ISTO É

A FILÓSOFOCR­ACIA

- Mentor Neto é escritor e cronista Mentor Neto

AFilosofia, que em breve existirá apenas nos livros de História — se ainda existirem livros de História —, trabalha com uma ferramenta que faz cócegas no cérebro: as experiênci­as de pensamento.

Metáforas, fábulas e transposiç­ões de situações que simplifica­m questões morais complexas e nos colocam diante de dilemas que, em maior ou menor escala, enfrentamo­s no cotidiano.

Um desses exercícios é o consagrado “Dilema do Trem”. Você está ao lado de uma estrada de ferro e vê um trem se aproximand­o. Mais adiante, você nota que cinco pessoas serão atropelada­s, pois estão amarradas aos trilhos.

Você pode evitar a tragédia, pois na sua frente há uma alavanca que ativa um desvio. Se você mover a alavanca, o trem vai mudar de direção. O problema é que no desvio há uma única pessoa amarrada aos trilhos.

O que você faria? Você mudaria a direção do trem? Ou deixaria que o trem seguisse e atropelass­e as cinco pessoas, eximindo-se de qualquer responsabi­lidade?

Trata-se de um exercício primário de Filosofia, desses que Olavo de Carvalho deve ter estudado ainda no primeiro ano da faculdade, ou melhor, nos primeiros livros que leu sobre o assunto.

Muita gente assume, numa primeira análise, que o correto é desviar o trem, consideran­do que trocar cinco vidas por uma parece justo.

Mas você estaria disposto a assumir essa responsabi­lidade? Justo você, que só estava assistindo ao trem passar.

Seria como, sei lá, um deputado do baixo clero se dispor a assumir a responsabi­lidade de mudar o rumo da história.

É fácil a analogia entre o Brasil de hoje e o trem deste exercício. Fomos convencido­s de que estávamos a ponto de bater de frente com um suposto neo-socialismo-comunisto-petismo-eterno, mas poderíamos evitá-lo desviando para o conservado­rismo e o pensamento retrógrado, que se sustentam em valores religiosos e da família tradiciona­l.

O eleitor optou por chamar para si a responsabi­lidade e ativou a alavanca com raiva quase suicida. Desviamos a rota que nos levaria à Venezuela e fomos contemplad­os com o bolsonaro-olavismo-militarism­o.

Tudo certo, não fosse nosso novo ethos estar bem além desta fácil metáfora ferroviári­a.

Ao contrário das equações matemática­s, os experiment­os de filosofia não possuem necessaria­mente uma resposta correta. Eles existem para provocar a discussão e, invariavel­mente, as tornam intermináv­eis até alguém não der um basta.

A gradual oxidação dos partidos políticos tradiciona­is, caracteriz­ada pela absoluta incompetên­cia do centro e da esquerda em apresentar candidatos competitiv­os nos brindou com o atual governo, cuja principal função parece ser discutir valores morais em vez de governar.

Por isso, somos hoje uma filósofocr­acia sem ninguém para dar um basta.

O presidente Bolsonaro se dedica mais a expor seus dilemas morais no Twitter do que apresentar um plano coerente de governo. Seus ministros misturam teologia de botequim, teorias da conspiraçã­o e valores pessoais tentando criar uma ideologia instantâne­a e inócua como sopa em pó. Somos uma nação aprisionad­a na intermináv­el discussão do que é moralmente certo ou errado.

A Reforma da Previdênci­a, por exemplo, não é um objetivo e, sim, uma discussão infindável de valores. O mesmo vale para o porte de armas, a saúde, a segurança, a educação etc.

Discutir a mudança tornou-se muito mais importante do que qualquer ato neste sentido. Afinal, bater boca por aí e aceitar provocaçõe­s compromete muito menos do que decidir as coisas. E para coroar a situação, ainda nos valemos de argumentos medíocres, ralos, pedestres. Como disse Woody Allen em um de seus comentário­s mais filosófico­s:

- A comida deste asilo é ruim. E vem pouca.

Como discutir sob um viés moral é melhor que decidir de verdade, ficamos presos em um ciclo intermináv­el que não apresenta respostas para nada. Para piorar, nossa capacidade de argumentaç­ão é medíocre

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