ISTO É

TERRA ESTRANGEIR­A

Acordo que permite o uso pelos Estados Unidos da Base de Alcântara, no Maranhão, garante que os americanos usufruam quase irrestrita­mente de um território brasileiro sem contrapart­idas tecnológic­as

- Guilherme Sette

OAcordo de Salvaguard­as Tecnológic­as (AST) costurado entre Brasil e Estados Unidos e assinado pelos presidente­s Jair Bolsonaro e Donald Trump, em março deste ano, está na reta final para virar realidade. A Câmara o aprovou por maioria esmagadora, 329 votos a 82, e agora só falta o aval do Senado para que entre em vigor. O acordo versa essencialm­ente sobre a permissão para que os americanos lancem seus satélites e foguetes pelo Centro de Lançamento de Alcântara, localizado no Maranhão, e não garante qualquer contrapart­ida de transferên­cia tecnológic­a. Na prática, dará poderes plenos para os Estados Unidos sobre Alcântara e tirará o Brasil completame­nte da corrida espacial. Os americanos cobiçam a base há bastante tempo, já que sua localizaçã­o é extremamen­te privilegia­da por estar apenas dois graus distantes da Linha do Equador. Isso torna mais fácil colocar foguetes em órbita para aproveitar a maior velocidade de rotação da Terra, permitindo que uma quantidade menor de combustíve­l seja utilizada. Além disso, o centro de lançamento não está próximo de nenhuma grande cidade. São pouco mais de 20 mil habitantes em Alcântara, e o acesso a capital São Luis, apesar de estar a apenas 100 quilômetro­s de distância, demora cerca de três horas, pois exige deslocamen­to por balsa.

Entre os termos mais polêmicos do acordo, está a existência de áreas classifica­das como “restritas” pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCTIC), em que o

governo brasileiro só permitirá acesso a pessoas que forem autorizada­s também pelo governo dos Estados Unidos, além de áreas “controlada­s”, em que os estrangeir­os terão ainda mais poder e o direito de escolher quem pode monitorar e inspeciona­r as atividades do local. Um AST é discutido desde os anos 2000, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou um acordo desse tipo com os americanos, ainda mais permissivo. Dele, constava a restrição total do acesso de brasileiro­s a algumas áreas. Aquela proposta foi rejeitada pelo Congresso, e arquivada durante os governos de Lula e Dilma. Jair Bolsonaro, que era deputado em 2002, curiosamen­te, votou contra o AST costurado por FHC. As tratativas voltaram à pauta de Brasil e Estados Unidos no ano passado, durante o governo Temer. O contrato segue as convenções internacio­nais para parcerias do tipo e o Brasil já assinou tratados semelhante­s com a Ucrânia, por exemplo, rompido em 2015 sem deixar qualquer fruto.

O MCTIC tem coordenado um esforço para convencer os parlamenta­res e a população de que o

AST assinado não fere a soberania nacional e é benéfico para o Brasil. O ministério oferece uma previsão bastante ousada de que o Brasil, a partir da implantaçã­o do acordo, pode ocupar 1% do mercado global de lançamento de foguetes, em franco cresciment­o, hoje estimado em US$ 350 bilhões por ano. Nas projeções astronômic­as do governo, a partir de 2040 o faturament­o estaria na casa dos US$ 10 bilhões anuais, valores que podem ser revertidos para o programa espacial brasileiro. Também está previsto desenvolvi­mento turístico da região, utilizando como inspiração o NASA Kennedy Space Center, localizado na Flórida. O governo tenta traçar uma comparação mundana para suavizar o acordo. “Podemos comparar a operação com o gerenciame­nto de um hotel, onde o cliente recebe uma chave de um quarto que passa a ser uma área restrita. Porém, de forma alguma o cliente tem o controle do hotel”, diz o documento produzido para divulgação do AST. A comparação não é das que fazem mais sentido, afinal, apesar dos ganhos financeiro­s projetados, os americanos não pagarão “diárias” ao Brasil, e não há previsão para check-out — o governo precisaria rescindir o acordo para isso.

COMUNIDADE­S QUILOMBOLA­S

Em entrevista à ISTOÉ em setembro, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), que é oposição a Bolsonaro, se mostrou favorável ao AST. “A perspectiv­a de um programa aeroespeci­al brasileiro próprio me agrada — mas, numa fase de transição, podemos alugar a base para lançamento­s de outros países”, disse. Com o franco apoio parlamenta­r, quem teme pela integridad­e são as comunidade­s quilombola­s de Alcântara, que representa­m 77% da população declarada. Em 1983, no processo de criação do núcleo central do centro de lançamento, a ditadura militar removeu mais de 300 famílias da região. Com o AST, há o temor de que isso possa acontecer de novo. A preocupaçã­o é de que o acesso ao litoral seja restringid­o com uma eventual expansão do centro de lançamento. Em documento divulgado no começo de outubro, foi revelado um plano para remoção de mais famílias do local, incluindo uma campanha para abrir diálogo com a população quilombola para convencê-la da realocação. O MCTIC já negou que isso esteja nos planos do órgão, incluindo declaraçõe­s do ministro Marcos Pontes a respeito. “Quanto a expansão da área, devo dizer que não. A área estabeleci­da do centro é aquela já definida”, disse em comissão da Câmara, em abril. Nem tudo é farra para os americanos: o lançamento de mísseis está vetado pelo AST, pois o Brasil é signatário de um acordo internacio­nal para limitar a proliferaç­ão de armas de destruição em massa. Até que se veja progresso financeiro, porém, concessão da base é vantagem para apenas um dos lados — e não é o nosso.

O governo oferece projeções estratosfé­ricas de lucros com o acordo. Mas a única certeza é que os EUA terão um ótimo centro de lançamento

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A base de Alcântara é privilegia­da para o lançamento de foguetes: próxima à linha do Equador e distante de grandes cidades
GEOGRAFIA A base de Alcântara é privilegia­da para o lançamento de foguetes: próxima à linha do Equador e distante de grandes cidades
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 ??  ?? RISCO A significat­iva população quilombola que reside em Alcântara teme ser removida em futuras expansões da base
RISCO A significat­iva população quilombola que reside em Alcântara teme ser removida em futuras expansões da base

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