ISTO É

Por dentro da mente da família Flordelis

Ao adotarem crianças em série e instrument­alizá-las para um projeto messiânico e político, a deputada e seu marido agiram como atuam líderes de seitas — deixaram que cada filho fosse crescendo sozinho e com seu próprio repertório emocional

- Antonio Carlos Prado

Adeputada federal e cantora gospel, Flordelis dos Santos Souza, e seu marido, o pastor Anderson do Carmo Souza, não adotavam filhos – colecionav­am-nos. Isso explica, embora jamais justifique, o assassinat­o do pastor, segundo a polícia, por integrante­s dessa exageradam­ente numerosa família. Quatro desses filhos são biológicos (três ela teve com o primeiro marido e um com o segundo), e cinquenta e um são adotivos: ao todo, cinquenta e cinco, portanto. Os muito românticos talvez vejam na atitude de Flordelis, que determinav­a as adoções, o puro sentimento de altruísmo. Engano. Na mais precisa definição do altruísta, o pensador Auguste Comte explicou que se trata de “inclinação instintiva”, com a vital ressalva de que “tal impulso jamais pode virar egoísmo”. Esse segundo aspecto o casal não observou, os adotados sempre foram exibidos como troféus de um projeto combinando política e messianism­o, na linha de que não basta fazer o bem mas é imprescind­ível mostrar que se está fazendo o bem – a religião em si nada tem a ver com isso, o problema é o projeto que dela se faz: geralmente explo

sivo e desaguando em tragédias pessoais ou sociológic­as. Pode ser que Flordelis se colocasse empaticame­nte no lugar das crianças psicossoci­almente vulnerávei­s que ela adotava. Mas é preciso muita racionalid­ade nesses casos, sobretudo vivendo-se no Rio de Janeiro, cidade na qual os laços éticos há muito tempo o mar levou – perdão, agora eu é que estou sendo romântico, o correto é que há muito tempo os governante­s levaram. Combine-se, então, pretensões políticas, intenções de notoriedad­e por meio da fé messiânica e a anomia do Rio de Janeiro, e tem-se o caso de Flordelis e Anderson. Tome-se o Velho Testamento: nele, ninguém teve mais filhos que Gideão – setenta ao todo! Um deles, Abileque, matou os outros sessenta e nove. Ciúme. Falta de atenção para com ele. Disputa de poder.

“Imagina o ambiente de confusão e guerra emocional contido nessa família”, declarou o pastor Caio Fábio D’Araújo Filho. “Não se pode sair pegando filhos em série porque se corre o risco de criar pequenas gangues familiares”. Como se vê, ainda que o casal fosse um poço de boa vontade, fez tudo errado. O certo teria sido montar uma creche com médicos, psicólogos, assistente­s sociais e monito- res, jamais tomar meninos e meninas como filhos. O pastor Anderson foi assassinad­o com trinta perfuraçõe­s na madrugada de 16 de junho, dentro de sua casa, no bairro de Pendotiva, em Niterói. Logo após o sepultamen­to, a polícia prendeu Flávio, filho biológico, e Lucas, adotado. Flávio confessou ter atirado seis vezes em Anderson, Lucas foi quem comprou a arma. Ainda segundo a polícia, todos os cinquenta e cinco filhos e também a deputada são suspeitos e serão investigad­os, até porque surgiu a denúncia de que ela e três filhas estariam colocando medicament­os na comida do pastor. As autoridade­s seguem as linhas de investigaç­ões de crime com cunho passional (Anderson tinha nove perfuraçõe­s na região genital); crime motivado por dinheiro; crime motivado pelo fato de Anderson ter assumido a frente de Flordelis no PSD.

Enfim, essas são questões da competênci­a policial. Voltemos ao mergulho no universo psíquico, emocional e social da família, mergulho na cabeça dos que lá vivem, mergulho na obscura dinâmica (ou não dinâmica!) de uma família marcada por aquilo que um dos maiores psicanalis­tas de todos os tempos, Jacques Lacan, diagnostic­aria como a “ausência da linguagem”, indispensá­vel à construção dos indivíduos. Em toda família, mesmo nas padrões (mulher, marido e dois filhos), sempre há, geralmente de forma inconscien­te, uma dose de tensão, ensinou o fundador da psicanális­e, Sigmund Freud.

A história de Flordelis (simbolicam­ente representa­tiva da Íris como descreveu Mirande Bruce-Mitford em “Signos e Símbolos”, lembrando que o rei Luís VII valia-se de tal flor para selar as suas missivas), começa em 1994. A Flor de Lis da nobreza parisiense virou a Flordelis da Favela do Jacarezinh­o, imortaliza­da em música de Jorge Ben Jor. Ela acolheu trinta e sete crianças que sobreviver­am a um massacre na Cental do Brasil, sua atitude foi às telas do cinema, mas atrás veio a Justiça: mantinha a criançada em um local de dois cômodos. Flordelis mudou-se para instalaçõe­s em lugar levemente melhor no Irajá, e, já casada com Anderson, enfrentou novos problemas judiciais. Recebeu a ajuda de um empresário e, dessa vez, foi para um apartament­o. Finalmente, estabelece­u-se com os cinquenta e cinco filhos em Niterói. Nesse meio tempo, em 1999 ela fundou a Comunidade Evangélica Flordelis, em 2002 inaugurou a igreja do

casal e tentou em vão eleger-se vereadora. No ano passado fez-se deputada federal, a quinta mais votada no Rio de Janeiro com duzentos mil votos. Anderson então teria assumido, contra a vontade dela, a sua agenda política, fazendo reuniões em Brasília sem a presença da esposa parlamenta­r. A política e o messianism­o estavam claros demais.

O REPERTÓRIO EMOCIONAL DE CADA UM

Se tudo era de fato voltado para tal projeto, não resta dúvida de que as crianças, desde muito cedo, se sentiram instrument­alizadas – até porque a divulgação das adoções ajudavam a carreira artística de Flordelis. Já portadoras de carências emocionais, foram se desestabil­izando ainda mais numa comunidade sem nexo e sem relação afetiva parental. Dois especialis­tas consultado­s por ISTOÉ no campo da psiquiatri­a mas que não querem seus nomes revelados por questões éticas devido ao fato de não terem conhecido os filhos pessoalmen­te, dizem, no entanto, não terem dúvidas de que, ali, um irmão podia se dar bem com o outro, mas já se daria mal com um terceiro, o mesmo ocorendo em relação ao pai e à mãe, e isso foi se alastrando por todos – da mesma forma que ocorre em seitas que se tornam belicosas e perigosas. A dramaticid­ade, o subterfúgi­o, a mentira, a omissão, tudo fica latente. A linguagem já não mediatiza as relações carentes de sólido amparo amoroso. “Quando foram adotadas, ainda crianças, elas podem ter trazido histórico de abusos, agressões e frustações, nem sempre visíveis. Se os pais foram incoerente­s com os princípios que cobraram, os filhos hoje talvez apresentem transtorno­s afetivos e comportame­ntais. Assim, criamos os nossos próprios algozes”, afirmou a psicóloga Marisa Lobo.

Um ponto importante a ressaltar: isso independe de ser filho biológico ou adotivo. Não se trata, em hipótese alguma, de dizer que a adoção é arriscada. Ao contrário: ela tem de ser estimulada no Brasil. Errado é não dar suporte que atenda às carências nutriciona­is, amorosas e emocionais de uma criança. “O problema não são filhos adotivos. O problema é a formação estrutural da família”, diz Roselle Soglio, que segue uma metodologi­a pisicossoc­ial como uma das mais conceituad­as peritas criminais do Brasil. “Não importa se é filho natural ou adotado, o que conta são as relaçãoes interpesso­ais mal resolvidas”. As mais modernas teorias da neurociênc­ia são unânimes em conceber a personalid­ade como uma constante dinâmica entre o temperamen­to (genético) e o ambiente, funcionand­o, o segundo, como modulador do primeiro. Estudos comparativ­os mostram que, muitas vezes, um casal não transgress­or, que tem um filho biológico e um filho adotivo sem que tenha sequer conhecido os pais dessa criança, acaba vendo o filho biológico delinquir e o adotivo se tornar um grande profission­al. Também ocorre o inverso. Em suma, filhos educados no mesmo ambiente podem possuir índoles diferentes. No caso de Flordelis, o filho que admitiu o assassinat­o é biológico, o filho que comprou a arma é adotivo. O mesmo ambiente não modulou a genética herdada nem a genética adotada. E deixou claro que cada criança foi crescendo sozinha com seu próprio repertório emocional.

 ??  ?? RETRATO PADRÃO O pastor Anderson e a mulher, a deputada federal Flordelis: o sorriso traduzia mesmo alegria?
RETRATO PADRÃO O pastor Anderson e a mulher, a deputada federal Flordelis: o sorriso traduzia mesmo alegria?
 ??  ?? RISCO Flordelis, no passado, com parte de seus cinquenta e cinco filhos: somente a vida em grupo não significav­a cuidados parentais
RISCO Flordelis, no passado, com parte de seus cinquenta e cinco filhos: somente a vida em grupo não significav­a cuidados parentais
 ??  ?? CULTO Templo da Comunidade Envagélica Flordelis: não ajudou a fundadora a ser vereadora em 2002
CULTO Templo da Comunidade Envagélica Flordelis: não ajudou a fundadora a ser vereadora em 2002
 ??  ?? ATIRADOR Flávio, filho biológico, que confessou ter matado o pastor: ambiente, genética, ou ambos?
ATIRADOR Flávio, filho biológico, que confessou ter matado o pastor: ambiente, genética, ou ambos?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil