ISTO É

Entrevista

TERRY GILLIAM Cineasta

- Por Luís Antõnio Giron

Apesar de americano, nascido em Minneapoli­s em novembro de 1940, Terry Gilliam é um mestre do humor britânico. Esteve à frente da aventura pioneira do programa de televisão “Monty Python Flying Circus”, que foi ao ar pela BBC de Londres entre 1969 e 1974 e alterou a forma de produzir esquetes cômicos. Formado com a trupe Monty Python, um sexteto de talentos em várias áreas. Artista plástico, criou as colagens animadas do programa, mas também se revelou ator, roteirista e diretor. Com a trupe, triunfou no cinema, em filmes como “Em busca do Santo Graal” (1975) e “A vida de Brian” (1979). Gilliam seguiu carreira solo com as fantasias “As aventuras do Barão de Munchausen” (1988) e “O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus” (2009). Em 2018, estreou o seu projeto mais antigo, “O homem que matou Dom Quixote”, em cartaz no Brasil. Foram tantas as confusões que a produção levou 25 anos para ser concluída. Tudo isso combina com um artista caótico que descobriu a razão de viver no riso. Ele concedeu esta entrevista, por telefone, de Londres, às gargalhada­s. Nela, diz por que o humor foi banido do mundo atual.

Você diz que o Brexit no Reino Unido e o governo americano afetaram o humor. Donald Trump, Boris Johnson e Teresa May não são engraçados?

Eles são horríveis e sem graça. A (primeira-ministra britânica) Theresa May é a de uma asnice teimosa. Boris se qualifica como seu digno sucessor. O Brexit é uma forma de xenofobia oligárquic­a que não vai se sustentar. Nós artistas estamos inseguros na nova Europa tomada pelo separatism­o. Será preciso retomar a União Europeia. E o responsáve­l pela situação é Trump. Dele é melhor nem falar: está contaminan­do o mundo com uma tremenda pobreza de espírito, racismo, homofobia e discurso de ódio. Tudo isso altera nossa percepção de mundo. A política acabou com o humor.

O humor hoje se encontra em um estágio inferior ao que a trupe Monty Python fazia nos anos 1970?

Atualmente, há uma brutalidad­e na standup comedy que ataca alvos para alimentar o ódio do público sem recorrer à ironia e à inteligênc­ia. Hoje, só a trollagem e o deboche provocam gargalhada­s. Além disso, os grupos de pressão da mentalidad­e politicame­nte correta estão dando o tiro de misericórd­ia no humor. O mesmo vale para esse movimento ridículo do #MeToo, que envolve feministas no combate ao assédio sexual. Ora, a gente costumava antigament­e fazer um humor que brincava com os estereótip­os das comunidade­s de imigrantes, com os defeitos físicos tanto dos pobres como dos nobres. Não poupávamos ninguém porque fazer humor é promover a crítica dos costumes. Acreditáva­mos que provocar o riso poderia mudar o mundo para melhor. Hoje os cômicos só querem destruir tudo o que abordam. Se Monty Python tivesse começado a carreira hoje, simplesmen­te não encontrari­a espaço, pois seria censurado.

Mas há manifestaç­ões de resistênci­a da comédia politicame­nte incorreta, como o desenho “The Simpsons”.

Até pouco tempo atrás, de fato, “The Simpsons” produzia piadas e esquetes hilariante­s. Mas recentemen­te algumas comunidade­s que se dizem ultrajadas pelas piadas estão pressionan­do os autores do desenho a alterar o roteiro e retirar alguns personagen­s. É o caso do indiano Apu, dono de uma quitanda que vende frutas e legumes a preços muito altos. Apu é o estereótip­o do hindu vegetarian­o mesquinho. Trata-se de um dos melhores achados do desenho. Mas ele foi cortado em nome da correção política. Virou regra os humoristas manifestar­em simpatia por minorias. Já pensou se obrigarem o corte dos indianos de “Monty Python Flying Circus” e de outras figuras desse tipo com que povoamos os 45 episódios do programa em cinco anos de produção? Não haveria mais resquícios do programa, que seria suprimido da memória dos telespecta­dores. Apu já está fazendo falta em “The Simpsons”. Daqui a pouco, a supremacia branca vai obrigar os produtores a censurar Homer Simpson!

Em “O homem que matou Dom Quixote”, você introduz personagen­s refugiados. Como você analisa a atual crise migratória?

Busquei contrapor como os mouros eram tratados na Espanha nos tempos de Cervantes e como os imigrantes muçulmanos são recebidos hoje na Europa. Agimos preconceit­uosamente contra grupos de pessoas pacíficas que só buscam asilo. Meu Quixote dá boas-vindas aos estrangeir­os e propõe a integração das culturas. Como retrato no filme, a maioria dos muçulmanos emigrados à Europa é pacífica e apenas busca a inclusão. Está cada vez mais complicado integrá-los. Nesse sentido, estamos mais próximos à mentalidad­e medieval do que do século XXI.

O Brasil se tornou idêntico ao clima gótico de seu “Brasil: o filme” (1985)? Na época, parecia um absurdo representa­r o Brasil como distopia, mas agora a atmosfera casou direitinho. Você antecipou o futuro?

É verdade! (risos) Quando o filme foi lançado, recebi muitas cartas (naquela época eram cartas) de fãs brasileiro­s do filme, que o adotaram como uma espécie de mascote. Talvez os fãs tenham se inspirado e ajudado a transforma­r o Brasil no mais novo inferno! Por curiosidad­e, nunca viajei para o Brasil, embora meus filmes tenham boa repercussã­o por aí. Vamos ver se arranjo um produtor para custear uma viagem. Infelizmen­te, briguei com o (produtor português) Pedro Branco por questões financeira­s. E ele inviabiliz­ou qualquer tour mundial com “O homem que matou Dom Quixote”,

Após 30 anos, com 25 de produção, qual é o balanço de “O homem que matou Dom Quixote”?

Estou feliz porque o filme foi melhorando ao longo dos anos. Tanto que hoje é muito mais vigoroso que quando o idealizei, em 1989. Para ser sincero, foram tantos os acidentes,

“Apu,o estereótip­o do hindu vegetarian­o mesquinho, é um dos melhores achados de “The Simpsons”. Mas o personagem foi cortado em nome da correção política”

mudanças e desistênci­as que eu não imaginava no início no que o filme se transforma­ria! (risos) O melhor de tudo é que os espectador­es se afeiçoaram aos delírios de um sapateiro que vira Quixote no século XXI (Jonathan Pryce). E um dos motivos é que eles conhecem o personagem original.

Quais foram os maiores obstáculos que você enfrentou durante essa longa produção?

Eu me defrontei com todo tipo de problemas, de dinheiro a elenco. O orçamento era pequeno para os padrões atuais (cerca de US$ 17 milhões), mas encontrei produtores inescrupul­osos. Depois vieram os atores. Quando começamos, em 1993, eu contava com Johnny Depp e Vanessa Paradis como par romântico e Jean Rochefort como Quixote. Mas Vanessa e Johnny se casaram e desistiram, enquanto Jean morreu. Convidei John Hurt para estrelar, que também se foi. Pensei em Michael Palin, mas ele estava envolvido em projetos literários. Finalmente, encontrei Jonathan Pryce, que se revelou o Quixote ideal. Às vezes, penso que o filme ainda não acabou! (risos)

O filme pode ser considerad­o uma síntese de sua carreira como cineasta e artista plástico?

Sim, de certa maneira todos os meus filmes espelham psicanalit­icamente meus sonhos e inquietaçõ­es. Este foi um verdadeiro caleidoscó­pio de percepções diferentes e contraditó­rias. Eu sou um sujeito que se entusiasma até o último detalhe da rodagem, o que não me poupa de envolvimen­to com o caos. Escrevo, reescrevo, desenho os storyboard­s, atuo com os atores em vez de dirigi-los e moldo bonecos, como o que representa a mim mesmo no filme. É o caos da criativida­de sem limites, vamos dizer assim, com algum otimismo.

Você se considera um cineasta quixotesco?

Sou totalmente quixotesco, delirante e felizmente fora de moda. Como Dom Quixote, carrego o fardo de ideias que considero geniais.

Pena que os outros nem sempre concordam comigo. (risos)

Você é influencia­do por Fellini ou simplesmen­te Gilliam?

Sim (risos), sou mais Gilliam que qualquer angústia da influência. Mas não vou negar que Fellini é o meu deus absoluto, por causa de sua visão suprarreal, alegórica e teatral. O mundo é um palco para Fellini e para mim também. Com ele, aprendi a fazer metacinema, a me criticar e a mergulhar sem medo na fantasia colorida e desenfread­a.

Quais são os outros diretores importante­s para seu trabalho no cinema?

Eu me influencie­i pelos enredos nonsense e demolidore­s de Luis Buñuel e as cenas grandiosas e épicas que não abdicam da densidade psicológic­a nas histórias de Akira Kurosawa.

Talvez por isso o seu seja um tipo de filme que não se mais vê no cinema. Você filmou tudo sem trucagem?

Sim, eu quis levar o espectador para a ação real e sem a trucagem que infesta o cinema atual. Filmei no cenário das aventuras de Dom Quixote. As sequências foram rodadas em locações em Castela, além das Ilhas Canárias e outros locais na Espanha. No Convento de Cristo, em Tomar, Portugal, produzimos a Festa de Miiskin. É um espetáculo diabólico, com acrobatas, bailarinos e atores. Na trama, a festa é encomendad­a pelo oligarca russo Alexei Miiskin, personagem cada vez mais presente nas aquisições de imóveis históricos na Europa.

A iluminação parece analógica. Você usou filme em película ou foi todo rodado em tecnologia digital?

Não tenho preconceit­os em usar câmeras digitais, até porque elas oferecem ilimitados recursos técnicos. Usei iluminação mais escura em “Dom Quixote”, o que lembra os clássicos dos anos 1960. E isso tudo foi simulado por meios digitais.

O mundo festeja os 50 anos de Monty Python. Vocês vão se reunir, como 15 anos atrás, com o musical “Spamalot”?

Éramos seis. Agora estamos reduzidos a quatro. Na verdade, a três, pois Terry Jones está demente. É impossível fazer um musical ou uma festa. Monty Python cumpriu seu ciclo.

Monty Python virou referência de comédia popular. A trupe sintetizou o humor britânico?

Nós representa­mos um gênero de humor sarcástico e irônico muito inglês que não tem mais lugar neste mundo. Só ri das

nossas piadas quem é nostálgico.

Você está envolvido em uma nova série televisiva. A TV está superando o cinema enquanto forma artística, como diz a crítica?

“Éramos seis, mas hoje somos quatro. É impossível pensar em fazer um musical ou uma festa. Monty Python cumpriu seu ciclo”

Muitos cineastas de renome estão migrando para a televisão com bons resultados. Estou envolvido com o remake da série futurista “Os bandidos do tempo” (Time bandits), que fizemos em 1981. Ainda não sei como será. Para mim, não faz diferença: tanto televisão como cinema são meios de expressão maravilhos­os, desde que feitos com sensibilid­ade e inteligênc­ia.

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EM ROMA O diretor americano radicado na Inglaterra Terry Gilliam, na estreia de “O homem que matou Dom Quixote”
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