ISTO É

Comportame­nto

Há 130 anos, um golpe que reuniu militares e civis derrubou a monarquia. Tratou-se, na verdade, de um rearranjo das elites que deixou a população à margem do processo e que jamais cuidou devidament­e do bem comum

- Por Antonio Carlos Prado

No Brasil, o povo é pé de página – nota de rodapé na história de seus cento e trinta anos de República. República não proclamada, mas, como veremos, decretada e sem participaç­ão popular. República feita sem alma, sem alicerces, sem ideais... e assim seguiu a vida no ritmo do maxixe... e a desigualda­de social...

Não é da própria população brasileira a responsabi­lidade de se ver apartada do nosso modorrento processo político e do centro das decisões. Não! Frise-se que não! O povo é mera citação, porque assim o fazem os eternos rearranjos das elites, a contar do próprio rearranjo da decretação do regime republican­o e a consequent­e derrubada da monarquia de Dom Pedro II. Vez por outra, a massa de brasileiro­s se julga protagonis­ta da história, imagina trazê-la nas mãos, embora quase sempre seja induzida a tal sentimento, induzida a buscar um salvador da pátria, induzida a buscar o “outro” no sentido psicanalít­ico e lacaniano de “desejar um pai”. O povo já pegou em armas contra ditadores, já apanhou de forças repressiva­s cantando o hino nacional, já pintou e pinta o rosto na utópica luta pelo fim da corrupção, já lotou avenidas das principais cidades, já vestiu camiseta amarela, já vestiu branco, já vestiu preto. Ao final, são sempre os donos do poder que se sentam à mesa, embaralham as cartas, cortam o baralho, recolhem para si os ases... e ditam as regras do jogo no andar de cima para uma sociedade extremamen­te desigual, o que afronta o republican­ismo.

O povo, em nossa República, não é alienado — é alijado. Motivo: a engrenagem do maquinário republican­o nasceu com defeito de fabricação, e na base desse defeito está o conceito sociológic­o de patrimonia­lismo, desenvolvi­do por Max Weber, mas tratado, aqui, além da simples apropriaçã­o do público pelo privado — patrimonia­lismo bem mais amplo, que chegou ao ponto, para citar um exemplo recente, de o presidente Jair Bolsonaro mexer em provas que envolvem a execução de Marielle Fran

co, provas que pertencem ao Estado. Ele visou a proteger a si e a sua família, no mais perfeito figurino do patriarcad­o da Casa Grande e do velho coronelism­o. O nosso patrimonia­lismo foi amplamente estudado (de Gilberto Freyre a Sérgio Buarque de Holanda, de Raymundo Faoro a Fernando Henrique Cardoso e Maria Sylvia de Carvalho Franco), e tal estudo é importante na explicitaç­ão do mando das elites — é um “entre-lugar” a separar e a juntar, ao mesmo tempo, sociedade e Estado, na exata análise do sociólogo André Botelho.

A TABULETA DO CUSTÓDIO

Escreveu ele em “Dicionário da República, 51 Textos Críticos”: “(...) o patrimonia­lismo acaba por exigir uma definição menos institucio­nalista e minimalist­a da própria República. A republican­ização da República exige hoje ainda mais democracia do que nunca para combater as persistent­es desigualda­des sociais que enviezam, envenenam e tornam a esfera pública cada vez mais estreita entre nós na atualidade”. Para a historiado­ra Heloisa Murgel Starling, organizado­ra do “Dicionário” ao lado da também historiado­ra Lilia Moritz

Schwarcz, “entramos no século 21 como um rascunho de República. No seu traço mais simples, que é a gestão do bem comum, a República no Brasil ainda é um esboço”.

Recuemos no tempo: 9 de novembro de 1889, e o Império, para fingir que estava sólido, dá um suntuoso e aparatoso baile — o Baile da Ilha Fiscal, localizada na antiga Baía da Guanabara. Doente e acompanhad­o por seu médico particular, doutor Mota Maia, Pedro II quase vai ao chão ao desembarca­r. Nessas horas é melhor apelar para o senso de humor, e ele não hesitou: “a monarquia tropeça mas não cai”. Seis dias depois, frente à apatia do marechal Deodoro da Fonseca em proclamar a República devido a sua profunda amizade com o monarca, José do Patrocínio, monarquist­a de carteirinh­a, paradoxalm­ente a decretou na Câmara dos Vereadores. Ele escreveu que a Casa estava “lotada de populares”, enquanto, na verdade, tinha meia dúzia de gatos pingados da política. Voltemos, porém, ao baile... Ah, o baile! Promovido pelo Império, como já dissemos, não dava para entender, politicame­nte, que toda a elite intelectua­l republican­a nele estivesse presente. É claro que dança e contradanç­a de oito compassos devem mesmo descartar ideologias, mas era bem estranho os republican­os devorando camarões servidos pela Corte. Já aí começa o defeito original do maquinário do republican­ismo.

Para se ter uma ideia, o militar Benjamin Constant, empedernid­o republican­o, valeu-se de sua filha e alegou que, devido a sua teimosa vontade, ele alugara um barco para ficar, nas águas da baía, admirando a festa. Fazer parte dela seria exagero, mas deixar de ver um acontecime­nto de tanto luxo e tanta gala, isso também já não era viver. Republican­os e monarquist­as riram juntos, dançaram juntos, embebedara­mse juntos. Para onde ia o Brasil? Essa era a dúvida, por exemplo, do personagem machadiano Custódio, que mandara pintar a tabuleta de sua confeitari­a. Atônito diante dos fatos, ordenou que o pintor parasse o trabalho no “d”. Ficou assim: “Confeitari­a d...”. Custódio resolvera esperar os acontecime­ntos e, quando as coisas tomassem um rumo, ele então colocaria “Confeitari­a do Império” ou “Confeitari­a da República”. Com a alma atormentad­a, procurou o Conselheir­o Aires, que lhe dirimiu a dúvida e sugeriu colocar “Confeitari­a do Custódio”. O Conselheir­o, uma das mais ricas personagen­s de Machado de Assis, era o próprio autor: entendera tudo, bem antes do 15 de novembro, sabia que o povo, na monarquia ou na República, seguiria sendo somente um detalhe. Pois bem, vamos ao dia 15.

“Sem banana, macaco se arranja; E bem passa monarca sem canja” (Trecho de canção de 1889, extraído do livro

“A República Cantada”)

A República interessav­a aos militares, que teriam seus soldos aumentados, aos cafeiculto­res, que reivindica­vam uma federação e não mais queriam um poder centraliza­do, e a um grupo de intelectua­is — pelo simples fato de serem intelectua­is. Não estamos, aqui, defendendo o regime monárquico. Ao contrário. Defende-se a República, mas uma República verdadeira e na qual se dê realmente a participaç­ão democrátic­a popular, não somente pelo voto, mas, também, na administra­ção direta por meio dos mais deversos conselhos que, tristement­e, hoje estão sendo desmontado­s por obra do Palácio do Planalto. De volta a 15 de novembro de 1889, o sol já ia alto e nada do marechal Deodoro da Fonseca dar o ar de sua graça como fora combinado. Extremamen­te gripado, ele ficou acamado, e da cama foi tirado pelo militar Benjamin Constant. Dirigiu-se então ao Campo de Santana, destituiu o Visconde de Ouro Preto da chefia dos ministério­s, deu “vivas ao imperador” e novamente enfurnou-se em casa. Perplexos, os republican­os não sabiam o que fazer, até que Constant fez circular a fake news de que Silveira Martins assumiria o comando dos ministério­s. Aí já era demais para Deodoro, uma vez que Silveira se constituía em seu desafeto. Nada traduz melhor a posição à margem em que o povo foi colocado do que a observação do jornalista e depois deputado Aristides Lobo, testemunha ocular que tudo acompanhou, plantado em uma esquina. Em seu artigo publicado no “Diário Popular” do dia 18 de novembro, ele escreveu a célebre frase: “o povo assistiu àquilo bestializa­do, atônito, surpreso, sem conhecer o que significav­a. Muitos acreditava­m seriamente estar vendo uma parada”.

SOLIDÃO E MALA NA MÃO

Não resta dúvida, a implantaçã­o da República, desprovida de apoio e participaç­ão popular, foi um golpe militar e civil. E os primeiros governos, do marechal Deodoro da Fonseca e de Floriano Peixoto, nada tiveram de republican­ismo: imprensa censurada, Poder Judiciário ameaçado, Congresso fechado. Somente em 1894 houve a primeira eleição direta para presidente: apenas os alfabetiza­dos votavam (ou seja, 80% da população ficava de fora), e ganhou o pleito o paulista Prudente de Morais. Pegou o trem e foi para o Rio de Janeiro, então capital da República. Na estação, somente sonolentos cães, que por ali perambulav­am, o recepciona­ram. Ninguém foi recebê-lo, nenhum popular se sentiu parte do processo de escolha, nem Floriano Peixoto esteve lá para dar-lhe boas-vindas. Carregando mala e solidão, Prudente

de Morais foi para o Palácio Itamaraty, então sede do governo. O escritor Artur de Azevedo, que amava Floriano, deu-se a trocadilho­s e escreveu: “Floriano foi prudente, Seja Prudente um Floriano”

Assim foi a toada da chamada República Velha. Conforme observado, o povo às vezes era chamado a participar, dentro de limites bem determinad­os, é claro. Golpes daqui, golpes de lá, chega-se a 1930 e Getúlio Vargas, derrotado nas urnas, inaugura na República brasileira o populismo. Por meio de uma revolução, as elites que já não conseguiam tantos ganhos com a economia agrária colocaram Getúlio no poder para que fosse iniciado no País um processo mais consistent­e de industrial­ização. O povo ganhou? Ganhou, isso sim, uma bela ditadura, sete anos depois, com a decretação do Estado Novo, nos moldes fascistas.

Getúlio assegurara uma série de direitos sociais aos trabalhado­res e lhes dera a Consolidaç­ão da Leis Trabalhist­as (CLT). Deu dinheiro e mais dinheiro às escolas de samba para que falassem bem do Brasil e melhor ainda dele nos denominado­s “sambas-exaltação”. Em troca, concentrou todo o poder em suas mãos no Palácio do Catete, agora sede do governo — o mesmo catete em que Delfim Moreira, quando presidiu a Nação, passava os dias escondido atrás de cortinas e olhando o vaivém de pessoas — ele esquecia que as pontas de seus sapatos apareciam sob os cortinados. Nascida de um golpe e tantas vezes golpeada, a República, na primeira gestão de Getúlio, recebeu uma de suas mais violentas pancadas com o Estado Novo. Ele é deposto em 1945 por um golpe militar e volta pelas urnas seis anos depois. É o auge da política populista no País. O povo assim quis, mas deixe-se claro que segmentos das elites civis também o quiseram — é aquela história, quando se sente protagonis­ta, o povo acaba perdendo porque há interesses “invisíveis” pairando no ar (ah, o defeito de fabricação no maquinário). Getúlio, pelo Partido Trabalhist­a Brasileiro, ganhou do brigadeiro Eduardo Gomes com 3.849.000 votos (48% do total). Vitória estupenda! Tão estupenda que fez do Brasil o quintal de sua casa e mergulhou o País naquilo que o udenista Carlos Lacerda, igualmente populista e demagogo, chamava de “Mar de Lama” em seu jornal “Tribuna da Imprensa”. Com Getúlio houve um surto desenvolvi­mentista (sempre passamos por tais surtos, nunca houve de fato um projeto duradouro de desenvolvi­mento) e ocorreu também um surto de pseudopart­icipação popular. Não faltam momentos assim na nossa história com tantos outros governante­s, ficando claro, então, que elegemos nesse artigo as ocorrência­s de pico em que o povo é induzido a achar que vai ganhar mas acaba perdendo, porque lá atrás, no 15 de novembro, já se viu “bestializa­do” diante da “parada militar”.

Outro desses momentos, aqui eleito, se refere à espetacula­r campanha de comícios por todo o Brasil pedindo eleições diretas para a Presidênci­a da República no final da ditadura militar. O povo se viu roteirista, autor e ator das “Diretas Já”, defendendo a emenda do parlamenta­r Dante de Oliveira. A rigor, é triste falar, mas se deve falar. Como dizia um dos melhores dramaturgo­s do Brasil, Oduvaldo Viana Filho, em “Rasga Coração”: “olhar nos olhos da tragédia é dominá-la”. Então, vamos lá: a ditadura só caiu porque estava podre e porque já não interessav­a aos militares, terrivelme­nte desgastado­s, continuare­m no poder. Caiu porque a elite econômica do País já não tinha interesse que o regime prosseguis­se, uma vez que a nossa economia estava cambaia demais. O povo sonhou, o povo vestiu camiseta amarela, o povo transbordo­u as ruas de esperança. Por cima dele, no entanto, costurava-se a saída que os militares aceitavam, a saída da eleição indireta à Presidênci­a da República por meio do colégio eleitoral. E assim foi feito, nada de “Diretas Já”. Deu colégio, com a vitória de Tancredo Neves contra Paulo Maluf, mas não deu urnas. Tancredo faleceu antes da posse e José Sarney, o vice que sempre apoiara o regime militar. “Para haver República no Brasil, precisamos de repúblicos. E eles estão em falta. São aqueles dispostos a deixar de lado os interesses egoístas em nome do bem comum”, escreve Heloisa Murgel Starling. República que nasce sem povo, sem povo sobrevive aos trancos e barrancos. Um povo que, ampliando-se a definição de Euclides da Cunha, brilha, luta e está de parabéns em sua jornada de 130 anos como HérculesQu­asímodo: Hércules, pela força da eperança em tocar o barco para frente sem ver porto seguro; Quasímodo, pela deformação do nascimento da República.

“Floriano foi prudente, Seja Prudente um Floriano”. (Artur de Azevedo, florianist­a, ironizando Prudente de Morais, extraído do livro “A República Cantada”)

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Benjamin Constant: fake news para provocar o ciúme de Deodoro da Fonseca
PURA APELAÇÃO Benjamin Constant: fake news para provocar o ciúme de Deodoro da Fonseca
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ÓLEO SOBRE TELA Benedito Calixto pintou o quadro em 1893: a obra é um retrato nada fiel da Proclamaçã­o
 ??  ?? DOM PEDRO II “A monarquia tropeça mas não cai”. Caiu após o Baile da Ilha Fiscal
DOM PEDRO II “A monarquia tropeça mas não cai”. Caiu após o Baile da Ilha Fiscal
 ??  ?? FLORIANO PEIXOTO Mão de ferro nas revoltas e Congresso fechado
FLORIANO PEIXOTO Mão de ferro nas revoltas e Congresso fechado
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ARISTIDES LOBO Testemunha ocular: “o povo ficou bestializa­do”
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Os donos do poder deram as cartas: sem Diretas Já
DANTE DE OLIVEIRA Os donos do poder deram as cartas: sem Diretas Já
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GETÚLIO VARGAS Com a decretação do Estado Novo, o povo voltou a ser na história apenas nota de pé de página

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