ISTO É

A NOVA POLÍTICA NACIONAL DE DROGAS

Apesar de polêmicas, as medidas tentam protegero dependente que coloca em risco a própria vida ou a de terceiros — e adotam o tratamento daradical abstinênci­a para a superação do vício

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Aprovada pelo Congresso e sancionada por Jair Bolsonaro, entra em vigor no Brasil a nova política nacional de drogas. Traz, acertadame­nte, duas orientaçõe­s que alteram de forma radical as metodologi­as até então seguidas nessa área. Uma delas introduz a internação involuntár­ia no sistema de assistênci­a à dependênci­a química; a outra declara que o País abandona o tratamento pela redução de danos (diminuição paulatina do consumo de um entorpecen­te ou a sua substituiç­ão por outro de menor potencial ativo) e oficializa o princípio da abstinênci­a (deixar de vez e radicalmen­te o consumo da sustância que causa o vício, valendo-se somente de medicações adequadas para o alívio das síndromes). O Brasil, daqui para frente, passa a ter, então, três formas de internaçõe­s. Primeira: compulsóri­a, determinad­a pela Justiça e envolvendo as casas psiquiátri­cas de custódia destinadas aos dependente­s que cometem graves ilícitos penais. Segunda: internação voluntária, quando o dependente concorda em se tratar. Terceira: internação involuntár­ia, aquela que não conta com a anuência do paciente. Tal tipo de abordagem se dará no momento em que ele coloque seriamente em risco a sua própria vida, a de familiares ou a de qualquer outra pessoa. As comunidade­s terapêutic­as sem direção médica e corpo clínico (algumas já denunciada­s por trabalho escravo) não poderão atuar nesse tipo de institucio­nalização.

Com a internação involuntár­ia, sempre determinad­a e orientada por autoridade médica especializ­ada, o Brasil está, assim, acompanhan­do o que já existe nos demais países democrátic­os, como define o professor titular de psiquiatri­a da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, Ronaldo Laranjeira. A medida, no entanto, é polêmica. Aqueles que a contestam não deixam de ter certo grau de razão, porque, em um passado não muito distante, diversos hospitais funcionava­m feito verdadeira­s masmorras (o da cidade mineira de Barbacena, já desativado, deixou o mundo estarrecid­o tal a desumanida­de com que eram tratados, não apenas os dependente­s, mas os enfermos mentais em geral). Outro fator é que, por ser involuntár­ia, tal terapia muitas vezes não surte efeito — e se traduz como algo coercitivo. Ocorre, porém, que o texto agora sancionado fixa providênci­as cautelares e deixa claro que a dependênci­a química é

abordada como enfermidad­e, não como caso de polícia. Vejamos alguns pontos: ainda que seja a família a querer internar um parente, isso terá de ser um “ato médico” – ou seja, foi-se o tempo em que se podia abandonar em qualquer clínica o usuário de drogas porque ele se tornara um incômodo; o prazo máximo de internação é de noventa dias; e o Ministério Público tem de ser informado em setenta e duas horas. Eis agora uma precaução vital: servidores da área de segurança pública não podem requerer a internação.

Apesar de o nome ser antipático e soar como algo desumano, a internação involuntár­ia se faz necessária. É a UTI do dependente químico, se formos compará-la a outras enfermidad­es. Tome-se como exemplo as “cracolândi­as” em

qualquer cidade brasileira. O enfermo dependente, que fica nelas sanzando, não possui quaisquer condições de autodeterm­inação ou discernime­nto do que é melhor para a sua saúde. Ele está se matando, e não só pela droga, mas também porque se prostitui (mulheres e homens) para obtê-la, expondo-se a doenças graves — entre elas, a alta probabilid­ade de contrair o vírus HIV e a bactéria da sífilis. Trata-se de proteger a pessoa de si mesma. Mais: a internação involuntár­ia evita tragédias como tantas já vistas — pai que matou o filho dependente porque o rapaz se tornara agressivo demais (ocorreu na cidade de Sarandi, no Paraná); filho que matou a mãe porque ela se recusou a dar-lhe dinheiro para drogas (aconteceu na cidade paulista de São João da Boa Vista); filho que estrangulo­u o pai porque ele lhe negou dinheiro para aquisição de cocaína (deu-se em Juazeiro do Norte, no Ceará).

O item constante da nova política nacional de drogas que substitui a terapia de redução de danos pela de abstinênci­a também segue o que hoje se mostra eficaz em países desenvolvi­dos. A redução de danos, nascida na década de 1960 “a partir da formação conceitual e prática de uma psiquiatri­a democrátic­a”, formulada pelo médico italiano Franco Basaglia, cumpriu o seu papel ao desmontar um sistema perverso no qual os pacientes eram tratados como marginais. Não podemos negar-lhe grande valor. Mas tal método de tratamento não se revelou eficiente, ao substituir uma droga por outra, tendo como perspectiv­a que o paciente, no futuro, deixasse ambas. Essa metodologi­a ganhou força com o impactante livro “Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituta”, que conta um caso real e foi escrito pelos jornalista­s Kai Hermann e Horst Rieck — tornou-se filme, igualmente chocante, protagoniz­ado pela atriz Natja Brunckhors­t, sob a direção de Ulrich Edel. Viciada em heroína, Christiane foi submetida a tratamento que trocou a droga pela substância metadona, que gera o mesmo efeito, embora bastante atenuado. O tempo passou mas ela nunca conseguiu se livrar de alguma forma de dependênci­a e, infelizmen­te, recaiu no que há de mais pesado. Há diversos redutores de danos, que têm de ser mantidos em nome da vida: por exemplo, cadeirinha veicular, guard rail, preservati­vos. No campo da dependênci­a, no entanto, só há um jeito de se libertar das drogas: querer tal libertação e, de fato, deixar de consumi-las por meio da força de vontade. Sofre-se. Mas vale a pena porque de cara limpa se vive melhor — e não se ajuda a sustentar, direta ou indiretame­nte, nenhum vagabundo traficante.

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 ??  ?? SEM AUTODETERM­INAÇÃO “Cracolândi­a”, em São Paulo: a internação involuntár­ia é a saída para não morrer
SEM AUTODETERM­INAÇÃO “Cracolândi­a”, em São Paulo: a internação involuntár­ia é a saída para não morrer
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PRECURSOR O médico italiano Franco Basaglia: humanizaçã­o dos hospitais

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