MEDICINA
Cresce no Brasil a ação de grupos de profissionais que vão às ruas dar assistência voluntária aos sem-teto, população com pouco acesso aos serviços de saúde
Cresce o número de profissionais de saúde que atuam como voluntários junto à população de rua
Avoz era fraca demais para que conseguisse pronunciar seu nome. Junto com o corpo muito magro, febril e trêmulo, o rapaz jovem sentado dentro de uma barraca da triagem de pacientes é o retrato do desamparo de quem mora na rua. Na manhã do domingo 21, ele foi uma das cerca de cem pessoas semteto atendidas em São Paulo pelo projeto Médicos de Rua, uma iniciativa que ganha corpo no Brasil com a força da solidariedade de profissionais de saúde que dedicam voluntariamente tempo e material para prestar assistência a essa população. Mais três barracas e uma ambulância completavam a estrutura montada em frente ao Pátio do Colégio, no centro da capital paulista. O exame clínico, aliado às poucas informações que o rapaz consegue transmitir sobre si mesmo, leva à conclusão de que o jovem tem pneumonia. Ele é medicado com antibiótico e ganha um tempo para descansar na maca. Não fala nada. Apenas firma os olhos nos olhos da estudante de medicina que o atende. Por alguns segundos, parece sentir-se conectado com sua humanidade novamente. O olhar, até então só de solidão, manifesta gratidão.
O projeto foi trazido ao Brasil em 2015 pelo neurologista Mário Vicente Guimarães, professor da Faculdade de Medicina da Anhembi-Morumbi, de São Paulo, instituição integrante da Rede Laureate. Mário trouxe a ideia depois de conhecer o trabalho do médico americano Jim Withers, o grande inspirador do que hoje se chama medicina de rua. Desde 1992, ele faz o atendimento da população semteto. Começou nas ruas de Pittsburgh e hoje ajuda a coordenar uma organização dedicada à prática que já atua em 85 cidades de 15 países. Jim estava na ação realizada em São Paulo na semana passada. Mesmo sem falar português, anda por entre as barracas e conecta-se com os pacientes com extrema facilidade. Abre um sorriso para cada um que se aproxima, escuta, mas não entende, claro, o que não o impede de terminar o breve encontro com um abraço. “Quando você vê a força de um abraço para que alguém reencontre sua humanidade, nunca mais enxerga o cuidado com o outro do mesmo jeito”, diz.
Quando começou, Jim vestia-se como um sem-teto. Achava que seria mais fácil ser aceito. O brasileiro Mário também iniciou sozinho a ação em São Paulo. Pouco a pouco, ganhou a ajuda de estudantes, fez parceria com a Pastoral da Rua, da Igreja Católica, e viu o movimento crescer. Em 2017, a enfermeira Elaine Peixoto, coordenadora Clínica do Centro Integrado de Saúde da instituição, aderiu. Hoje, todo último domingo do mês, alunos de medicina, de farmácia, de enfermagem e de outras áreas juntam-se a seus mestres para socorrer quem não tem acesso a qualquer serviço de saúde. “Muitos se sentem intimidados em procurar auxílio”, conta Elaine.
Doenças infecciosas, respiratórias e lesões resultantes de brigas ou de feridas no pé pelo simples fato de a pessoa não ter um sapato estão entre os casos mais comuns. Em meio a tanta precariedade, a assistência às vezes sai da esfera médica para a judicial (auxílio para obter documentos, por exemplo, com ajuda de advogados) ou abrange o paciente e seus animais. O trabalho com os bichos é feito por veterinários para tratar doenças que façam mal aos animais e aos humanos. “O que vemos aqui é a prática da verdadeira medicina humanizada”, diz o cardiologista Sergio Timerman, decano do curso de Medicina da AnhembiMorumbi, que também estava na ação do domingo. O neurologista Mário e a enfermeira Elaine receberam o Prêmio Here for Good 2018 na categoria docentes/colaboradores, oferecido pela Laureate. Ações semelhantes estão sendo realizadas em outras cidades, todas com participação voluntária e bancadas muitas vezes com ajuda do dinheiro do próprio bolso dos participantes ou de doações. Trata-se de uma demanda sem fim em um país onde 52 milhões de pessoas estão abaixo da linha de pobreza. Olhar jovens e professores envolvidos na iniciativa com tanto entusiasmo dá esperança de que pelo menos parte desses pobres brasileiros seja olhada e tratada como o que são: seres humanos e cidadãos como todos nós.
Doenças infecciosas, respiratórias e mentais estão entre as principais enfermidades apresentadas