O charme feroz de “Narcos: México”
A nova temporada da série da Netflix conta como o Cartel de Guadalajara se tornou a potência mundial da maconha
“Narcos” é uma série de ficção peculiar porque começa nos dispositivos de streaming para se completar no mundo real — e vice-versa. As sequências de ação, violência e sexo em torno do tráfico de drogas nas Américas se colam à vida real, como se não houvesse diferença entre os dois mundos. O sucesso é tamanho que os traficantes de verdade imitam os trejeitos e roupas vintage ostentados pelos traficantes ficcionais da trama. Os bandidos reais que não morreram viraram fãs e acompanham os episódios de suas respectivas celas. Um deles é Miguel Ángel Félix Gallardo, conhecido como El Padrino (O Chefão), preso há 31 anos. Ele é o personagem central de “Narcos: México”, vivido pelo galã Diego Luna. Os dez capítulos narram como prosperou o poderoso Cartel de Guadalajara, que Gallardo fundou em 1986 nos moldes das grandes corporações americanas.
Talvez o vaidoso Padrino se decepcione com a atuação pela falta de semelhança.
“Não procurei imitar a fala ou os gestos de Gallardo, e sim interpretá-lo a minha maneira”,
diz Diego Luna à ISTOÉ, no lançamento da quarta temporada da série que aconteceu duas semanas antes da estreia, em 16 de novembro. “Faço um tipo mais frio e discreto.” As entrevistas com o elenco tiveram lugar no hotel mais luxuoso do centro financeiro da Cidade do México. O cenário combina com algumas das sequências da história que transcorrem tanto nas plantações de maconha e papoula da Baixa Califórnia como nos círculos mais ostentatórios das grandes cidades mexicanas.
A atmosfera do encontro entre artistas e jornalistas se pautou pela agitação. Repórteres de todas as mídias se acotovelavam para conversar entre si e com os atores que vivem vilões e heróis da guerra às drogas, patrocinada em meados dos anos 1980 pelo governo americano. “A verdade é que todos os personagens são quase não vilões e quase não heróis”, diz o produtor americano Eric Newman, criador da série há cinco anos em parceria com o diretor brasileiro José Padilha.
A dupla escolheu o realismo extremo como estilo. Os episódios costumam ser gravados nos locais dos acontecimentos, com os atores cobertos de poeira e barro. “A Netflix deu carta branca para a gente filmar nas plantações de coca da Colômbia e nos campos de maconha do México”, diz Newman. “A liberdade torna as histórias mais reais.” Por isso, manter a distância é tão difícil que tramas tão reais como inimagináveis invadem os sets de filmagem.
SAGA DE NEM
Em geral, um profissional é enviado às regiões escolhidas para organizar o trabalho. Foram sete meses de produção. Em 10 de setembro último, o gerente de locações da Netflix Carlos Muñoz Portal prospectava um terreno quando desapareceu. Seu corpo foi encontrado crivado de balas em um carro. Não houve motivo. “Foi um choque”, afirma Newman. “Não tivemos esse problema na Colômbia.” Ele concorda que o crime aconteceu porque os cartéis continuam operantes e o alcance da violência é maior. “Há um conluio entre políticos, militares, empresários e traficantes que fortaleceu a economia do México’, diz Diego Luna. “A falta do Estado em algumas regiões permite que o crime faça parte do cotidiano.”
Uma das histórias que Newman e Padilha querem abordar na quinta temporada é a de Nem da Rocinha. “O Brasil é um consumidor recente e deu origem a traficantes com traços próprios”, diz Newman.
“Os narcos colombianos e mexicanos são espalhafatosos. Os brasileiros, como Nem, vivem incógnitos no morro. Seu poder está na ocultação.”
Newman acha que a série tem uma lição a dar. “Os cartéis persistem porque a estratégia da guerra às drogas dos americanos é equivocada por atacar o efeito em vez da causa”, afirma. “Enquanto as tropas combatem plantadores e traficantes, os chefões seguem no poder.”
Eis aí o paradoxo com que lidam os realizadores e atores de “Narcos”: a meta é produzir um belo espetáculo de aventura e ação, mas o material em que a diversão se baseia é tristemente sangrento.
“Todas as histórias apontam para os maiores consumidores de drogas do mundo. Todas são Narcos: EUA” Eric Newman, produtor