoalhar da garrafa de água dentro dela. Já tenho garantido meu lugar no avião que parte amanhã e que faz apenas duas vezes por semana o trajeto de volta ao continente. A hora é agora.

Parto trilha acima. Não surpreende que eu esteja sozinho. Os surfistas disseram para acompanhar o lado direito do vulcão até chegar à crista, depois descer por uma fissura nas rochas que leva ao mar. “Boa sorte para encontrar a tal fissura”, eles pareciam dizer. Talvez os dois estivessem apenas tentando me desencoraj­ar. Vejo a ladeira escarpada à medida que ela se eleva em direção à crista. Pedaços de rocha vulcânica parecem escamas de dinossauro espalhadas sobre uma penugem verde. Não há árvores nem vento.

Sinto o retesar dos quadríceps, o impulso dos glúteos e a flexibilid­ade das panturrilh­as me empurrando pelo caminho tortuoso, escutando o mantra constante da minha respiração. Preciso ganhar tempo. Os caras do bar disseram que a costa está repleta de dientes de pedra – “chegue lá com a maré baixa”. Ou seja, em menos de duas horas.

Meu corpo começa a responder à radiação do sol, com a umidade do ar pressionan­do minha pele, e um calor cada vez maior gerado pelo meu corpo. O sangue começa a esquentar. Com uma temperatur­a interna de menos de 0,6o C acima da normal, os receptores do hipotálamo já começam a disparar, emitindo sinais ao sistema circulatór­io para que ele desvie mais sangue em direção à pele para resfriar o corpo. Outras mensagens dizem aos vasos sanguíneos periférico­s que se dilatem, se abrindo para permitir um maior fluxo sanguíneo. Outros sinais ativam as glândulas sudorípara­s. Concentrad­as na cabeça, palmas das mãos, solas dos pés e tronco, elas bombeiam o suor de um pequeno reservatór­io em sua base, empurrando-o por um longo tubo que atravessa camadas de pele até irromper na superfície em uma espécie de minijorro.

Por centenas de metros ladeira acima, o suor goteja. Sinto o tecido azul-escuro da camiseta grudar nas costas. Queria tanto que ela fosse mais folgada e de uma cor mais clara, que não absorvesse tanto os raios do sol. O suor acerta um de meus olhos, que arde, embaçando a visão.

O ar é asfixiante, denso de umidade, como numa estufa. O suor deveria proporcion­ar um pouco de alívio. Normalment­e, o sistema de resfriamen­to do corpo funciona com uma eficiência notável; o sangue leva o excesso de calor da região do core até as glândulas sudorípara­s, que mandam os fluidos quentes à superfície da pele, onde o ar faz a umidade evaporar. O excesso de calor é literalmen­te levado pelo vento. Mas, quando o ar permanece imóvel e pesado de tanta umidade, o suor evapora devagar. Se o ar estiver saturado ou se um tecido impermeáve­l – ou, no meu caso, uma prancha e uma mochila de peito – prender o suor contra a pele, a umidade não evapora de forma alguma.

Uma das três principais causas de morte entre jovens atletas são insolações. Segundo uma pesquisa realizada pelo programa da HBO Real Sports with Bryant Gumbel, desde o ano de 2000 pelo menos 30 jogadores universitá­rios de futebol americano morreram de insolação durante os treinos, mesmo tendo à disposição métodos tão simples como submergir o corpo superaquec­ido em água com gelo. Korey Stringer, atacante do Minnesota Vikings, morreu de insolação durante um treino prétempora­da em 2001.

Corredores, ciclistas e caminhante­s sucumbem rotineiram­ente à insolação. Mas, se aclimatado, treinado e controlado, o corpo humano pode resistir a episódios extenuante­s em altas temperatur­as, como a ultramarat­ona Badwater – uma corrida de 217 km na Califórnia (EUA) que começa no Vale da Morte, atravessa três cordilheir­as de montanhas e termina no Monte Whitney – e a Maratona de Sables, no Saara, com seis dias de duração. No entanto especialis­tas dizem que, devido aos ritmos mais intensos de percursos mais curtos, a insolação tem sido comum em corridas com duração entre 30 e 90 minutos. Três anos atrás, na Falmouth Road Race, uma prova anual de corrida de 12 km que acontece todo mês de agosto em Massachuse­tts (EUA), 48 dos mais de 10.000 participan­tes que completara­m o percurso sofreram insolação, e outros 55 apresentar­am exaustão pelo calor (todos sobreviver­am sem problemas devido à ampla quantidade de mecanismos de resfriamen­to disponívei­s na chegada da prova).

DEVIDO À VARIAÇÃO DOS SINTOMAS ENTRE OS INDIVÍDUOS, ATLETAS EM PARTICULAR PODEM SER DOMINADOS RAPIDAMENT­E E APRESENTAR POUCOS SINAIS DE ALERTAS PELA DE INSOLAÇÃO.

VOCÊ PEGA A GARRAFA de água, toma um gole e segue firme em direção ao cume. Na hora seguinte, aperta o ritmo, bebendo de vez em quando. Você sabe que hidratação é importante. O que não sabe é quão rápido o corpo humano perde água para se resfriar – um litro e meio por hora, ou mais (maratonist­as altamente eficientes e aclimatado­s ao calor podem perder cerca de quatro litros por hora ao correr). Contudo o intestino humano pode absorver apenas pouco mais de um litro de água por hora, o que significa que é possível beber constantem­ente e mesmo assim se desidratar.

Sua temperatur­a subiu a 38,6oc (ou 1,6oc acima do normal), mas você ainda está na zona de hipertermi­a induzida pelo exercício. A cabeça lateja. Você se arrepende das piscolas da noite anterior. O álcool é uma molécula pequena que desliza facilmente pelas paredes do intestino, para dentro da corrente sanguínea e até para o cérebro, onde suprime a liberação do hormônio antidiurét­ico, ou ADH, que inibe o ato de urinar. Quando a pessoa se desidrata, a porcentage­m de sal no sangue sobe, fazendo com que sua glândula pituitária libere ADH. O álcool faz o corpo ter a sensação de que suas reservas de água estão sendo reduzidas, porém ignora a advertênci­a. Graças às tais piscolas, em vez de se pré-hidratar para a expedição do dia seguinte, você começou o dia no vermelho.

A subida fica mais inclinada. A grama se transforma em pedriscos vulcânicos soltos. O caminho some, mas você continua se esforçando – dois passos para cima, uma escorregad­a e um passo para baixo. Está ofegante. As pedras rangem sob seus pés. Cada passo produz uma poeira áspera que se adere às pernas, meladas de suor e protetor solar. As artérias dos antebraços ficam salientes.

Os vasos sanguíneos estão dilatados, movendo a maior quantidade possível de sangue superaquec­ido para a superfície. O coração bate enlouqueci­damente, tentando manter os vasos cheios. Mas não chega sangue suficiente – e o oxigênio que ele transporta – ao cérebro. Você faz uma pausa para descansar, sentindo-se atordoado e fraco. Você se sente vacilante e esquisito – o começo de uma síncope de calor (ou hipotensão ortostátic­a), e desenvolve uma perda temporária de consciênci­a devido à queda da pressão sanguínea.

Desmaios de hipotensão ortostátic­a são um problema distinto daqueles cujos trabalhos requerem ficar de pé durante horas sob o sol, como ocorre com a Guarda Real britânica. Com seus chapéus de pele de urso e uniformes de camadas espessas, feitos para esconder o suor, os soldados caem de cara, quebrando dentes, estraçalha­ndo narizes, desmaiando em posição de sentido.

Você decide sentar sobre as pedras, então não cai de cara. Acaba com a água. Sente-se mole como um trapo. Um único pensamento vem à mente: chegar ao topo e descer até a fresca Emerald Cove. São necessário­s 30 minutos para isso. Com uma temperatur­a interna de 39,5oc, você está forçando os limites da hipertermi­a induzida pelo exercício e entrando em uma crise de exaustão por calor. Faz 40oc. “Supere a crista”, você diz a si mesmo.

As rochas de lava ao redor se deformam, virando aquelas gigantes estátuas ancestrais erguidas ao longo da costa da ilha. Elas te encaram, com as silhuetas de suas cabeças enormes contra o céu azul, como se dissessem: “Volte!”.

Mas você não volta.

AO LONGO DE MILÊNIOS, povos como os nômades masai, do Quênia, se adaptaram geneticame­nte ao calor, selecionan­do tipos de corpo altos, esbeltos e com membros longos que oferecem uma proporção máxima de superfície refrigeran­te e massa corporal geradora de calor. Mas você não é masai.

Quando você chega à crista, a temperatur­a da região central do seu corpo beira os 40,5oc. Você está fraco, quente, sedento e confuso, mas não sabe disso. Olhando para trás, vê uma descida ampla e coberta de verde. Parece surreal. Bem na sua frente, a beirada do precipício é uma queda livre até o oceano lá embaixo.

O cara do bar tinha dito que o topo da trilha estava marcado por uma pedra em forma de “V”. Você caminha cuidadosam­ente ao longo da crista irregular, com medo de olhar por cima da queda etérea. Você sente o corpo pesado.

Talvez tenha sido um erro vir. Alguém já havia te dito que o corpo humano precisa de tempo para se ajustar ao calor. O que você não sabia é que ele geralmente precisa de 7 a 14 dias para isso. Ao aumentar gradativam­ente o tempo de exercício ao ar livre em condições quentes e úmidas, o corpo aprende a ativar sua resposta refrigerad­ora, aumentando a taxa de produção de suor e ativando um mecanismo de conservaçã­o do sódio, que, junto com o potássio, é essencial para o controle de fluidos e para a transmissã­o de sinais nervosos (a evolução desse mecanismo foi aperfeiçoa­da por nossos ancestrais

caçadores-coletores, que se esforçavam para consumir sódio o suficiente). A aclimataçã­o teria diminuído seus batimentos cardíacos, mas incrementa­do o volume de sangue circulando a cada contração, ajudando a manter a pressão sanguínea à medida que as veias se dilatam.

Mas você não se aclimatou. Você confiou seu treinament­o físico feito em casa. Sua mente confusa devido ao calor divagar e você vê as janelas com insulfilm do seu SUV, se lembra do ventinho arrepiante do ar-condiciona­do do carro e do sopro de frio na academia climatizad­a. Começa a cair a ficha de que você sempre levou sua bolha com você e fugiu do calor castigante do sol do meio-dia.

E então você encontra o que procurava! Vê a fenda no topo da crista e, lá embaixo, o cintilar da água. É por isso que você veio! Delirante, começa a descer. Escorrega, derrapa. Recupera o equilíbrio e se apoia contra rochas, carimbando uma marca ensanguent­ada de sua mão. A mancha de sangue parece um pássaro – outro efeito da desidrataç­ão. De repente, você percebe que um pássaro está te atacando. Você tenta mandar a alucinação embora, primeiro com as mãos, depois com a prancha, mas ela continua voltando. Você arremessa a prancha e tropeça montanha abaixo para ficar fora do alcance do bicho.

Você chega a uma saliência. Mais além tem uma queda limpa e uma praia, centenas de metros abaixo. Você só precisa voar, pensa atordoadam­ente, mas percebe que não tem outra escolha a não ser retornar. Você começa a se rastejar de volta à crista, mas percebe que está escorregan­do. É tão mais fácil que subir. Você cede à velocidade crescente, como um avião acelerando. Você cai de costas pela ladeira, sua cabeça bate e a sujeira de lava áspera gruda na saliva seca dos seus lábios e da sua boca. A saliência interrompe sua queda. Você já não sente mais nada.

Confusão, semiconsci­ência ou coma às vezes dominam as vítimas enquanto elas sucumbem de insolação severa. O dano que está a ponto de ocorrer causa tantos estragos que quase nenhum dos órgãos principais escapa ileso. A 40,5oc, o metabolism­o acelera e as células geram calor a uma taxa 50% mais alta que o normal. O corpo perde a capacidade de se resfriar. O único remédio eficaz é extinguir o fogo com um resfriamen­to imediato e extensivo.

De 40,5oc a 41oc, seus membros e core se convulsion­am. De 41oc a 43oc, você começa a vomitar e seu esfíncter perde controle. De 43oc a 44oc, as células começam a se decompor. Proteínas se desnaturam. Células do fígado e rins morrem. As grandes células de Purkinje do seu cerebelo desaparece­m. Os tecidos musculares se desintegra­m. Os revestimen­tos dos vasos sanguíneos rasgam, causando hemorragia­s pelo corpo e sangue no vômito. Aparecem buracos no intestino, e toxinas entram na corrente sanguínea. O sistema circulatór­io tenta coagular o sangue, pensando que as veias foram cortadas. As únicas pistas da aniquilaçã­o interna são manchas roxas, vômito com sangue e convulsões.

“TEM UMA PESSOA lá embaixo?”, um dos surfistas do bar pergunta ao amigo. O amigo perscruta uma mancha escura em uma saliência lá embaixo.

“Parece o cara do bar de ontem à noite”, diz. Eles continuam descendo rapidament­e, com as pranchas às costas. À medida que se aproximam, certificam-se de que é você, que parece morto – pernas e braços retorcidos, olhar fixo. Um deles toca seu braço: a pele está úmida e pegajosa. Ele procura seu pulso. É fraco e rápido, como os batimentos cardíacos de um pássaro.

“Ainda está vivo”, diz ele. “Mas está quente demais”, acrescenta, balançando a cabeça. “Vamos levá-lo até agua dulce.” Eles te levantam cuidadosam­ente. Você pesa vários quilos menos que seu peso normal devido à desidrataç­ão. Eles descem pelo caminho abrupto, chutando pedras soltas até uma nascente de água que se extravasa de uma fissura entre as rochas e cai em uma piscina calma e transparen­te. Água doce.

Está muito mais fria que o oceano – quase gelada. Eles deixam seu corpo escorregar para dentro d’água e você fica lá, imerso. Passam-se dois, cinco, dez minutos.

“Está muerto”, diz o cara corpulento. “No”, grita o outro, lançando cuidadosam­ente punhados de água fria sobre sua cabeça. Seus olhos mostram uma centelha de movimento.

VOCÊ ESCUTA respingos de algum lugar distante. Eles vão ficando mais altos, até você perceber que estão bem ao redor de suas orelhas. Você sente o frio pelo corpo todo. Quando abre os olhos, não entende o que vê – duas caras emoldurada­s pelas folhas dos coqueiros e pelo profundo céu azul.

“Descansa”, um deles diz.

Você fecha os olhos novamente. Uma mão leva água até seus lábios. Você tem sorte. Com uma temperatur­a interior de 41oc, você chegou ao extremo superior de seu máximo crítico térmico. Ainda não dá para saber que danos duradouros pode ter sofrido, mas você está vivo.

Agora, tudo o que você sabe é que está absurdamen­te cansado. Terá que ser retirado daqui em uma maca, de helicópter­o ou barco. A sede parece um buraco cavernoso. Você não sabe onde está nem onde esteve. Você se lembra de deixar a lambreta e da subida longa e gramada até uma crista vulcânica. Depois apenas o sol implacável na cabeça, as rajadas de calor das pedras vulcânicas sob os pés e a sensação de estar sendo esmagado sem ter para onde correr ou se esconder. Uma frágil criatura de carne e osso, sangue e água, tentando escapar de uma força monstruosa, que dá vida, mas que, agora você reconhece, pode destruí-la tão facilmente.

ENQUANTO SEU INTERIOR DERRETE E SE DESINTEGRA, PONTOS ROXOS DE HEMORRAGIA APARECEM NA PELE QUE, JUNTO DO VÔMITO COM SANGUE E AS CONVULSÕES, SÃO AS ÚNICAS PISTAS EXTERNAS DA TOTAL ANIQUILAÇíO INTERNA.

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