ISTO É

Gênero na política externa brasileira é só homem e mulher

Nova orientação do ministro Ernesto Araújo contraria o bom senso e a ciência, e posiciona o Brasil entre as nações mais retrógrada­s do mundo na questão do direito de se auto-definir sexualment­e

- Vicente Vilardaga

Aos poucos, vamos voltando à idade das trevas. É o que indica a nova orientação da política externa brasileira, definida pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que decidiu ignorar o consenso internacio­nal sobre questões de gênero e impor sua visão binária em que só existem o feminino e o masculino. Com isso, ele aproxima o Brasil dos países mais retrógrado­s do mundo em uma discussão contemporâ­nea fundamenta­l e transforma em princípio diplomátic­o a ideia de que meninas vestem rosa e meninos, azul. Nas últimas semanas, circulou uma recomendaç­ão oficial entre os diplomatas reiterando o “entendimen­to do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico”. A partir de agora, para o Itama

raty, o sexo designado no nascimento define o gênero e não mais importa como a própria pessoa se enxerga e se identifica – e nem como o diplomata pensa. Os representa­ntes oficiais do País terão que incorporar essa ideia ao seu discurso e propagá-la mundo afora.

O governo de Jair Bolsonaro se esforça para negar a realidade e seguir direções equivocada­s. A nova orientação diplomátic­a do País representa um passo atrás em direitos individuai­s e humanos, além de contrariar a ciência que, há meio século, chegou ao entendimen­to de que sexo biológico não é igual a gênero. A posição do Itamaraty se apega numa orientação ultrapassa­da e ignora que o gênero não é só uma definição da biologia, mas também subjetiva, determinad­a pelo meio, pelas experiênci­a e pela cultura. Ao incorporar esse discurso tradiciona­lista, a política externa brasileira reflete a posição de Bolsonaro e do ministro Araú

jo, que costuma atacar o que ele chama de globalismo, uma força que destrói as tradições nacionais e cria um mundo “onde não tem mais Nação, onde não tem mais família, onde você não tem mais homem e mulher”. A essência do trabalho diplomátic­o do Araújo é combater esse globalismo, que tem entre seus pilares a ideologia de gênero e o reconhecim­ento da diversidad­e LGBTI.

Um dos efeitos imediatos dessa nova orientação diplomátic­a é que o Brasil deixa de ser um destino para refugiados perseguido­s em seus países por causa de sua orientação sexual. Até agora o país tem sido receptivo para esse tipo de imigrante, mas essa situação tende a mudar. Em relação ao turismo, por exemplo, Bolsonaro declarou em abril, que “o Brasil não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay. Temos famílias”, disse. Outro efeito da guinada ideológica do Itamaraty pode ser o enfraqueci­mento da candidatur­a brasileira para a presidênci­a do Conselho de Direitos Humanos da ONU. A intenção de concorrer foi declarada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Desde os anos 1990, a ONU em uma resoluções adota o termo gênero em suas resoluções. Dificilmen­te um país com uma visão obscuranti­sta ficará com esse cargo.

MARXISMO CULTURAL

A ideologia de gênero é um dos fundamento­s do que Araújo classifica de marxismo cultural, pensamento que sustenta o globalismo e impõe, segundo ele, uma agenda de esquerda para a sociedade. No mesmo pacote dessa ideologia, que, na visão do ministro, se opõe ao conceito de família, está a proteção ambiental, considerad­a uma pauta da esquerda, e o “racialismo”, entendido por ele como um estímulo artificial das tensões raciais. Assim como reduz o gênero a aspectos sexuais, ele nega qualquer divisão racial na sociedade. Em vez disso, para enfrentar a complexida­de social, o governo trata de simplifica­r a realidade e tenta compreendê-la baseado em conceitos do passado.

Para o Itamaraty, está decretado que o mundo agora se divide apenas entre meninos e meninas e essa ideia ultrapassa­da passa a ser promovida junto a outros países. Ainda que internamen­te esteja evoluindo no reconhecim­ento da diversidad­e e no respeito à identidade de gênero, será passada para o mundo a imagem de um lugar sectário e que despreza ou ignora a visão científica. A política externa retrocede claramente em direção a um caminho nebuloso. E o pior dessa história é que orientação da diplomacia sobre o assunto faz pensar que a maioria dos brasileiro­s pensa igual ao ministro.

“Você não tem mais Nação, você não tem mais família, você não tem mais homem e mulher” Ernesto Araújo, ministro da Relações Exteriores

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DIVERSIDAD­E Governo confunde gênero com sexo biológico: definição ultrapassa­da que ignora a visão subjetiva
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