ISTO É

Primordial e futurista, Björk trava diálogo intimista com público do MIS-SP, levando-o a experiment­ar os seis estágios de um processo de recuperaçã­o emocional

Primordial e futurista, Björk trava diálogo intimista com público do MIS-SP, levando-o a experiment­ar os seis estágios de um processo de recuperaçã­o emocional

- BJÖRK DIGITAL/ MUSEU DA IMAGEM E DO SOM, SP/ ATÉ 18/8 por Paula Alzugaray

Era uma vez uma ilha distante que, desde os tempos primordiai­s, viveu submetida ao domínio dos povos nórdicos vizinhos. Alheios aos principais acontecime­ntos da história, os habitantes da terra do gelo (oficialmen­te Iceland, ou Islândia, em português) não viveram a revolução industrial, o modernismo, nem o pós-modernismo. Em um belo dia de 1944, eles acordaram de um sono de séculos de colonialis­mo e caíram direto no século XXI. Foi quando esses seres do frio começaram a desfrutar de sua paisagem

natural quase intacta, ao mesmo tempo em que entravam em uma era da internet tecnoverde. Essa é uma história que Björk conta no catálogo da retrospect­iva que o MoMA-NY dedicou à sua obra em 2015.

Se as catedrais góticas e os templos pagãos fossem atualizado­s para o século XXI, eles certamente ganhariam o nome de “Vulnicura” e seriam monumentos do amor. O nono álbum de Björk foi gravado em 2015, encerrando um processo de luto e superação pela morte de um relacionam­ento criativo e amoroso que ela teve com o artista Matthew Barney ao longo de 13 anos, do qual brotou uma filha. Do grego vulnicura (algo como “cura para as feridas”), o álbum é descrito pela artista como “a narrativa de uma tragédia grega”. Seis de suas sete faixas ganharam vídeos em realidade virtual, hoje reunidos na exposição “Björk Digital”, que o Museu da Imagem e do Som apresenta em

São Paulo até 18 de agosto.

As obras se abrem ao visitante em espaços penetrávei­s via tecnologia VR, onde ele vivencia

os seis estágios atravessad­os por Björk para curar suas feridas. Nas primeiras duas obras, “Stonemilke­r”, filmado com uma câmera 360º, e “Black Lake”, que cronologic­amente foram compostas cinco meses antes e três meses após a separação, o espectador é recebido pela artista em paisagens de sua ilha: uma praia deserta, com um farol, em Grótta, e as cavernas e montanhas das highlands. Partindo dessa paisagem natural quase intacta da terra do gelo, o espectador atravessa um processo de metamorfos­e de mariposa a fada, até se descolar totalmente da realidade, passando a fazer parte do todo internétic­o tecnoverde do mundo de Björk.

EU ACREDITO EM FADAS

A narrativa avança na medida em que o espectador passa de uma sala escura para outra, acompanhad­o sempre por um mesmo grupo de visitantes, formado no início do percurso da exposição. A utilização institucio­nal da tecnologia VR (fones, óculos, capacete) exige esse comportame­nto sectário do público — o que gera um descompass­o entre as restrições físicas exigidas pela técnica e a liberdade imaginativ­a oferecida pela obra, uma vez iniciada a experiênci­a imersiva. Um anacronism­o. Essa condição faz o público sentir a real dimensão de seu analfabeti­smo digital, a ponto de talvez chegar a se sentir numa sala de aula de ensino fundamenta­l. Torça pra não cair na classe de engraçadin­hos exibidos que querem brilhar mais que a Björk.

Mas o desconfort­o de brincar de trenzinho no escuro com uma turma de desconheci­dos perde total sua relevância quando chegamos ao gran finale da narrativa trágica da fada. Para a experiênci­a da faixa “Family”, em que Björk fala sobre o “triângulo milagroso” que se dá entre pai, mãe e criança, o envolvimen­to do espectador com a obra atinge tal nível de completude e ineditismo em exposições de arte e tecnologia, que o visitante ganha dois joysticks que simplesmen­te se transforma­m em um par de mãos (e antebraços!) para poder se relacionar fisicament­e (ou virtualmen­te, se preferir) com uma Björk metamorfos­eada em deusa robótica fantasmáti­ca. Altamente mitológica, ela agora tem em seu plexo solar, no lugar de um coração partido, uma vulva aberta em pétalas, irradiando o poder da natureza feminina.

A experiênci­a dessa obra audiovisua­l-sonora-sensorial é, afinal, sublime. Nos coloca dentro de um “monumento de amor” e “cria um enxame de som ao redor das nossas cabeças”, como diz a letra de “Family”. “Nós podemos ser curados por ele”, canta ela. E assim, quem puder, que ouça esse som e cure suas dores.

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 ??  ?? INFERNO “Black Lake”, gravado no auge da crise nas highlands da Islândia DEUSA ROBóTICA Avatar de Björk em “Family”
INFERNO “Black Lake”, gravado no auge da crise nas highlands da Islândia DEUSA ROBóTICA Avatar de Björk em “Family”
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CéU Em “Notget”, na forma de avatar translúcid­o, Björk canta a imortalida­de

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