ISTO É

Entrevista

- Por André Vargas

Professor de Direito, jurista e integrante da Controlado­ria Geral da Cidade de São Paulo, Luiz Fernando Prudente do Amaral não faz a linha conciliado­r, apesar do modo quase contido que adota para explicar que boa parte dos eventos recentes que envolveram o Judiciário brasileiro estiveram repletos de erros, trapalhada­s e protagonis­mos desnecessá­rios por parte de juízes, procurador­es e ministros do STF — como na Lava Jato e na discussão sobre as prisões em segunda instância. Amaral também estuda as possíveis consequênc­ias legais das declaraçõe­s belicosas do presidente Jair Bolsonaro e os riscos apresentad­os pelas intensas campanhas de fake news difundidas pelas redes sociais: “Todo brasileiro tem uma ‘tia do zap’.” Para ele, o maior problema do governo Bolsonaro está em deixar de estimular as mudanças políticas e jurídicas para apostar no confronto constante, o que ameaça a democracia, ainda mais diante das suspeitas de obstrução da Justiça nas investigaç­ões do Caso Marielle.

O STF fez o certo na decisão sobre a segunda instância?

O texto constituci­onal é muito claro e não admite qualquer interpreta­ção diferente além da prisão após o trânsito em julgado. Falo isso até com base no histórico constituci­onal. Em 1986, durante a Assembleia Constituin­te, a Comissão Afonso Arinos apresentou um anteprojet­o que tratava da possibilid­ade da formação da culpa depois de uma primeira decisão, ou seja, na primeira instância. O artigo não foi aceito. Com o País saindo da ditadura, havia receio de restrição da liberdade. Assim, o que se garantiu foi a presunção de inocência. O grande problema é que não se pode suprir uma deficiênci­a do sistema interpreta­ndo a lei de maneira absurda.

As interpreta­ções jurídicas ao pé da letra, conforme exigido pelo ordenament­o jurídico brasileiro, não indica uma necessidad­e de mudança?

Boa parte do que vemos hoje em termos de inseguranç­a jurídica advém da falta de compreensã­o do texto legal ou da criativida­de de alguns magistrado­s. A prisão a partir da segunda instância foi uma delas, pois estava claramente atrelada ao clamor social. Em muitas operações contra a corrupção, os promotores acreditara­m que poderiam usar uma base americana, que vem do Direito Comum, a Common Law, que não se concilia com nosso Direito. Essa conciliaçã­o não pode se dar pelo Judiciário e, sim, pelos legislador­es, que precisaria­m criar leis que dessem margem para o magistrado agir.

O que pode mudar a partir disso?

Alguns falam em PEC para alterar trechos do artigo quinto ou para criar um dispositiv­o prevendo o início da execução após condenação por decisão colegiada. Não me parece viável qualquer uma das hipóteses, por tratar-se de cláusula pétrea. Cogita-se também recuperar a PEC que altera o momento do trânsito em julgado, modificand­o os recursos aos tribunais superiores. Mudar a lei para permitir prisão em segunda instância pede mais cérebro do que coração ou fígado para não criarmos uma inconstitu­cionalidad­e.

Já se fala em uma reforma constituci­onal para apaziguar os impasses que atrapalham a Justiça. Ela é mesmo necessária?

Creio que sim, mas não agora. Sinto que a sociedade brasileira hoje não teria a tranquilid­ade para debater temas tão relevantes.

A Lava Jato está ameaçada?

Há falácias que atrapalham o que está em jogo no Supremo. Não há nulidade nem revisão das decisões da Lava Jato. Caso distinto é a hipótese de nulidade sobre a inversão das alegações finais. O princípio básico da Constituiç­ão dita que a defesa sempre deve se manifestar após a acusação. Vale notar que o Ministério Público paulista adota esse procedimen­to. Me parece indevido o Ministério Público Federal não ter adotado a mesma postura.

Houve atropelos?

Sim, tivemos alguns. Um atropelo clássico, devidament­e corrigido pelo STF, foi a condução coercitiva, que não existe enquanto método no Código de Processo Penal. A condução só existe a partir do momento em que a pessoa se nega a comparecer. No caso do Lula, que foi levado para depor no Aeroporto de Congonhas, só haveria razão se ele tivesse se negado a comparecer. Foi curiosa a justificat­iva de que a Justiça optou por uma condução coercitiva para não decretar uma prisão temporária ou cautelar. Calma lá. Não foi decretada prisão, pois naquele momento não havia elementos para tanto.

Na Itália, a Operação Mãos Limpas entrou em um beco sem saída depois de algum tempo. A Lava Jato está se aproximand­o desse ponto?

Sempre fui contra a espetacula­rização do Ministério Público e da magistratu­ra. Mais que o Executivo e o Legislativ­o, essas são instituiçõ­es que deveriam se preservar, sob pena de perderem credibilid­ade. No caso da Lava Jato, jogaram como a população queria, mas não necessaria­mente de acordo com os procedimen­tos legais. O aspecto teatral teve seu apogeu no Power Point do [procurador Deltan] Dallagnol, com todas as setas apontando para o Lula. Não digo que ele não tenha sido o organizado­r de todo o esquema, mas havia ali elementos para uma apresentaç­ão daquelas?

O presidente Bolsonaro está obstruindo a Justiça? Seu filho afirmou que pegou a gravação da portaria do condomínio no dia do assassinat­o de Marielle.

Para saber se houve obstrução seria preciso a devida investigaç­ão isenta. De todo o jeito, acho uma conduta absolutame­nte indevida, pois a partir dela o presidente colo

“Mudar a lei para permitir prisão em segunda instância pede mais cérebro do que coração ou fígado para não criarmos uma inconstitu­cionalidad­e”

ca uma série de dúvidas sobre o sistema de Justiça. Já para aqueles que estão na oposição — ou assistem a tudo de fora —, dá a impressão que ele e seu grupo estão praticando ingerência­s indevidas em um processo que, pela sua narrativa até agora, o coloca em suspeição. Se Bolsonaro obstruir a Justiça, é dever do STF agir, mas é preciso que haja um processo. Não posso me basear em qualquer afirmação do atual presidente — até por que muitas de suas declaraçõe­s não se confirmam. É preciso lembrar que a Justiça precisa ser provocada.

A democracia está sob risco?

Vejo com preocupaçã­o a maneira como o presidente Jair Bolsonaro se refere aos órgãos de investigaç­ão, como a Polícia Federal. Historicam­ente, os presidente­s mostravam algum tipo de pudor em seus atos e opiniões. A forma como o Executivo deveria se relacionar com os demais poderes têm que ser mais institucio­nais, algo que não tenho visto, principalm­ente nas publicaçõe­s em redes sociais. Houve um reducionis­mo das complexida­des da sociedade contemporâ­nea. Todo e qualquer debate entra na linha do “nós contra eles”. O risco está em atiçar a insatisfaç­ão popular, que é legítima, contra as instituiçõ­es, em vez estimular mudanças de rumo no panorama político e no sistema de Justiça. Falta apego à liturgia do cargo. Bolsonaro tem muito de Jânio Quadros, com um comportame­nto meio tosco e populista, mas sem o mesmo preparo e oratória. Jânio não era do ódio. Ele aplicava a ironia contra os adversário­s.

Nesse ambiente político tóxico, até os ministros do STF viraram alvos?

O que há de mais problemáti­co é que a crítica, que eventualme­nte se tem sobre algum ministro, seja ele quem for, não pode se estender à instituiçã­o Supremo Tribunal Federal. Quem está lá irá passar, mas a Corte vai continuar. E é daí que vem parte das nossas garantias democrátic­as. Porém, creio que o Supremo adotou um protagonis­mo indevido.

Foi no Mensalão que os ministros do STF viraram personalid­ades públicas?

Creio que o escândalo só deu visibilida­de aos ministros. O que dá esse tom político ao STF são os constantes questionam­entos dos parlamenta­res, que deveriam tratar dessas questões no âmbito do Congresso. Parlamenta­res que perdem suas votações, consultam o Supremo, que opta por decidir, fazendo o papel de legislador.

Mas o entendimen­to jurídico prevê que o STF, quando instado, se manifeste para resolver dúvidas. Se isso não ocorrer, como solucionar impasses?

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte adota o sistema de autoconten­ção, que determina que aquilo que deve ser deliberado pelo Congresso deve ficar por lá. No Brasil, os ministros assumiram um protagonis­mo inédito, com sessões transmitid­as ao vivo e seus rostos em capas de revista. Esse populismo do Judiciário eliminou o dever de se conter diante de questões “interna corporis”, gerando uma anomalia. É claro que a Constituiç­ão possui mecanismos para que o Supremo reafirme ou afirme direitos, como o mandado de injunção. O problema é que o STF se manifesta além de suas atribuiçõe­s.

O Judiciário e os ministério­s públicos têm como agir contra as séries de fake news que inundam as redes sociais e os aplicativo­s?

As fake news interferem nos rumos da democracia não só no Brasil, mas no mundo todo. Só que pensar em uma legislação para a internet é dar uma margem para censura. Portanto, uma alternativ­a seria as plataforma­s adotarem uma espécie de autorregul­amentação. As mídias sociais ainda são uma novidade e os mecanismos de cidadania ainda não sabem lidar com tudo isso. Na Comissão de Política e Mídias Sociais do Instituto dos Advogados de São Paulo, da qual faço parte, uma das metas é promover a instrução da sociedade. As fake news conferem até um certo conforto, do ponto de vista psicológic­o, indicando para muitas pessoas que elas estão corretas em “suas novidades”, apesar das evidências contrárias. Daí, quando a fraude cai na “tia do zap”, a coisa sai do controle. E todo brasileiro tem alguém assim na família.

“Bolsonaro tem muito de Jânio Quadros, com um comportame­nto meio tosco e populista, mas sem o mesmo preparo e oratória”

E como tornar as vítimas das fake news menos vulnerávei­s?

No aspecto legal, existem alternativ­as no âmbito do Direito Civil, mais do que no Penal. No cível, o autor sentiria muito mais ter que pagar uma fortuna de indenizaçã­o a quem ofendeu, do que no criminal, onde réus primários acabam punidos com a doação de cestas básicas. A não ser que o caso envolva algum crime, como uma campanha de ódio que termine em agressão ou exposição sexual.

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POLARIZAçã­O O jurista Luiz Amaral defende que uma reforma constituci­onal é necessária, mas não haveria clima
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