A MOEDA ÚNICA
Foi gerado o maior ruído possível em torno da ideia de uma moeda comum para o Mercosul, nos moldes do euro que vigora na União Europeia. As duas coisas estão na verdade muito distantes na concepção e propósitos, de acordo com o que foi anunciado pelos presidentes Lula, do Brasil, e Alberto Fernández, da Argentina. A moeda batizada Sur — e, pejorativamente, já chamada de ‘Sur-real’ pelos opositores da ideia — não pretende substituir o dinheiro corrente de nenhum dos países do bloco. Não será, por assim dizer, uma nova referência monetária em si, apenas mais um mecanismo para transações comerciais, um instrumento que, virtualmente, poderá fazer o saldo final dos negócios no âmbito dos países-parceiros. Um grupo de trabalho foi constituído para iniciar as discussões nesse sentido. Mas ainda leva tempo para qualquer definição. O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi enfático em reiterar que não há a menor possibilidade de uma moeda comum do Mercosul substituir o real. Segundo o ministro, nem o pagamento local e nem os Convênios de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCRs), previstos anteriormente, dão garantia suficiente para o avanço das transações bilaterais entre os integrantes do bloco. Daí o empenho em se encontrar uma fórmula com base em um ativo concreto e conversível para os exportadores — no caso brasileiro, em especial o Banco do Brasil, que financia as exportações. Apesar de todos os esclarecimentos, as ações do BB chegaram a cair em virtude de investidores enxergarem algum risco nas futuras operações. Para evitar maiores ruídos e confusões, o Brasil está pedindo que o acordo para a eventual moeda única deixe claro que ela não substituirá os dinheiros correntes. A unidade financeira em estudo tem, na verdade, um objetivo maior: seria, no entender das autoridades envolvidas com o assunto, uma forma de barrar o avanço chinês na região.O projeto é semelhante ao de uma URV, que foi adotada por aqui tempos atrás, nos primórdios do Plano Real. Funcionaria como mero parâmetro econômico para os contratos entre países, que não precisariam recorrer ao dólar ou a moedas de terceiros para fechar os entendimentos. Nas palavras de Haddad, será uma mera ferramenta facilitadora para a troca comercial. O
Brasil visa barrar em parte a influência asiática que tem tomado seu espaço na economia argentina. O país vizinho é o principal destino de nossas exportações, respondendo por 4,6% do total, e tem maior interesse na criação dessa ferramenta por estar, no momento, enfrentando uma grave crise financeira, com desvalorizações seguidas de sua moeda. Auxiliares de Lula perceberam certa ansiedade dos argentinos em levar adiante o projeto e, para não frustrá-los, resolveram dar andamento. Porém, nos bastidores de Brasília se dá como certo que todo o movimento não passa de cortina de fumaça. Mera gestão diplomática para atender as expectativas dos parceiros, que não deve evoluir. Até porque, a disparidade entre os quadros monetários de lá e daqui são gigantescas. Somente em 2022, a inflação anual argentina beirou os 95%, a maior dos últimos 32 anos. O avanço das discussões não necessariamente irá se reverter em resultados práticos. Na Europa, uma moeda comum levou décadas até ser concebida e o governo Lula sabe que esse assunto não é para agora. Há, decerto, uma grande diferença entre o que pensam os argentinos a respeito e o que planejam os especialistas brasileiros. O presidente Lula fez jogo de cena, apenas isso, e a moeda foi a sua isca para conquistar a simpatia dos vizinhos. Lula não ficou por aí e falou até na volta de financiamentos do BNDES aos projetos platinos, para desespero e críticas do PIB local, que repudia a possibilidade. O relançamento, de tempos em tempos, de temáticas comuns aos países do Mercosul é uma estratégia manjada para manter acesa a ideia de coesão, mas o bloco sofre abertamente com a dispersão e desinteresse dos seus membros. O Uruguai, por exemplo, destoando das novas tratativas, se aproxima de maneira firme de um acordo com a China — condenado pelo time brasileiro. Nesse contexto, acenar com uma moeda única, mesmo que não saia do papel, corrobora os esforços de resgate de um mercado comum cada vez mais fragilizado.