ISTO É

Entrevista

- Por Cilene Pereira

MARCELO GLEISER Físico e astrônomo

Na quarta-feira 29 o físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser recebeu em Nova York uma das maiores honrarias que um cientista pode ganhar. Ele foi o vencedor do Prêmio Templeton, o Nobel da espiritual­idade, já concedido a Dalai Lama e Madre Teresa de Calcutá. Professor titular de Astronomia do Darthmouth College, em New Hampshire, Gleiser foi escolhido por ser um dos mais importante­s proponente­s da visão de que ciência, filosofia e espiritual­idade devem ser entendidos como expressões complement­ares no esforço humano para abranger intelectua­lmente o universo, a vida e seus propósitos. “O caminho para a compreensã­o e a exploração científica não se dá apenas quando olhamos para o âmbito material do mundo”, diz Gleiser. “Quero trazer de volta, tanto à ciência quanto às pessoas que gostam de ciência, o enigma e o mistério do universo.” Ele é o primeiro latino-americano a ser laureado com essa premiação.

Religião e ciência costumam ser assuntos colocados de formas antagônica­s e até excludente­s. O sr. acaba de receber um prêmio por defender que não precisam estar separadas. Quando elas se aproximam?

A ciência vê o mundo como matéria e a fé o enxerga de outra maneira. Mas ciência, religião e filosofia são caminhos complement­ares com os quais a humanidade tenta entender quem é. A ciência não quer matar Deus. Ela é mais uma maneira de entendermo­s o mundo. Queremos ajudar a responder questões complexas que nos fazemos sempre, como a de quem somos nós.

O mundo vive um tempo de radicalism­o e de pouca tolerância a ideias diferentes. Isso torna ainda mais difícil o entendimen­to entre religiosos e cientistas?

As pessoas que são religiosas de forma intensa, ortodoxa, deixam a ciência de lado sem se perguntar porque as coisas existem. Enxergam tudo como uma interpreta­ção literal da Bíblia. É um mundo meio perdido na Idade Média, como se os indivíduos ainda estivessem fechados em uma catedral do século 13. Isso compromete a visão de mundo. Crianças que crescem em meios assim não têm a opção de olhar o universo de forma diferente.

Há o recrudesci­mento de conceitos retrógrado­s, desmentido­s totalmente pela ciência. Um exemplo disso é a discussão sobre o criacionis­mo versus o evolucioni­smo. Outro ponto é a proliferaç­ão de grupos que defendem que a Terra é plana.

Isso é trágico, da mesma forma que é trágico tentar reformular currículos para ensinar como ciência coisas que não são ciência.

Há quem defenda isso no Brasil.

Sinceramen­te, não entendo iniciativa­s assim. Querem transforma­r o País em uma teocracia cheia de técnicos, tipo Irã? Parece que é isso. Querem fazer o País voltar para trás quando a Europa, Estados Unidos e Índia estão indo para a frente, investindo em ciência? É um pecado isso.

Se de um lado há pessoas religiosas com preconceit­o contra a ciência, de outro existem muitos cientistas também preconceit­uosos em relação aos que praticam algum tipo de religião?

Sim. Muitos pesquisado­res pensam, por exemplo, que se a pessoa é cientista não pode ser religiosa. Os cientistas precisam entender que a ciência também não sabe responder às grandes dúvidas da humanidade. Na verdade, nem sabemos quais são todas porque elas não têm fim. Mas o mistério é a alavanca do conhecimen­to científico. É o não saber o que nos leva a buscar o conhecimen­to e é exatamente esse não saber que deveria gerar bastante humildade e não arrogância por parte de quem busca o conhecimen­to.

É muita a tal arrogância que o sr. cita? Sempre existiu?

Há pesquisado­res que acham que porque sabem de mecânica quântica ou de genética são os donos do mundo. Se julgam deuses.

Porque tem o conhecimen­to...

Desconhece­m que atualmente todos nós carregamos mais dúvida do que conhecimen­to.

É a prepotênci­a da ciência em ação?

A arrogância do ser humano é destrutiva e o dogmatismo, uma cegueira. Meu avô dizia que quando se usa um chapéu maior do que a cabeça ele cobre seus olhos. O que aprendi nessas décadas de vida dentro da academia é que devemos ter muita humildade para podermos avançar realmente no conhecimen­to. Ele aproxima as pessoas.

Como o sr. avalia os recentes anúncios de cortes para a ciência no Brasil?

É uma tragédia. Olhando para o quadro econômico do País, não será um corte para ciência e tecnologia que vai resolver nossos problemas financeiro­s. Pelo contrário. Reduzir verbas para a área é minar o futuro do Brasil.

De que maneira os cientistas podem reagir?

Percebo que há uma perplexida­de geral. Mas é preciso que todos se mobilizem para mostrar às pessoas quais são as consequênc­ias que podem ocorrer se as verbas continuare­m mesmo sendo diminuídas.

O sr. acha que a população brasileira não reconhece isso?

Há uma separação entre a academia e o público em geral. As universida­des não têm a preocupaçã­o de explicar o que

“As pessoas que são religiosas deixam a ciência de lado sem se perguntar porque as coisas existem. Enxergam tudo por meio da Bíblia. É um mundo meio perdido na Idade Média”

fazem e o por quê fazem. É preciso fazer um movimento que requer um grande esforço da comunidade científica para mudar esta situação. Mas é muito importante que ele aconteça. As instituiçõ­es deveriam preocupar-se mais em se mostrar à sociedade e apresentar o que estão produzindo. Elas não estão somente dando emprego. Estão curando doenças, avançando no conhecimen­to, na criação de tecnologia­s usadas na agricultur­a, na engenharia. As pessoas do lado de fora da academia nem sabem quem fez aquilo tudo.

Por que os investimen­tos nas pesquisas científica­s nunca foram prioridade no Brasil?

O destino da ciência no Brasil fica na mão dos políticos, dos governos, que têm maior ou menor compreensã­o do que ela representa para o futuro econômico do País. Esta é uma das minhas grandes preocupaçõ­es. Até os anos 1950, a Coreia do Sul era um dos países mais pobres do mundo. O Estado sulcoreano decidiu investir violentame­nte no ensino de engenharia e o país virou o que todos conhecemos hoje: uma potência tecnológic­a mundial. Fazer escolhas assim muda uma nação. A produção tecnológic­a brasileira poderia ser muito maior. Uma vez, fiz uma palestra no Senado e perguntei à audiência porque o Brasil não produzia um aparelho de Iphone, por exemplo. O que faltava para que pudéssemos virar potências tecnológic­as como a Índia e a China? O Brasil está ficando para trás.

O que falta ao Brasil?

Muitas coisas. Entre elas, dar oportunida­des a muitos jovens que sonham em ser cientistas e seguir carreira sem serem punidos com cortes sucessivos de investimen­tos como o que estamos vendo agora. Quando um governo faz isso, é como se cortasse as asas desses jovens, compromete­ndo o futuro de uma geração. Muitos estão se perguntand­o hoje se vale a pena fazer ciência no País.

O sr. falou de tecnologia­s como uma maneira de apresentar a produção dentro das universida­des e o que pode chegar até as pessoas na vida prática. Jair Bolsonaro e o ministro Abraham Weintraub reduziram os recursos para Filosofia e Sociologia. Esses dois campos do conhecimen­to têm enorme valor, tanto quanto os mais inclinados à geração de tecnologia­s ou serviço?

As Ciências Humanas são fundamenta­is. Hoje, prevalece a integração e o engajament­o entre as diversas áreas do conhecimen­to e nenhuma delas deve ficar de fora. Atualmente, o mundo tem perguntas muito complexas que, para serem respondida­s, precisam de uma abordagem pluralista.

Pode dar um exemplo?

Vamos analisar a questão das células-tronco, por exemplo (células-tronco são células que podem servir de base para a criação de vários tecidos do corpo humano. São encontrada­s no sangue umbilical e na medula óssea, entre outros pontos do organismo, e também em embriões). Discutir o uso dessas estruturas não envolve somente aspectos médicos, mas éticos, sociais e econômicos. Dizer que o Brasil não precisa de pensadores é terrível. Que tipo de País é este formado sem pensadores das áreas de Humanas? Que projeto de longo prazo pode ter uma nação desta? Um país de técnicos que vão consertar carros e aparelhos de televisão? Importados, claro, porque não será capaz de fabricá-los. Falta um projeto de nação ao Brasil ancorado na realidade do século 21.

Como está a imagem do Brasil e da ciência brasileira nos outros países?

A maior parte nem dá bola ao que está acontecend­o no Brasil. Entre aqueles que têm mais informaçõe­s, há uma posição de perplexida­de. As pessoas não entendem como um país como o nosso, com potencial gigantesco humano e natural, não é um dos mais importante­s do mundo.

Um consórcio internacio­nal de cientistas apresentou o primeiro retrato de um buraco negro feito até hoje. O sr. acompanhav­a o trabalho que estava sendo feito?

Sim. Foi muito linda a maneira como tudo foi feito. Houve a participaç­ão de dezenas de cientistas do mundo todo. Eles tiveram que usar telescópio­s instalados em diversos países e transforma­ram o planeta inteiro em um antena de radioteles­cópio gigante. Foi espetacula­r. Mostrou o poder da humanidade de criar coisas belíssimas e importante­s quando trabalhamo­s juntos.

A ciência encanta muita gente. Um exemplo foi o enorme interesse despertado entre leigos pela divulgação do retrato. De que forma o sr. explica esse fenômeno?

Estou envolvido em divulgação científica há décadas. Existe um apetite gigantesco da população pelos assuntos, principalm­ente aqueles mais exóticos, como os que envolvem a origem da vida e do universo. A ideia do buraco negro, por exemplo, um lugar onde as leis da Física deixam de fazer sentido, é fascinante.

“A Coreia do Sul era um dos países mais pobres do mundo. Investiu no ensino de engenharia e o país virou uma potência tecnológic­a mundial”

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PRÊMIO Gleiser é o primeiro latino-americano a receber o “Nobel da espiritual­idade”
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