O Uruguai é logo ali
A PRIMEIRA CICLOAVENTURA DE UM CASAL DE BRASILEIROS PELAS ESTONTEANTES TERRAS DO SUL DO CONTINENTE
Pode parecer surpresa para quem nunca fez, mas pedalar é o menor dos esforços em uma cicloviagem. Antes de montar na magrela e sair por aí desbravando o mundo, é necessário um longo (e, às vezes, tedioso) planejamento.
O começo da minha jornada foi mirando outros horizontes. Eu estava determinado a pedalar pelo Parque Nacional de Yellowstone, o maior e um dos mais selvagens dos EUA. Provavelmente você, assim como eu, passou parte da infância assistindo a documentários sobre esse lugar mágico na TV Cultura ou Natgeo.
Logo que comecei a devorar o caríssimo guia que comprei em uma livraria em São Paulo, descobri que na data escolhida para minhas férias o parque estaria sob uns bons metros de neve – e nem os ursos se arriscavam por suas trilhas. Falhou o tal planejamento... Em busca de outros rumos, eu e minha namorada, Kareen Sayuri, resolvemos fazer um pedal juntos. A primeira dúvida era sobre a magrela: será que aguentaria o tranco? Kareen também tinha seus medos: “E eu, será que vou aguentar?”. Apesar de pedalar bem pela cidade, ela nunca tinha feito grandes distâncias – mas logo no primeiro dia de viagem essa insegurança sumiria por completo, dando lugar ao prazer de se desbravar uma nova terra em duas rodas.
Eu fui montando, bem aos poucos, uma bike para viajar. Encontrei uma magrela de cromoly dos anos 1990 resistente, leve e por um ótimo preço. Arranjei um guidão maneiro, um selim confortável, bolsas, isso e aquilo. Testei em uma viagem mais curta. Eu estava pronto!
Kareen pedala uma Nishiki Sport 1978, linda de morrer, mas de ferro, pesada, com uma mecânica de padrão antigo, cujo único bagageiro que encaixou parecia frágil demais para carregar alforjes.
Aqui, uma dica importante para quem está meio perdido em como começar a planejar uma cicloviagem: pergunte. Passe na bicicletaria do seu bairro e peça opiniões. Consulte pessoas mais experientes. Leia revistas e sites especializados. Pesquise bastante sobre o lugar, a época em que pretende ir, os possíveis trajetos a serem percorridos.
Escolhemos o litoral do Uruguai por ser uma rota fácil, quase toda plana e ideal para ser percorrida com bikes de estrada, já que a maior parte do tempo se roda no asfalto. Lemos vários depoimentos na internet e descobrimos a “rota clássica”, que pode ser feita em uma semana, rodando menos de 100 km por dia, com cinco ou sete paradas.
Pesquisando passagens, preferimos ir até Porto Alegre de avião e, de lá, tomar um ônibus até o Chuí, extremo sul do Brasil, de onde atravessaríamos pedalando até o Uruguai, rumo a Montevidéu. Então voltaríamos voando para São Paulo.
Nossa logística foi bem planejada. Conferimos com a companhia aérea e descobrimos que nos cobrariam uma taxa de R$ 150 por bicicleta, desmontadas e embaladas em uma caixa (melhor do que usar um mala-bike e não ter onde guardá-lo depois). Para a volta, tomaríamos um voo internacional e uma “facada”: US$ 60 cada!
Foi aí também que começamos a quebrar a cabeça sobre o que levaríamos. Para não pagar a bagagem despachada, deveríamos carregar uma bolsa de, no máximo, 10 kg cada. Embalamos o mínimo necessário para os 17 dias que passaríamos por lá. Escolhemos roupas mais versáteis, tendo em mente que passaríamos o dia com trajes de ciclismo. Uma minifarmácia também precisaria estar a bordo: remédio para dor, alergia, estômago, febre, ralados, nunca se sabe. Sem falar nas ferramentas.
Mais do que um par de câmaras, é preciso um jogo de chaves, powerlink para a corrente, lubrificante, espátula – o básico para uma manutenção de última hora.
Kareen viajaria com dois alforjes; já eu optei pela moda do bikepacking, com uma bolsa grande de guidão e uma de selim, além de outra abaixo do top tube, sem a necessidade de bagageiro.
Tudo o que precisaríamos para a jornada estava ali. Dá-lhe compactação e seleção. Arrumamos tudo em cima da cama e fomos eliminando o que não era estritamente necessário. Funcionou. Acabamos levando roupas para cinco dias: sete camisetas e roupas de baixo, um shorts e uma calça. Poucas opções de looks, pouco espaço na mala. Ficar bem na foto não é prioridade em uma cicloviagem. Tudo foi sendo arrumado enroladinho para ocupar menos espaço. Para o frio, uma segunda pele e um corta-vento, além de capa de chuva e umas duas bermudas de ciclismo. O indefectível par de Havaianas foi torturado até caber lá dentro.
Nossa ideia era ir a uma lavanderia no meio do caminho, em Punta Ballena, e lavar o que desse nos lugares em que ficássemos mais de um dia. Chegamos à cidade em um fim de semana e... a lavanderia estava fechada. Passamos quase três dias com a mesma roupa. Sair da lavanderia com a sacola cheirando a amaciante foi o momento mais feliz do dia. Como pretendíamos parar nas cidades e comer de verdade, levamos apenas alguns sachês de carboidrato em gel, bananinhas e uns lanches que montávamos para o dia. Cada um tinha duas caramanholas, e pendurávamos mais uma água extra ao longo da bike. Escolhemos não levar barraca e não acampar pelo caminho. Apesar de ser uma opção muito econômica, achamos que dormir mal nos deixaria cansados para continuar pedalando no dia seguinte, fora o peso de se carregar barraca e itens para camping. (Terminada a viagem, no entanto, achamos que teria sido a melhor opção, pois nos daria mais independência e não teríamos pago caro por hospedagens ruins.)
Reservamos hostels e hotéis baratinhos nos pontos de parada e ficamos alguns dias nas cidades mais bacanas e que mais queríamos conhecer: Cabo Polônio, Punta Ballena, Piriápolis e Montevidéu.
O Uruguai é um país caro para se viajar. O custo de vida é mais alto que em São Paulo, e as hospedagens baratas são bem simples. Nossa saga logística começou ainda em casa. O voo tinha saída em Viracopos, em Campinas (SP). Chegaríamos até lá em um ônibus da companhia aérea que parte da Barra Funda. O desafio era como levar duas caixas de bicicleta
ao ponto de partida. Pensamos em Uber, carreto, caminhada. Acabamos pedindo um favor a um vizinho, que colocou as caixas em cima da sua Paraty 1998 e nos levou, lentamente.
As caixas ainda nos dariam mais trabalho. No aeroporto de Porto Alegre, foi preciso embarcá-las em um ônibus para trocar de terminal e pegar um trem. Para chegar ao tal trem, descemos várias escadarias e as enfiamos em um vagão cheio de gente. Algumas almas caridosas viram nosso sufoco e nos ajudaram.
Da estação de trem até a plataforma de embarque na rodoviária, outra caminhada. Não pedalamos nem um metro e já estávamos exaustos. Na viagem até o Chuí, de cerca de sete horas, nós nos olhávamos com cara de medo e decepção. Chovia muito, e a previsão era de aguaceiro todos os dias da viagem.
Começamos a discutir o que fazer se fosse impossível pedalar e selamos ali um acordo: pensaríamos positivo sempre.
Durante toda a viagem eu usei o Windfinder, um site que dá com muita precisão a previsão de ventos e chuva. Ele também tem um app, porém o site é mais fácil de usar. E não errou uma única vez. Tivemos muitos dias de sol forte, um pouco de tempo nublado e chuvas de verão. O pensamento positivo ajudou. Chegamos junto com o nascer do sol na rodoviária, montamos as bikes, ajeitamos a bagagem e saímos em busca de um café da manhã. Foi ali na rodoviária mais improvisada de todo o Sul do país que tive um entendimento melhor sobre o cicloturismo. No mesmo ônibus vinham dois caras com umas bikes surradas. Um deles improvisou um alforje com duas bolsas de ginástica amarradas pela alça e saiu, de regata, com um violão pendurado nas costas. Fariam a mesma rota que nós.
Percebi que todo o nosso planejamento, equipamentos de qualidade, bicicleta adequada, capas de chuva e bolsas-estanque eram um grande preciosismo. A bicicleta ideal para viajar é a que você tem. A América Latina é a terra do improviso – e isso é lindo.
Assim que começamos a pedalar na rodovia, começou a chover. O temporal nos acompanhou por quase todo o caminho até Punta del Diablo, uma praia tranquila com uma atmosfera hippie, bem cheia na época do ano em que fomos, o réveillon.
Quando passamos a fronteira, a estrada se tornou pista simples, com trechos bem ruins de acostamento, o que nos obrigou a pedalar na faixa de rodagem. Fiquei bastante tenso com a situação, até perceber que o motorista uruguaio respeita muito o ciclista.
Apesar de abusarem um pouco da velocidade, sempre passam a uma distância segura e não buzinam. Em uma ocasião, dois carros vinham em direção contrária. Eu me desesperei por alguns segundos, até perceber que o motorista do nosso lado estava bem devagar atrás de nós, esperando o outro passar.
Para quem pedala em São Paulo e nas rodovias brasileiras, pode parecer absurdo situações como essa. Em sete dias pedalando, em um total de quase 400 km, tomamos uma só buzinada e uma fina (a padaria mais próxima de minha casa fica a cinco quadras, e sempre tomo quatro vezes mais finas e buzinadas quando vou comprar pão pedalando).
VIAJAR DE BICICLETA possui toda uma magia: ir de um lugar ao outro com esforço próprio, estabelecendo uma conexão diferente com o caminho e as pessoas que nele habitam.
Você não vai notar a ensurdecedora quantidade de sapos nos alagados à beira da pista passando de carro nem se demorar olhando o encontro das águas das lagoas com o mar de cima das pontes. Do ônibus também não dá para sentir o cheiro dos bosques de pinheiros.
A parte triste é que você nota o quanto da vida selvagem acaba na estrada. Passamos por dezenas de animais mortos. Cobras, lagartos, tatus (um símbolo uruguaio), porcos-espinho e zorilhos. Todos ali, em um triste encontro do natural com o urbano.
Em geral, não enfrentamos grandes perrengues. Zero pneus furados, zero problemas mecânicos graves ou quedas. Os trechos mais difíceis foram as longuíssimas estradas de cascalho, onde passamos horas só na companhia de vacas, sem nem um casebre para pedir água. O Uruguai tem três bois para cada habitante.
Fugir das hospedagens mais caras nos fez descobrir lugares mais interessantes, fora da rota turística. Em vez da badalação de Punta del Este, esticamos a pernada até Punta Ballena, que tem praias lindas e um jardim botânico de cair o queixo.
Foi assim também que paramos em Maríndia, na casa de um alemão entusiasta da legalização da maconha, cheio de histórias para contar. A cidade é bem menos visitada que a vizinha Atlântida e conta com praias de rio e mar, tudo muito limpo e bonito.
Tivemos sorte também quando paramos, por acaso, para descansar em Parque del Plata e demos de cara com a praia mais bonita de toda a viagem: Barra del Solis.
Chegar em Montevidéu foi uma sensação ótima. Estávamos preocupados com o trânsito intenso que encontraríamos na rodovia perto do aeroporto, entrando na cidade. Quando nos aproximamos de lá, avistamos a rambla, espécie de calçadão à beira-mar, com marcação de quilometragem típica de pistas de caminhada. Foram 24 km de calçadão, sem carros, com vento na cara – até demais –, rumo à nossa hospedagem final.
Apesar da alegria de chegar e de todo o companheirismo que criamos e fortalecemos pedalando juntos, bateu uma tristeza ao terminar a viagem. Queríamos pedalar mais. Conhecer as cidades de bike foi a melhor parte da expedição. Pudemos explorar praias mais distantes, sair sem rumo definido, nos perder por ruelas, notar a arquitetura e a vegetação. A bicicleta definitivamente muda sua relação com o entorno.
No último dia, subimos no selim para um passeio de despedida, meio sem rumo. A ideia era pedalar à beira-mar, voltar, desmontar as bikes e botá-las na caixa. Assim que começamos o pedal, ouvimos um estalo. A roda dianteira da Kareen havia estourado, de uma só vez, quatro raios, desalinhando toda. Nós não tínhamos chave de raio nem raios reserva – tampouco adiantaria, pois nenhum dos dois sabe alinhar uma roda. Ficamos mais felizes do que tristes, o perrengue poderia ter ocorrido na estrada, porém se deu na esquina do hostel, no último dia da nossa aventura.
Voltamos de novo para a saga das caixas, organizando transporte para o aeroporto e para casa.
No café da manhã do dia seguinte, já estávamos planejando o próximo destino.
Escolhemos não levar barraca e não acampar pelo caminho. Apesar de ser uma opção muito econômica, achamos que dormir mal nos deixaria cansados para continuar pedalando no dia seguinte, fora o peso de se carregar barraca e itens para camping.