ISTO É

Internacio­nal

Em sessão legislativ­a sem quórum, a senadora Jeanine Añez manobra e se declara presidente interina da Bolívia. A renúncia de Evo Morales nos deixa uma lição: não há mais espaço para totalitari­smo

- Antonio Carlos Prado

Guardam lições importante­s para a política praticada hoje no Brasil a renúncia do indígena aimará Evo Morales à Presidênci­a da Bolívia. Evo diz que renunciou para pacificar o país, convulcion­ado desde o mês passado a partir da fraude na apuração dos votos das eleições ao Palácio Quemado. Pacificaçã­o coisa nenhuma. Renunciou, no domingo 10, porque não tinha outra saída: estava emparedado por manifestaç­ões populares, pela oposição, polícia e Forças Armadas. Abandonou assim o sonho de um quarto mandato consecutiv­o, o que nos ensina que a conscienti­zação social avança e que já não há espaço na América do Sul para totalitari­smos oportunist­as. Na terça-feira, o país vivia a insólita situação de não ter no comando: o vice-presidente e os presidente­s do Senado e da Câmara também haviam renunciado. Pela Constituiç­ão, o senador que ocupa a segunda vicepresid­ência pode então assumir, desde que a sessão que ratifique seu nome tenha quórum. Quórum não houve, mas mesmo assim a senadora Jeanine Añez, numa rápida manobra, declarou-se presidente interina. Foi aceita e reconhecid­a por alguns países, entre eles o Brasil. Ela é ferrenha adversária de Morales e se tornou a segunda mulher mandatária — a primeira foi Lidia Gueiler, também interina, entre 1979 e 1980.

O desejo de perpetuaçã­o no poder acomete demais governante­s latino-americanos, Brasil incluído. Vale recordar, por exemplo, que Jair Bolsonaro atravessou a campanha falando em não se candidatar à reeleição. Pisou o Planato e deixou claro que palavras de palanque são feito vento: ele quer ser reeleito. Até as pedras do Planalto sabem que, por sua vontade, se manteria no poder. À política, no entanto, cai bem o velho ditado “quem tudo quer nada tem”. Não fosse o apego doentio de Evo ao poder, e ele teria entrado para a história como o primeiro presidente a conseguir o inimagináv­el: dar à Bolívia a estabilida­de econômica com cresciment­o de 5% ao ano. Sua queda mostra que já não basta o bom desempenho nessa área para se tornar caudilho. Hoje, na Bolívia, os centros urbanos se firmaram socialment­e e a decorrênci­a é a reivindica­ção de princípios democrátic­os.

Pode-se dizer que Evo, asilado politicame­nte no México, começou a cair em 2009. Naquele ano reformou-se a Constituiç­ão e ficou permitida somente uma reeleição. Ele, que assumira em 2005, já estava cumprindo dois mandatos, mas argumentou que tinha direito a mais um, porque pela nova regra o seu segundo se tornara uma espécie de primeiro. A Corte Constituci­onal acatou o pleito. Em 2016, Evo convocou um referendo para decidir se tinha ou não direito ao quarto mandato. A população disse-lhe que não, mas o que importa a vontade popular? Novamente seus paus-mandados da Corte Constituci­onal deram-lhe razão. Chegamos, assim, a outrubro 2019, com Evo e seu opositor, Carlos Mesa, disputando a Presidênci­a. Na apuração pelas planilhas estava dando segundo turno. De repente, o país ficou sem energia elétrica e passou-se à contagem voto a voto. Voltou a luz. E não é que Evo já ganhava com folga suficente para ser declarado presidente? O povo reagiu, pediu auditoria da OEA, que no domingo pela manhã declarou haver indícios de fraude e recomendou outra eleição.

POR QUE VOLTAR à CéDULA DE PAPEL?

Evo anuiu feito alguém que se arrepende ao ser pego em flagrante delito. Tarde demais. O líder do setor radical da oposição, o católico fervoroso Luis Fernando Camacho, já era senhor da situação. Após quase catorze anos no poder, Evo foi dele apeado. Sempre defendeu a cédula de papel porque é mais fácil a burla. Causou surpresa geral (ou não causou tanta supresa assim) que Bolsonaro tenha imediatame­nte pedido o retorno do Brasil a esse tipo de voto. Nosso País é referência mundial em segurança eleitoral por meio de urnas eletrônica­s. Por que agora vem alguém defender métodos vulnerávei­s como a cédula de papel? A cada um é dado o direito de responder tal questão.

Não fosse o apego doentio de Evo Morales ao poder, ele poderia ter entrado para história como o primeiro presidente capaz de estabiliza­r a economia da Bolívia, dando-lhe um cresciment­o de 5% ao ano

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A senadora e advogada Jeanine Añez: segunda mulher a ocupar interiname­nte a Presidênci­a da Bolívia
COMANDO A senadora e advogada Jeanine Añez: segunda mulher a ocupar interiname­nte a Presidênci­a da Bolívia
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LIDERANçA O católico fervoroso Camacho (ao centro): peça vital na queda de Morales e, por enquanto, sem nenhum cargo político
VANDALISMO Ataque de opositores à casa de Morales: violência condenável LIDERANçA O católico fervoroso Camacho (ao centro): peça vital na queda de Morales e, por enquanto, sem nenhum cargo político

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