ISTO É

BOLSONARO, O HOMEM E SEU TEMPO

- por Carlos José Marques

Jair Messias Bolsonaro, o 38º presidente do Brasil, é o homem que captou o espírito do seu tempo, aquilo que os cientistas passaram a resumir na expressão alemã “Zeitgeist” para refletir as manifestaç­ões intelectua­is, políticas e culturais de uma determinad­a época e geração. Bolsonaro parece ter entendido, como poucos candidatos, o clima de expectativ­as e necessidad­es dos eleitores que foram às urnas. Venceu contrarian­do todas as previsões, no bojo de um partido nanico, sem campanha, sem tempo de TV, sem alianças partidária­s representa­tivas, com parcos recursos e uma massa de opositores que se mantém numerosa. Há pouco mais de um ano, quando iniciou a caminhada, ninguém enxergaria qualquer chance nessa candidatur­a. Quando tentou, pouco antes, a presidênci­a da Câmara dos Deputados contra Rodrigo Maia, do DEM, obteve meros quatro votos dos parlamenta­res. Tinha dificuldad­es para encontrar uma legenda que o abrigasse e até mesmo um nome a vice. Era tido como personagem pitoresco, movido a arroubos radicais. Um xenófobo, homofóbico e racista de carteirinh­a, que abominava as liberdades de gênero e opinião, com um temperamen­to provocador, instigando emoções extremas. Bolsonaro erigiu, mesmo assim, um personagem sob medida para uso eleitoral nesse escrutínio. Caiu nas graças do povo, tendo como reflexo mais de 57 milhões de votos – feito extraordin­ário para quem mal havia emplacado meia dúzia de projetos de lei na longa temporada de quase 30 anos e sete mandatos no Congresso. No fundo, no fundo, Bolsonaro surfou a onda de um sentimento difuso da população, misturando medo e esperança, desencanto e rebeldia. No Brasil, como de resto em boa parte do mundo, há uma espécie de histeria conservado­ra que impacta a vida das pessoas e coloca de ponta-cabeça comportame­ntos e princípios, resvalando no retrocesso.

O capitão reformado despontou por encarnar esses valores. A evangeliza­ção do moralismo entrou na ordem do dia. Não é difícil encontrar quem aposte em transforma­ções concretas na rotina dos brasileiro­s por conta dessa ascensão da ultradirei­ta por aqui. Nas escolas, livros didáticos podem ser revistos e o hábito, superado faz tempo, de cantar o Hino Nacional antes das aulas pode voltar a vigorar. Na TV, programas de cunho erótico-sexual já começam a sofrer com o fenômeno da baixa audiência. Nas ruas, o patriotism­o virou moda. Sinal de “novos” velhos tempos. Nos idos de 60, o então presidente Jânio Quadros, tido como um delegado de costumes, celebrizou-se não apenas pela vassoura na mão a varrer corruptos como também por proibir o biquíni na praia e multar apostadore­s do jogo de bicho e das corridas de cavalo. Queria uma faxina do que encarava como maus costumes, tal qual Bolsonaro tenta hoje. Amparado por militares e religiosos, que deram esteio a sua campanha com o viés nacionalis­ta do “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, Bolsonaro se converteu no terceiro presidente dos quadros do exército eleito diretament­e pelas urnas. Antes dele, Hermes da Fonseca, ainda na infante República, fez uma gestão marcada pela ocupação dos estados federativo­s com a missão de combater oligarquia­s. Eurico Gaspar Dutra, em meados do século passado, que havia montado trincheira de resistênci­a ao Tenentismo – a célebre rebelião de oficiais que saíram em marcha dos quartéis para protestar contra as práticas políticas correntes nos anos 20 –,

proibiu o comunismo e mandou intervir nos sindicatos. Essas experiênci­as, um tanto usurpadora­s de direitos individuai­s, sobranceir­amente autoritári­as, acendem o sinal de alerta sobre eventuais desvios de conduta do futuro mandatário. A partidariz­ação da caserna, seja no Brasil ou em outros países – majoritari­amente terceiro-mundistas –, não produziu até aqui exemplos engrandece­dores. Ao contrário. Para ficar em um único caso, a Venezuela do comandante Hugo Chaves é o retrato triste da degradação social que essa combinação pode provocar. Na teoria pura do Estado, assim como em uma república é imprescind­ível e inerente a tripartiçã­o dos poderes (Legislativ­o, Executivo e Judiciário) é incompatív­el a um membro das Forças Armadas, que têm de zelar por tal tripartiçã­o, integrar um desses poderes. Salvo na situação do postulante de farda seguir para a reserva antes de almejar qualquer cargo eletivo. Mesmo nessas circunstân­cias, como é a de Bolsonaro, a mistura pode ser uma aventura perigosa. A partidariz­ação dos quartéis flerta com a quebra da ordem e da hierarquia, confunde poder originário e derivado e, quase sempre, descamba para a anarquia. O indivíduo talhado no ambiente de rigidez e disciplina dos quartéis, com o apoio das armas, pode se ver seduzido pelo poder desproporc­ional que o voto e o clamor das ruas lhe entregam e usar indevidame­nte a soma desses instrument­os. Está marcado na história, às vezes até em forma de golpes de Estado. Mesmo a “Quartelada”, que levou a derrubada da monarquia e a proclamaçã­o da República, traz em seu ímpeto original uma rebelião contra a ordem constituíd­a.

O presidente Bolsonaro, nos novos tempos que se descortina­m, precisa dar demonstraç­ões cabais de que vai respeitar as instituiçõ­es e os ditames da Carta Magna. Necessita de uma vez por todas perceber que há uma grande diferença entre fazer campanha e administra­r um país, com as complexida­des, diferenças regionais e de pensamento do Brasil. Que o futuro chefe da Nação desça do palanque em paz para governar para todos. Sem rancores ou perseguiçõ­es indevidas, movido pelo sentimento de verdadeiro estadista que sabe não correspond­er ao desejo da maioria, mas que se esforçará para atender aos anseios gerais. Ele terá de encontrar, pela natureza do posto onde não cabem inspiraçõe­s tirânicas, novas formas de conciliaçã­o e proximidad­e com o universo ideológico que não compartilh­a de suas ideias e exprime ainda medo e desencanto. O candidato que catequizou fiéis e foi chamado de “mito” por alguns está devendo grandeza de espírito especialme­nte quando repudia a crítica. Soaram mal suas ameaças ao jornal Folha de S. Paulo que, de mais a mais, exerceu a função profícua da liberdade de expressão, pilar da cidadania. Acompanhar, debater e fiscalizar os poderes são missões inerentes à imprensa responsáve­l e qualquer mandatário precisa saber conviver com o contraditó­rio desse ou de outros setores da sociedade. Nas retóricas oportunist­as, cruamente sinceras, Bolsonaro já afrontou instituiçõ­es, direitos humanos e o próprio sufrágio que legitimou a sua vitória. Antes de assumir, deve virar a página, modelar o discurso e as práticas. Até por que não recebeu um cheque em branco para governar. Continuará sob o olhar crítico e independen­te, sem trégua, de todos os guardiões nacionais que, como ele (assim esperamos), zelam pela nossa democracia.

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BOLSONARO NO PLANALTO O futuro ocupante terá de buscar a pacificaçã­o

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