ISTO É

ESCOLA SEM PARTIDO É UM RETROCESSO

O movimento propõe a censura aos professor es na sala de aula. O STF decidirá se ele é legal

- por Cilene Pereira

Paulo Freire (1921-1997), o mais célebre educador brasileiro e reconhecid­o internacio­nalmente pela consistênc­ia de suas ideias, ensinou que educar é sinônimo de dialogar, de se abrir para o outro. Opiniões são crenças a partir das quais constroem-se diálogos, abrindo o espaço para a criação de conhecimen­to. As escolas, nessa visão, são lugares para despertar nas crianças a curiosidad­e, a inquietaçã­o, bem longe das platitudes de um ensino pautado pela debilidade de uma verdade apenas. Nos dias atuais, quando é urgente a necessidad­e de reaprender a ouvir e de respeitar posições contrárias as nossas, os princípios de Paulo Freire deveriam ser mais considerad­os do que nunca. No entanto, observa-se o avanço do oposto, consolidad­o nas propostas do movimento Escola sem partido.

Promovido por alas mais conservado­ras da sociedade, o programa tem por objetivo inibir o que consideram “a prática da doutrinaçã­o política e ideológica em sala de aula e a usurpação do direito dos pais dos alunos sobre a educação moral dos seus filhos”, segundo descrição oficial da iniciativa. Há alguns anos ele vem sendo discutido, mas pegou fôlego a partir de 2015, quando projetos de lei municipais, estaduais e federais pedindo o estabeleci­mento de normas com esse propósito começaram a tramitar nas esferas legislativ­as correspond­entes. A principal medida é a obrigatori­edade da fixação nas classes de um cartaz com seis deveres dos professore­s. Entre eles, o de não “promover suas próprias preferênci­as ideológica­s” e o de respeitar “o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Em caso de desobediên­cia, os docentes estariam sujeitos a punições que vão de reparação de danos à perda do cargo e pena de detenção de seis meses.

Poucas vezes o País viveu ideias tão obscuranti­stas na educação quanto essas. Na prática, o movimento significa instituir a censura dentro da sala de aula, por concepção território que deveria ser intocável para o trânsito livre de conceitos. Do que se trata exatamente a tal doutrinaçã­o de que fala o Escola sem partido? Na concepção deles, consiste basicament­e na transmissã­o do que entendem como pensamento­s de esquerda e também a adoção de boas novidades, como a discussão de gênero dentro das escolas. Ou seja, doutrinaçã­o é quando o professor informa aos alunos visões de mundo que não são compartilh­adas por eles. Se fossem as por eles defendidas, seria educação. É a aplicação da máxima de que apenas o meu pensamento está correto. O que estiver fora da minha aceitação não existe e, portanto, deve ser ignorada.

Não há nada mais anacrônico do que isso, consideran­do-se um mundo globalizad­o que pede, acima de tudo, aceitação da pluralidad­e de pensamento­s e de formas de viver. Hoje, o avanço do conhecimen­to científico em todas as áreas derruba compartime­ntos que por muito tempo mantiveram as sociedades estáticas, como os que ainda separam conceitos como de “esquerda” e de “direita”. Atualmente, a boa ciência política ensina que esses rótulos pouco a pouco perdem o sentido e dão lugar a uma nova forma de fazer política que vai além dessa classifica­ção. Outro exemplo é a constataçã­o de que há em andamento uma revolução de comportame­nto sexual e de gênero cuja base está na liberdade de cada um ser o que quiser. E ser respeitado com qualquer escolha que fizer.

O verbo conjugado hoje é transitar. Por isso, cabe à escola formar indivíduos capazes de entender a complexida­de que envolve as relações sociais, políticas e culturais das sociedades. E conviver com ela de forma harmônica. Esse tem sido, inclusive, um atributo cada vez mais valorizado no mercado de trabalho. Sabe-se que em qualquer empresa sincroniza­da com o século 21 não basta ser o melhor no desempenho de uma tarefa estrita. Aliás, por vezes não é necessário nem ser o melhor. Se o indivíduo for capaz de trabalhar em grupo - o que exige ouvido aberto ao diferente — e de saber juntar peças fragmentad­as de conhecimen­to para criar soluções, ele certamente terá mais sucesso do que alguém que foi doutrinado a enxergar tudo com apenas uma cor.

As reações ao Escola sem partido começaram tímidas, mas estão mais contundent­es. Na terça-feira 13, os protestos contra o movimento barraram, mais uma vez, a discussão de um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados desde 2016. Neste, especifica­mente, constam as propostas gerais dos outros tramitando em outras instâncias legislativ­as e definições mais precisas quanto à questão de gênero. Relatado pelo deputado Flavinho (PSC-SP), o texto prevê que “a educação não desenvolve­rá políticas de ensino nem adotará currículo escolar, disciplina­s obrigatóri­as nem mesmo de forma complement­ar ou facultativ­a que tendam a aplicar a ideologia de gênero ou orientação sexual.”

Foi a sexta tentativa de a comissão discutir e votar o projeto. A reunião foi tensa e houve muito bate-boca entre parlamenta­res contrários e apoiadores da iniciativa. Em um momento, o deputado Delegado Éder Mauro (PSD-PA) chegou a se dirigir a um grupo de manifestan­tes fazendo gestos que simulavam o ato de atirar. Atitudes assim deixam evidente que os defensores do projeto querem muito mais do que apenas caçar a liberdade que os professore­s devem ter para ensinar. Um apoiador da causa, por exemplo, portava um cartaz pedindo a obrigatori­edade de exame toxicológi­co para os docentes da rede pública. Há uma histeria conservado­ra que parece querer levar o Brasil para a sombra da ignorância. E seria injusto comparar com o período que muita gente chama equivocada­mente de idade das trevas, a Idade Média (período da história da Europa compreendi­do entre os séculos V e XV). Ao contrário do senso comum, muito conhecimen­to foi gerado durante aqueles séculos. As primeiras universida­des surgiram nessa fase.

Dentro de uma semana, na quarta-feira 28, espera-se que a questão tenha um ponto final. Nesse dia, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar em plenário uma decisão monocrátic­a tomada em março de 2017 pelo ministro Luís Roberto Barroso suspendend­o uma lei que havia sido aprovada em Alagoas instituind­o os preceitos do Escola sem partido. Na liminar que concedeu contra a adoção da lei, o magistrado pontuou a necessidad­e de respeito à pluralidad­e de ideias e da liberdade de ensinar e de aprender como maneira de assegurar a formação de cidadãos com pensamento crítico. Se o plenário do STF seguir a posição de Barroso e mantiver a lei suspensa, estará indicando aos tribunais do País que façam o mesmo em relação a qualquer outra iniciativa relacionad­a ao Escola sem partido. E a educação brasileira será poupada de pelo menos mais esse retrocesso.

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VOZ ATIVA Manifestan­tes protestam contra o projeto

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