A GUERRA ORÇAMENTÁRIA
Uma estratégia digna dos bons enxadristas. A Suprema Corte, em dois movimentos milimetricamente calculados, foi capaz de garantir a permanência do benefício do Bolsa Família no contexto de emendas fora do teto de gastos e de enterrar com as chances de proliferação do famigerado Orçamento Secreto, que concedia ao Congresso uma liberalidade sem precedentes sobre a destinação de recursos públicos — algo inaugurado na era Bolsonaro e que pode ter seus dias contados daqui por diante. Na prática, os magistrados asfixiaram o fôlego de manobra do capo parlamentar Arthur Lira, que vinha agindo como uma espécie de eminência parda de governos federais. Também concederam espaços importantes para os planos de gestão do mandatário eleito, Lula da Silva. Como classificou o futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a decisão do STF será capaz de inaugurar “uma nova etapa de relacionamento”. E em que termos se daria isso? Certamente de modo menos clientelista, com chances menores para o toma lá, dá cá, típico de uma administração refém dos deputados e senadores. Ao consolidar o entendimento de prática inconstitucional para os recursos repassados sem a devida transparência, via as chamadas emendas do relator, a Justiça delimitou fronteiras para o protagonismo do Parlamento e fortaleceu o Executivo na construção das políticas públicas. O Legislativo, naturalmente, passou a correr atrás de novos mecanismos ou alternativas de pressão, mas certamente o que surgir, virá na base de uma maior transparência. Equivalia a uma esbórnia o que ocorria até aqui e a ameaça era de um quadro ainda pior ano que vem, com a oficialização do esquema. Lira, que acusou o golpe, tratou de convocar seguidas reuniões de emergência com líderes partidários para traçar o plano alternativo e a resposta devida. Quem participou dos encontros disse que o presidente da Câmara estava claramente transtornado e revoltado com a perda do poder de barganha. Prometia retaliações. No radar, até mesmo a ideia de engavetamento da proposta de reajuste salarial dos magistrados. Para Lira, é especialmente cara a derrota porque do microgerenciamento desse dinheiro junto aos demais deputados é que dependia a sua reeleição ao cargo. A moeda de troca, representada literalmente pelas verbas federais sob seu controle, lhe permitia “comprar” os apoios necessários, que agora podem escassear ou se bandear rumo às chapas de postulantes adversários. De uma maneira ou de outra, Lira atribui diretamente a Lula as articulações para o fim do Orçamento Secreto. O demiurgo de Garanhuns não escondia de ninguém que considerava uma excrescência essa prática e prometia ainda em campanha lutar contra ela. Foi o que fez em conversas com os ministros do Supremo. Deu certo. O grande desafio daqui por diante é o de apaziguar os ânimos nas casas parlamentares para não sofrer ali outros revezes. A PEC da Transição, que vinha sendo cozinhada em banho maria à espera do julgamento da Corte, ganha outros contornos nesse cenário. Da mesma forma, a liberdade de escolhas orçamentárias por parte do mandatário amplia-se. De uma maneira ou de outra, foi lançado um elemento novo que pode vir a desequilibrar a pretendida harmonia entre poderes. É aguardar para ver.