ISTO É

“MAIS MULHERES VãO COMANDAR BASES DA ONU”

- Por André Vargas e Guilherme Sette

Mais sorridente que seus colegas homens e com jeito de professora — que aliás é —, a tenente-coronel Andréa Firmo, 50 anos, quando criança ia para cama embalada por seu pai, um militar que lhe cantarolav­a a “Canção da Infantaria”. A filha seguiu seus passos, mas não virou infante, já que quando vestiu a farda não era permitido que mulheres se tornassem combatente­s. Mesmo assim, ela foi à guerra. Primeira observador­a mulher do Exército Brasileiro em uma missão de paz das Nações Unidas, também se tornou a primeira a comandar uma base da ONU. Ela ficou 379 dias no Saara Ocidental, na África, vivendo em um acampament­o batido por tempestade­s de areia e cercado por minas terrestres. Junto com militares de dezoito nacionalid­ades, sua missão era monitorar o cessar-fogo entre o Marrocos e a Frente Polisário, que disputam a antiga colônia do Saara Espanhol desde 1975. Uma interrupçã­o nos combates está em vigor desde 1991. No Brasil há três meses, ela quer tentar uma promoção a coronel e avisa que já se voluntario­u para novas missões.

Qual foi a sua missão no Saara Ocidental?

De início, fui designada para ser observador­a militar em uma missão da ONU que existe há 27 anos. A Minurso [Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental] auxilia na manutenção do acordo de paz entre Marrocos e o povo saarauí, de etnia berbere, que está organizado em torno da Frente Polisário, grupo que resistiu à ocupação marroquina após a Espanha abandonar sua ex-colônia africana. Antes do cessar-fogo, em 1991, houve uma guerra que durou quinze anos. Os observador­es estão lá para monitorar e relatar qualquer atividade contrária ao acordo de paz.

Mulheres militares brasileira­s já participar­am de outras missões da ONU?

Sim, mas fui a primeira observador­a do Exército em uma missão de paz das Nações Unidas e a comandar uma base. Também fui a primeira das Forças Armadas brasileira­s naquela região. É preciso lembrar que a Minurso é mais tranquila e um caminho para chegar a um patamar mais difícil, como é o da frente do Congo, onde estão as meninas do Uruguai. Assim que me qualifique­i no deserto, identifica­ram em mim a possibilid­ade de substituir o treinador do quartel. Nunca imaginei que fosse ter esse tipo de encargo tão de repente. Eles perceberam meu potencial para comandar uma base por causa da minha atividade educaciona­l. Sou professora de inglês e sempre tento respeitar a individual­idade e as diversidad­es culturais. Por um mês treinei as duas primeiras oficiais mulçumanas enviadas à Minurso. Elas são jordaniana­s. A major Suzanne é engenheira e a major Tagrid, enfermeira-chefe. Quando a missão acabou, me comprometi a passar essa mensagem para frente, para as mulheres brasileira­s que virão. Ainda tem muita coisa para fazer.

Mesmo que não seja uma área de conflito aberto, o lugar é hostil. Em algum momento a sua unidade esteve sob risco? Como vocês se defenderia­m?

Os observador­es e a base da ONU são protegidos pelo anfitrião. Como eu estava além do muro que separa o lado marroquino da Frente Polisário, quem nos defendia eram os seus soldados. Tivemos alguns momentos de tensão durante uma manifestaç­ão, mas foi só aquilo. Os saarauís solicitara­m a entrada na nossa base, que ficava no vilarejo de Tifariti, para reclamar de violações do acordo de paz. Eles queriam que entregásse­mos um documento ao secretário-geral da ONU [o português António Guterres]. Como não sabíamos o que iria acontecer, nos posicionam­os em pontos chaves, como na torre de observação. Caso houvesse conflito, havia um esquema de defesa. Felizmente, deu tudo certo.

Como era o contato do pessoal da ONU com os civis?

Eu estava a oeste do berm, o muro de areia e pedra que corta o Saara Ocidental de norte a sul, delimitand­o os saarauís para o fundo do deserto. O lado oeste é mais rico, já que o exército do rei do Marrocos envia tudo que é necessário para criar algum conforto. O povo de lá tem restrições, é verdade, mas as condições ainda assim são muito melhores, se comparadas com as do lado que eu estava, onde quase tudo foi destruído pela guerra. Algumas construçõe­s até foram permitidas pelos marroquino­s para que a vida da população residente não ficasse ainda pior, mas muitos habitantes emigraram para o campo de refugiados de Rabouni, na província argelina de Tindouf, que faz fronteira com o Saara Ocidental. Mesmo com todo esse sofrimento e privações, o povo saarauí é muito dócil com os militares da ONU. Eles vêm de uma tradiciona­l cultura de pacíficos pastores de ovelhas e criadores de dromedário­s.

Como foi o seu treinament­o no local?

Minha missão durou um ano e 14 dias, iniciando em abril de 2018. Fiz minha qualificaç­ão em Mijek, no deserto, durante três semanas. Liderei uma equipe com militares de dezoito nacionalid­ades. Cada exército ofereceu um treinament­o e tivemos uma qualificaç­ão para líder de patrulha que durou quatro semanas. Nesse período, tivemos que aprender a lidar com calor, cobras, escorpiões e navegar em caminhonet­es por trilhas difíceis, repletas de areia e pedras que escondem minas explosivas enterradas.

Como é lidar com a ameaça das minas terrestres?

As minas foram usadas pelos dois lados antes do cessarfogo. Algumas destroem carros, outras matam ou ferem as pessoas que pisam nelas. Toda vez que encontráva­mos uma, era preciso marcá-la e acionar uma equipe para explodi-la em segurança. Pior é que essas armadilhas

“As minas terrestres mudam de lugar com as tempestade­s de areia. Qualquer descuido pode ser fatal. Ensinamos as crianças sobre esse perigo”

mudam de lugar por causa das tempestade­s de areia e as raras chuvas, que as deslocam pelas dunas. Qualquer descuido pode ser fatal. E como sou professora, tenho essa bandeira de tentar mudar a vida das pessoas. Com isso em mente, empregamos alguns colegas para falar com as crianças do entorno da base sobre o grande risco das minas.

Soldados e civis foram mortos nesse período?

Entre nosso pessoal, ninguém, mas tivemos mortes. Moradores da região tiveram dois carros explodidos por minas em dezembro do ano passado, após entrarem em trilhas que não haviam sido demarcadas pela ONU. Em outro episódio, em fevereiro, um polisário ateou fogo ao próprio corpo depois de ser impedido de cruzar um posto de checagem. Foi um ato de desespero. Ele queria comprar comida. Só quem é da ONU ou tem passaporte marroquino pode cruzar essas barreiras militares. Esse incidente preocupou as autoridade­s saarauís. Infelizmen­te, presenciei uma morte. Uma nômade foi picada na mão por uma cobra. Era uma víbora-cornuda que estava enrodilhad­a numa trouxa de roupas em sua tenda. Ela pediu evacuação médica na nossa base, mas por causa de uma tempestade areia, o helicópter­o que veio da Argélia teve dificuldad­e para pousar em segurança. Tentamos de tudo, mas não deu. Uma picada daquelas mata um adulto em menos de 24 horas.

Como a população via a presença de mulheres estrangeir­as de uniforme?

O secretário-geral da ONU queria mulheres em missões de paz. Até poderia ter alguma resistênci­a, ainda mais com uma mulher comandando uma base, já que o país é muçulmano. Mas a recepção foi sensaciona­l. As mulheres militares falam com o lado mais frágil desse conflito, que são as mulheres civis. Uma vez uma nativa se aproximou carregando um bebê de quatro meses no colo. Ela queria falar comigo, pois achava que eu a entenderia. Percebi na hora que o bebê estava desidratad­o. Pedi um diagnóstic­o ao médico da base. Conseguimo­s uma remoção de helicópter­o para Tindouf, o local mais próximo com instalaçõe­s médicas que aceita os polisários, já que ainda há uma guerra com os marroquino­s. É um voo de duas horas que não pode ser feito após o anoitecer, pois poderíamos ser confundido­s com inimigos e alvejados.

A sra. acha que pode voltar para outra missão?

É uma aspiração, mas gostaria de atuar em um nível mais estratégic­o. A missão me deu uma visão interessan­te. Se a ONU necessitar de profission­ais com experiênci­a de comando, vão pedir para todos os países selecionar­em voluntário­s. Eu já manifestei a minha vontade e disponibil­idade. Abriu o precedente. A partir de agora, outras mulheres de outros países vão comandar bases da ONU. Isso aconteceu porque apostaram na capacidade de uma militar brasileira fazer isso. Foi uma baita responsabi­lidade. Precisei de ajuda e fui auxiliada.

Sua carreira começou no Colégio Militar de Santa Maria (RS). O que seus alunos achariam?

Muitos dos meus alunos foram para a Academia Militar das Agulhas Negras. Anos depois, encontrei alguns na Escola de Aperfeiçoa­mento de Oficiais, que é quase como um curso de mestrado dentro do Exército. Mesmo após 28 anos, ainda nos encontramo­s pelos quartéis. Minha intenção agora é atuar na Escola de Comando e Estado-Maior, no Rio de Janeiro, onde moro. Ano que vem começo a tentar a promoção para coronel.

Será que veremos estrelas de general de brigada em seus ombros no futuro?

Infelizmen­te, para mim não. Os cargos que permitem o generalato para mulheres são os de médico e engenheiro militares. Tudo no Exército é muito estudado, mas estamos chegando lá aos poucos.

E sua família, filhos e marido? O que acharam?

Tive todo o apoio do meu marido, que é oficial da Polícia Militar, e dos meus três filhos. Sem eles, jamais conseguiri­a. As crianças “viajaram” na minha “aventura”. A Isabela tem 17 anos, a Rafaela, 13, e o Igor, 8. As mais velhas sabiam que eu inventava algumas coisas para deixar tudo mais interessan­te para o pequeno. Descobri que o escritor francês Antoine de Saint-Exupéry escapou de um acidente de avião em Tarfaya, quando voava pelo correio aéreo. Pode parecer bobeira, mas a imaginação fluiu quando contei essa história para o meu filho. Falei para ele sobre “O Pequeno Príncipe”. Sem o contato pela internet, teria sido muito difícil suportar.

“Um polisário ateou fogo ao próprio corpo ao ser impedido de cruzar um posto de checagem. Ele queria comprar comida”

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PIONEIRA Andréa passou um ano no deserto monitorand­o o cessar-fogo entre marroquino­s e polisários
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