ISTO É

ARGENTINA

- Antonio Carlos Prado

Até onde vai a briga entre Bolsonaro e o presidente eleito, Alberto Fernández

Mais uma vez, Bolsonaro dá mostra de sua grosseria em política externa e troca farpas com o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández. Ambos, no entanto, devem recuar. O que está em jogo é o futuro do Mercosul e a recuperaçã­o da economia nos dois países

Aas pedras do Muro das Lamentaçõe­s sabem que o presidente Jair Bolsonaro gosta de uma encrenca no campo das relações internacio­nais. Mal ganhara a eleição, criou tremendo mal-estar no Oriente Médio porque queria transferir de Tel-Aviv para Jerusalém a embaixada brasileira em Israel. Na questão climática, trombou com a Alemanha. Quando a Amazônia ardia em chamas, brigou com a França e desandou na deseducaçã­o ao endossar ofensas pessoais à primeira-dama do país, Brigitte Macron. Dessa vez, o alvo de Bolsonaro é bem mais próximo e, se a coisa seguir nessa cadência caduca, o Brasil pagará caro na área econômica no que diz respeito ao Mercosul e à balança comercial. Trata-se da Argentina e de seu novo presidente, o peronista de centro-esquerda Alberto Fernández (toma posse no dia 10 de dezembro). No domingo passado, tendo a ex-presidente e senadora Cristina Kirchner como vice e puxadora de votos em sua chapa, ele venceu as eleições em primeiro turno com 48,1% da preferênci­a do eleitorado, derrotando Mauricio Macri, que pretendia um segundo mandato consecutiv­o, mas obteve somente 40,4%.

Nas comemoraçõ­es, é bom que se diga, Fernández imiscuiu-se na vida política e jurídica do Brasil ao fazer com os dedos polegar e indicador o L de “Lula Livre”, caracterís­tico daqueles que defendem a liberdade do ex-presidente, preso por corrupção na Superinten­dência da Polícia Federal em Curitiba — Fernández, inclusive, já o visitara na cadeia em meados desse ano. Ele avançou ainda mais o sinal ao dizer que a condenação de Lula é injusta, análise que desprestig­ia todo o Poder Judiciário brasileiro. A questão ganhou maiores proporções, no entanto, porque Bolsonaro entrou em campo. Se, quando não há problemas, Bolsonaro os cria, dá para imaginar o que ocorre quando de fato eles existem. O problema é que Bolsonaro é o problema. Em vez de portar-se à altura de um estadista, ele decidiu dar o troco de uma forma que fere os mais elementare­s princípios da diplomacia e democracia. Deixasse Fernández gesticulan­do e falando sozinho, e o vexame seria somente dele. Mas não: lá do Oriente Médio, onde se encontrava tratando de assuntos comerciais e estreitand­o relações de reciprocid­ade, Bolsonaro deixou claro que não iria telefonar a Fernández para cumpriment­á-lo pela vitória. Esse foi o erro diplomátic­o, agiu feito criança birrenta. Quanto ao erro democrátic­o, consistiu no fato de ele afirmar autoritari­amente que os argentinos votaram errado, como se tivesse o direito de dizer o que é certo ou incorreto na casa do vizinho, quando a sua própria casa também está economicam­ente em ruínas.

No seu mais puro estilo vaivém com as palavras, Jair Bolsonaro entregou-se a delírios: cantou de galo ameaçando retirar o Brasil do Mercosul, e voltou atrás; disse então que pediria a expulsão da Argentina com a ajuda do Paraguai, e também voltou atrás. É certo que as incompatib­ilidades políticas e ideológica­s estão colocadas entre os dois presidente­s e nada impede que tais escaramuça­s virem guerra. Esperava-se que o ministro das Relação Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, cumprisse com a sua obrigação de ofício e, na primeira hora, desanuvias­se os ânimos. Imagina?! Catedrátic­o em diplomacia, assim que Bolsonaro falou além da boca ao declarar que “o povo (argentino) botou no poder quem colocou a Argentina no buraco lá atrás”, o ministro Araújo arrematou comparando as comemoraçõ­es da vitória de Fernández a festejos das “forças do mal”. Essas declaraçõe­s foram duramente criticadas por parlamenta­res das comissões de Relações Exteriores da Câmara e do Senado. O desentendi­mento entre Bolsonaro e Fernández, na verdade, não começou agora, já vem desde agosto quando a sua chapa venceu as eleições prévias. Bolsonaro, à epoca, dissera que com Cristina e Fernández a “esquerdalh­ada” voltaria ao poder. Fernández retrucou, rotulando Bolsonaro como “violento, racista e misógeno”. Desde então a tensão está no ar.

O presidente brasileiro e o presidente eleito argentino sabem, no entanto, que a política e a economia adequam-se melhor às avenidas do pragmatism­o do que às ruelas das ideologias. Olhando-se para os interesses do Brasil, é necessária a manuté

Cristina à esquerda, Bolsonaro à direita, eles têm na alma o mesmo desejo: mandar autoritari­amente feito déspota não esclarecid­o

tenção de um racional relacionam­ento com a Argentina, terceiro país em nosso rol de exportaçõe­s, atrás somente de China e EUA. Ainda que tenha caído o índice da exportação em relação ao Mercosul, o saldo global da balança comercial brasileira em 2019 ainda se mantém positivo, apontando um superávit de US$ 33,6 bilhões entre janeiro e setembro. Se considerar­mos a Argentina isoladamen­te, o valor em exportação brasileira diminuiu, e também até setembro os negócios ficaram na casa dos US$ 7,4 bilhões, contra os US$ 12,2 bilhões no mesmo período de 2018. Mas, ainda assim, é saudável para a nossa economia. Em nome desse pragmatism­o, soprado no ouvido de Bolsonaro por alguém de bom senso, ele recuou: “não quero fazer mau juízo, espero que esteja equivocado. Vamos sentir como os empresário­s e investidor­es vão reagir”. Em ciclos que se repetem há mais de meio século, um empedernid­o peronista retorna à Casa Rosada, sede do governo argentino. E a plataforma e ideário que o colocaram lá são o kirchneris­mo representa­do por Cristina – em palavras claras, peronismo e kirchneris­mo são a mesmíssima coisa: demagogia populista e sindicalis­ta. O advogado Alberto Fernándes, que já tabalhou diretament­e com Néstor Kirchner quando ele foi presidente e também com sua mulher, Cristina, quando estava ela na chefia da nação, é tido como um político moderado, o que contribui para acalmar as animosidad­es. Torna-se inevitável, porém, uma pergunta. Quem de fato governará a Argentina?

Não há analista político que não tenha jogado nos últimos dias todas as suas fichas em Cristina, e para isso basta um único dado: 47% dos 48,1% de eleitores que levaram a dupla à Casa Rosada relataram em pesquisas que o fizeram por “acreditar em Cristina”, apesar de sua gestão desastrada no passado, dos onze processos a que responde por suspeita de corrupção e da suposta participaç­ão no assassinat­o do procurador Alberto Nisman (na terça-feira 29 a Justiça confirmou mais uma ordem de prisão preventiva, que não será cumprida porque ela tem imunidade parlamenta­r). Fernández já rompeu com os Kirchner há alguns anos, mas dificilmen­te o faria agora.

O POVO GRITAVA: “ELA VOLTOU”

Ele tem claro que, após o fiasco da política liberal de Mauricio Macri (inflação na casa dos 60%), foi ela quem reacendeu, por meio da estratégia populista, a esperança popular no retorno do peronismo. E, nesse ponto, é que o temor prossegue tanto em relação ao Mercosul, separadame­nte, quanto em relação à união do bloco com o mercado europeu. Cristina imporá, sem dúvida, um regime protecioni­sta; a gestão Bolsonaro defende a abertura de mercado e redução das tarifas. Fernández poderá ser o boneco movido pelos cordéis que estão nas mãos de Cristina, e ela se torna mais explosiva tendo contra si alguém igualmente populista e autoritari­amente explosivo como é Bolsonaro. Uma à esquerda, outro à direita, ambos têm na alma o mesmo desejo: mandar feito déspota não esclarecid­o. A diferença é que a popularida­de do presidente brasileiro anda despencand­o enquanto a de Cristina sobe. Eis um exemplo marcante. Conforme o ritmo da apuração de votos ia dando a vitória a Fernández, nas ruas do país o povo não gritava o seu nome. Gritava com alegria, isso sim, duas únicas palavras: “ela voltou!”.

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84# FALSO MTat alit lan ut wis nit, quamet alit, quipit, veliquis adigna aliquat. Ut LONGE DO BRASIL Em Riade, o presidente soube do resultado das urnas na Argentina: contraried­ade
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REALIDADE A população apostou, mais uma vez, no populismo para combater a miséria: desemprego e inflação na casa dos 60%

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