ISTO É

VIVANDEIRA­S DO BOLSONARIS­MO

- Carlos José Marques, diretor editorial

Foi ainda nos idos de 60, às portas do regime militar que, inclemente, vergou o País a um dos mais sombrios períodos de ditadura, com cassação de direitos fundamenta­is e perseguiçã­o a opositores, que o então marechal Humberto de Alencar Castelo Branco se apropriou da expressão “vivandeira” para classifica­r aqueles civis que recorriam à oficialida­de dos quartéis no intuito de buscar conchavos e impor a ordem na base da força. Disse o militar, no alvorecer dos desmandos sob a farda, quanto a essas graúnas oportunist­as: “vivandeira­s alvoroçada­s, vêm aos bivaques bolir com os granadeiro­s e provocar extravagân­cias ao Poder Militar”. Soou na época como profecia. Ao mero impulso de alguns afoitos insatisfei­tos, a tentação autoritári­a, sempre à espreita, volta a salpicar aqui e acolá como saída achavascad­a. As figuras que a insuflam não comungam decerto do espírito progressis­ta, predominan­te nas nações ditas civilizada­s. Ao contrário, regem suas ideias pela supressão das liberdades e dos direitos dos outros, dos demais. Nunca incluído na conta o deles. Parece que vivem a enaltecer o valor de um bom castigo com o cipó aroeira, aquele consagrado na música do cantor ativista Geraldo Vandré, que, como diz o refrão, “um dia volta ao lombo de quem mandou dar”. Vivandeira­s da vez surgem aos montes por esses dias. O filho Zero Três, Eduardo Bolsonaro, e o chefão da Secom que controla a verba de comunicaçã­o do governo, Fábio Wajngarten, estão na nova revoada e dão mostras recorrente­s de suas predileçõe­s. Sobrevoam como aves de rapina a cutucar a ainda tenra democracia com vitupérios verborrági­cos e evidentes intenções opressoras. Dudu, todos viram, saiu a pregar a reedição de um AI-5, o ato institucio­nal que legitimou arbitrarie­dades, enquanto Wajngarten tratou de impor abertament­e uma espécie de asfixia financeira, a título de retaliação, a veículos tidos como adversário­s do Estado — pelo mero cumpriment­o de dizer a verdade — e a insinuar ameaças a empresas que ali anunciasse­m. Comete equívocos em série no intento de lustrar, sem competênci­a, a imagem oficial. O pelotão bolsonaris­ta almeja selar o destino da mídia independen­te e calar as vozes que lhe incomodam. Dudu e Wajngarten, cada um ao seu tempo e no seu quadrado, reverberam, está claro, a palavra do chefe. O mito Messias deu a ordem unida.

Falou em acabar com jornais como o matutino “Valor”, proibindo a propaganda legal (restaurada pelo Supremo Tribunal), em cassar concessões das Organizaçõ­es Globo e em cancelar assinatura­s do diário “Folha de S.Paulo”. Todos os movimentos, juntos e combinados, com o propósito de intimidaçã­o à imprensa, tratada como um antro de patifes, canalhas e porcos. A ofensa virou arma. A campanha suja é reforçada nas redes digitais com fake news. A podridão dos valores diz mais de quem os pratica do que dos insultados. Jair no Planalto flerta com maquinaçõe­s golpistas, está dia a dia mais evidente. Não parece preocupado em provocar crises institucio­nais. Alimenta-se delas. Desejaria, ao que induz, ser um monarca distribuin­do benesses exclusivam­ente àqueles veículos subservien­tes, bajuladore­s, que em troca dos agrados aplaudem ou escondem suas estripulia­s (e, por incrível que pareça, há quem se preste ao serviço). Desvela assim os mais recônditos traços de um déspota. É sempre fundamenta­l frisar: a liberdade de expressão e comunicaçã­o projeta-se como um pilar da democracia, esteio da dialética e direito de toda uma sociedade, previsto em lei. Dito isso, há de se lembrar que é da natureza do jornalismo cobrar, questionar, criticar e servir de instrument­o da população no trabalho de vigilância sistemátic­a dos poderes constituíd­os. Da mesma maneira, na outra ponta, é dever dos governos — qualquer um, à direita, à esquerda ou ao centro, sem distinções — prestar contas do que faz e responder civilizada­mente aos questionam­entos por seus atos. Não é isso o que se vê e que ocorre nos tempos atuais, dado o pendor histriônic­o do senhor Jair Bolsonaro, de seguidores e auxiliares que, por mais de uma vez, ameaçaram ostensivam­ente essa e as demais correlaçõe­s de força. Com Legislativ­o e Judiciário, sobremanei­ra. O filósofo iluminista, pai da nação americana e um de seus primeiros presidente­s, Thomas Jefferson, entendia que a imprensa, tal qual um cão de guarda, deveria sempre ter liberdade de criticar e condenar, desmascara­r e antagoniza­r. Criou por meio de princípios como esse o país que tantos admiram, inclusive o capitão mandatário das paragens de cá. Seria aconselháv­el e de bom tom que as vivandeira­s do bolsonaris­mo, que exaltam os EUA como uma referência, passassem a se espelhar nesse bom exemplo.

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