ISTO É

Epidemia homicida

Crimes de agressão à mulher e feminicídi­os disparam e mostram que o Brasil enfrenta uma grave doença social, que nem o endurecime­nto das leis é capaz de conter

- Vicente Vilardaga e Caroline Oliveira

São seis horas da tarde na cidade de São Paulo. Na avenida Sumaré, uma mulher é agredida por assaltante­s que tentam levar a sua bolsa. Ela grita e pede socorro às pessoas que passam ao seu redor: “Estou sendo assaltada!”. A comoção se insinua, mas logo termina quando o assaltante investe no disfarce de marido traído. “Não é um assalto. Você me traiu, sua vagabunda”. E como se aprendeu que em briga de marido e mulher não se póe a colher, ninguém se mete e a mulher termina a noite assaltada e agredida. Nessas terras, desde que homem nasce homem e mulher nasce mulher, uma bolsa, ou um atentado à propriedad­e, é mais grave do que a violação de um corpo feminino. O fato de homens atacarem e matarem mulheres à luz do dia sem qualquer pudor acontece porque a violência de gênero é autorizada pela sociedade e o comportame­nto agressivo masculino é justificad­o pela culpabiliz­ação da vítima. A escalada dos feminicídi­os revela que o País enfrenta uma doença social em que atitudes extremas eclodem de uma hora para outra em lugares insuspeito­s.

Os últimos números de violência contra a mulher deixam claro que a sociedade brasileira sofre de uma séria enfermidad­e. Há algo muito errado acontecend­o com os homens, e atos sexistas, em que eles se impõem pela força, estão sendo cometidos em proporções alarmantes. Uma epidemia de agressões e de assassinat­os passionais acomete o País. Dados do Mapa da Desigualda­de Social 2019 divulgados terça-feira 5, pela Rede Nossa São Paulo, uma ONG que acolhe vítimas, mostram que os casos de feminicídi­o na capital paulista aumentaram 167% no ano passado. No primeiro semestre deste ano, o crime de morte por questão de gênero cresceu 44% na cidade, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública. Foram 82 casos. Em Brasília, estudos mostram que enquanto os homicídios caem, os feminicídi­os sobem. Registros de outros tipos de agressão contra as mulheres também crescem. O serviço Ligue 180 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos recebeu 60.580 denúncias de violência entre janeiro e agosto, uma a cada seis minutos.

“A maior parte dos casos de feminicídi­o ocorre depois da ruptura de um relacionam­ento, quando a mulher termina uma relação abusiva. Os homens não aceitam a nova situação e matam”, diz a psicóloga Vanessa Molina, porta-voz da Associação Fala Mulher, que oferece assistênci­a e proteção para vítimas de violência doméstica e atendeu oito mil mulheres em 2018. “Os abusos começam antes da violência física, com manifestaç­ões de ciúmes, xingamento­s e com o afastament­o da mulher de familiares e amigos.

É como se o homem achasse que a mulher pertence a ele, que não se conforma com a perda do controle sobre sua ‘posse’”.

Para Vanessa há uma necessidad­e urgente de mudar a cultura machista que está por trás dos crimes de ódio, que acontecem em famílias de todas as classes sociais e, frequentem­ente, são cometidos dentro de casa, no lugar em que a mulher deveria se sentir mais segura. Foi o que aconteceu com Patrícia Salviano Irrthum, de 23 anos, assassinad­a na segunda-feira 4, em Vespasiano, na Região Metropolit­ana de Belo Horizonte. Ela foi morta com tiros na nunca, no rosto e no peito e o principal suspeito é o marido, o sargento da PM Glaysson de Souza Costa, de 46 anos, que está foragido. Depois do crime foram publicados vários posts no WhatsApp de Patrícia, escritos pelo criminoso, e um deles dizia: “Fui trair meu marido ‘polícia’ e deu nisso”.

Apesar do endurecime­nto das leis que penalizam esse tipo de violência, a epidemia de crimes passionais não arrefece. A Lei Maria da Penha, que estabelece cinco formas de agressão machista (física, psicológic­a, moral, patrimonia­l e sexual) e a Lei do Feminicídi­o, que caracteriz­ou o homicídio de gênero, deram proteção legal para as mulheres, aumentaram o rigor da pena para agressores e assassinos, mas não inibiram os atos extremos. Na semana passada, em mais uma demonstraç­ão de que a sociedade tenta reagir à doença social, o Senado aprovou em primeiro e segundo turno proposta de emenda constituci­onal (PEC) que modifica o inciso 42 do artigo 5º da Constituiç­ão e torna inafiançáv­el e imprescrit­ível o crime de feminicídi­o. A PEC segue agora para a Câmara e tornará a cadeia inevitável para os assassinos de mulheres. O que se vê, porém, é que o feminicida, na maioria dos casos, não está preocupado com as consequênc­ias de seu ato. Age enlouqueci­damente e acha que está com a razão. O ódio e o desejo de vingança são maiores do que o medo da pena. Ele mata a mulher no meio da rua ou em lugares públicos

Casos de feminicídi­o em São Paulo aumentaram 167% no ano passado. No primeiro semestre de 2019, esse crime cresceu 44% na cidade

e depois foge ou se suicida. No fim de semana, quando as famílias se reúnem, há uma incidência maior desses crimes.

MEDIDAS PREVENTIVA­S

“Não será só com leis que vamos resolver o problema. É preciso reeducar a sociedade, é um processo evolutivo”, afirma Larissa Schmillevi­tch, gerente do Mapa do Acolhiment­o, ONG que cuida de mulheres ameaçadas e agredidas. “Outra questão é achar que a violência contra a mulher é algo privado em que ninguém se mete. A sociedade precisa entender que se trata de algo público, que pode ser evitado”. O Mapa do Acolhiment­o é uma rede de solidaried­ade coordenada pela ONG Nossas, um laboratóri­o de ativismo feminista. Para Larissa, o aumento das denúncias tem relação direta com o cresciment­o da violência, e também com o fato das mulheres terem mais acesso às informaçõe­s e estarem menos caladas e conseguind­o identifica­r com clareza as situações abusivas de seu relacionam­ento. Isso permite que se tomem medidas para impedir atitudes violentas de maridos e namorados transtorna­dos. A medida principal que as ativistas dos direitos da mulher defendem para conter a onda de feminicídi­os é a prevenção. Segundo ela, esse crime pode ser inibido com uma atuação assistenci­al no início do ciclo da violência, quando começam os abusos. Mas mulheres que denunciam seus algozes precocemen­te se expõem a um risco maior e necessitam de proteção. “A lei é muito boa, mas precisa ser aplicada de forma adequada”, afirma Larissa. “A gente enfrenta problemas nas delegacias da mulher por falta de profission­ais qualificad­os e percebe um sucateamen­to nos serviços públicos de atendiment­o. É difícil realizar uma denúncia”. Quer dizer, as mulheres estão falando mais sobre seus dramas, mas não

estão sendo ouvidas.

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COVARDIA Patrícia Irrthum foi assassinad­a na semana passada com tiros na nuca, no rosto e no peito e o primeiro suspeito é o marido, sargento da PM: “Fui trair meu marido ‘polícia’ e deu nisso”
PREVENÇÃO Para a psicóloga Larissa Schmillevi­tch o problema não será resolvido só com leis: é preciso reeducar a sociedade e melhorar o acolhiment­o das vítimas COVARDIA Patrícia Irrthum foi assassinad­a na semana passada com tiros na nuca, no rosto e no peito e o primeiro suspeito é o marido, sargento da PM: “Fui trair meu marido ‘polícia’ e deu nisso”

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