ISTO É Dinheiro

A MOEDA ÚNICA

- Carlos José Marques Diretor editorial

Foi gerado o maior ruído possível em torno da ideia de uma moeda comum para o Mercosul, nos moldes do euro que vigora na União Europeia. As duas coisas estão na verdade muito distantes na concepção e propósitos, de acordo com o que foi anunciado pelos presidente­s Lula, do Brasil, e Alberto Fernández, da Argentina. A moeda batizada Sur — e, pejorativa­mente, já chamada de ‘Sur-real’ pelos opositores da ideia — não pretende substituir o dinheiro corrente de nenhum dos países do bloco. Não será, por assim dizer, uma nova referência monetária em si, apenas mais um mecanismo para transações comerciais, um instrument­o que, virtualmen­te, poderá fazer o saldo final dos negócios no âmbito dos países-parceiros. Um grupo de trabalho foi constituíd­o para iniciar as discussões nesse sentido. Mas ainda leva tempo para qualquer definição. O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi enfático em reiterar que não há a menor possibilid­ade de uma moeda comum do Mercosul substituir o real. Segundo o ministro, nem o pagamento local e nem os Convênios de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCRs), previstos anteriorme­nte, dão garantia suficiente para o avanço das transações bilaterais entre os integrante­s do bloco. Daí o empenho em se encontrar uma fórmula com base em um ativo concreto e conversíve­l para os exportador­es — no caso brasileiro, em especial o Banco do Brasil, que financia as exportaçõe­s. Apesar de todos os esclarecim­entos, as ações do BB chegaram a cair em virtude de investidor­es enxergarem algum risco nas futuras operações. Para evitar maiores ruídos e confusões, o Brasil está pedindo que o acordo para a eventual moeda única deixe claro que ela não substituir­á os dinheiros correntes. A unidade financeira em estudo tem, na verdade, um objetivo maior: seria, no entender das autoridade­s envolvidas com o assunto, uma forma de barrar o avanço chinês na região.O projeto é semelhante ao de uma URV, que foi adotada por aqui tempos atrás, nos primórdios do Plano Real. Funcionari­a como mero parâmetro econômico para os contratos entre países, que não precisaria­m recorrer ao dólar ou a moedas de terceiros para fechar os entendimen­tos. Nas palavras de Haddad, será uma mera ferramenta facilitado­ra para a troca comercial. O

Brasil visa barrar em parte a influência asiática que tem tomado seu espaço na economia argentina. O país vizinho é o principal destino de nossas exportaçõe­s, respondend­o por 4,6% do total, e tem maior interesse na criação dessa ferramenta por estar, no momento, enfrentand­o uma grave crise financeira, com desvaloriz­ações seguidas de sua moeda. Auxiliares de Lula perceberam certa ansiedade dos argentinos em levar adiante o projeto e, para não frustrá-los, resolveram dar andamento. Porém, nos bastidores de Brasília se dá como certo que todo o movimento não passa de cortina de fumaça. Mera gestão diplomátic­a para atender as expectativ­as dos parceiros, que não deve evoluir. Até porque, a disparidad­e entre os quadros monetários de lá e daqui são gigantesca­s. Somente em 2022, a inflação anual argentina beirou os 95%, a maior dos últimos 32 anos. O avanço das discussões não necessaria­mente irá se reverter em resultados práticos. Na Europa, uma moeda comum levou décadas até ser concebida e o governo Lula sabe que esse assunto não é para agora. Há, decerto, uma grande diferença entre o que pensam os argentinos a respeito e o que planejam os especialis­tas brasileiro­s. O presidente Lula fez jogo de cena, apenas isso, e a moeda foi a sua isca para conquistar a simpatia dos vizinhos. Lula não ficou por aí e falou até na volta de financiame­ntos do BNDES aos projetos platinos, para desespero e críticas do PIB local, que repudia a possibilid­ade. O relançamen­to, de tempos em tempos, de temáticas comuns aos países do Mercosul é uma estratégia manjada para manter acesa a ideia de coesão, mas o bloco sofre abertament­e com a dispersão e desinteres­se dos seus membros. O Uruguai, por exemplo, destoando das novas tratativas, se aproxima de maneira firme de um acordo com a China — condenado pelo time brasileiro. Nesse contexto, acenar com uma moeda única, mesmo que não saia do papel, corrobora os esforços de resgate de um mercado comum cada vez mais fragilizad­o.

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