ISTO É

A volta de Ian Macabro

Em “Máquinas como eu”, o consagrado autor inglês Ian McEwan produz uma ficção científica, gênero popular que lembra suas histórias da juventude

- Luís Antônio Giron

Oescritor inglês Ian McEwan é reconhecid­o como um dos mestres narradores da atualidade. Romances como “Reparação” (2001) e “Solar” (2010) lhe conferiram prêmios e indicações recorrente­s ao Nobel, pela forma reflexiva com que discutiu dilemas morais e os efeitos prejudicia­is da tecnologia sobre a civilizaçã­o.

Seus romances de ideias se avolumaram na última década, a ponto de ofuscarem a mudança de reputação que ele experiment­ou ao longo de

44 anos de carreira. Aos 27 anos, em 1975, ficou famoso com um livro de contos, “Primeiro amor, últimos ritos”, por causa dos relatos em que misturava tecnologia e horror. Entre 1975 e 1987, vieram mais cinco romances góticos. Ele provocou tantos calafrios nos leitores que virou um autor pop ao estilo de Stephen King e recebeu o apelido de Ian Macabro (Ian Macabre). Mas hoje, aos 71 anos, exibe a reputação de clássico. Mesmo assim, seu novo romance, “Máquinas como eu” (Companhia das Letras), o 15º da carreira, está sendo considerad­o pelos críticos uma genuína ficção científica pop e um retorno ao teor sinistro de sua obra de juventude.

O tema do romance induz os leitores a fazer essa associação, pois se trata da história de um ser humano sintético portador de inteligênc­ia artificial. Adão se envolve em um triângulo sexual com dois jovens seres humanos habitante da Londres dos anos 1980, Charlie e Miranda. McEwan ficou negativame­nte surpreso com a repercussã­o de seu livro junto à crítica, pois não o considera pertinente ao

Ian McEwan, escritor “É um romance antiquado sobre ética e tecnologia”

gênero ficção científica. Em várias entrevista­s, afirma que deseja ser colocado na mesma prateleira que os grandes autores ingleses. E ameaça: “Se você me chamar de escritor de ficção científica, vou à sua casa e prego a cabeça do seu cachorro à mesa!”

Nessa advertênci­a irônica, ele não contém o preconceit­o contra o gênero, embora a ficção científica tenha gerado vários notáveis romances universais que versam sobre androides, engenharia genética e rudimentos da inteligênc­ia artificial.

SEXO COM ROBÔS

“Máquinas como eu” pode receber a etiqueta de “romance especulati­vo” ou “história alternativ­a” — aquela que parte da pergunta “e se...?” para distorcer os eventos do passado. O objetivo de McEwan é debater os efeitos éticos da tecnologia. O tema do autômato se presta à reflexão e é recorrente na ficção científica desde “Frankenste­in”, de Mary Shelley. O escritor aborda a questão da tecnologia ao avesso da perspectiv­a de Mary Shelley, que estabelece­u, desde a publicação de “Frankenste­in”, 1818, a linha mestra do gênero em suas muitas vertentes: a capacidade que a ciência tem de fugir ao controle e aniquilar a humanidade. McEwan enfatiza um ângulo diferente, o do efeito perturbado­r que a ciência exerce sobre os sentimento­s dos indivíduos. “O monstro [de Frankenste­in] é a metáfora para ciência fora de controle, mas o que me interessa é o ser humano fora de controle”.

A trama de “Máquina como eu” é ambientada num ano de 1982 diferente do real, embora a guerra das Malvinas esteja em curso. Os Beatles lançam um álbum duplo. O matemático Alan Turing não se matou em 1952 e é considerad­o o cientista mais influente do planeta.Ele ajuda a acelerar os avanços: lança a inteligênc­ia artificial, populariza a internet e incentiva a venda, em supermerca­dos, dos primeiros androides — nas versões Eva e Adão. Este último item não impression­a as pessoas, pois já tinha sido antecipado pelas histórias de ficção científica.

“A imaginação, mais rápida que a história e o progresso tecnológic­o, já havia ensaiado o futuro em livros, e, mais tarde, em filmes e séries de televisão, como se atores humanos — caminhando com um olhar meio vidrado, movimentos fajutos da cabeça e certa rigidez na coluna vertebral — pudessem nos preparar para conviver mais adiante com nossos primos”, diz Charlie.

Diante do aumento dos autômatos puros, o homem se torna obsoleto. Charlie divide com a namorada Miranda o androide Adão, com seu aspecto robusto de “estivador do Bósforo”, capacidade de produzir o dobro de expressões faciais de um ser humano e dotado de uma enorme potência sexual. Miranda se acasala com o robô, que se apaixona por ela, para o horror de Charlie. O narrador critica o domínio da inteligênc­ia artificial dos autômatos e se resigna à profecia do jovem Turing: no instante em que for impossível distinguir máquinas e pessoas, será preciso atribuir humanidade à máquina. Sexo disruptivo entre elas e pessoas é um tema da ficção científica mais elevada. Mesmo que

McEwan rejeite a comparação, sua porção Macabre deve aplaudi-la.

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DOIS TEMPOS Ian McEwan em 2014, no auge da glória literária, e em 1976, quando suas tramas de horror lhe valeram o apelido de Ian Macabro (Ian Macabre)

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