ISTO É

Última Palavra

- Mentor Neto

Doutor Ferreira acordou quando o rolo de papel higiênico explodiu em sua testa. – Cacete, Doutor Fonseca, já pedi pra não me acordar dando susto. Eu tenho o coração fraco.

– Coração fraco nada, Doutor Ferreira. Acorda que tem reunião.

A cela estava lotada. Todos os funcionári­os da Fonseca, Ferreira & Associados estavam presentes. O pessoal de civil, de fusões e aquisições e de contencios­o. Os criminalis­tas, como sempre, no melhor lugar, a parte de cima dos beliches.

Nos últimos anos, um a um, todos os advogados — alguns formados no exterior — tinham sido presos e agora se reuniam apertados na cela 171 do Presídio Damasceno Flores. O número da cela foi piada do diretor, que sabia que ali apodreceri­am os advogados do escritório que, por décadas, atendeu à facção criminosa mais temida do País.

Hoje, coitados, Fonseca, Ferreira & Associados dividem o pátio com seus clientes. Apesar disso, o escritório continuava um dos maiores do País.

– Bom, os senhores já devem saber o motivo desta reunião. — Abriu os trabalhos o Doutor Fonseca, fundador do escritório — Enquanto o Doutor Ferreira aqui dormia, o STF decidiu contra a prisão em segunda instância.

– Eita! — Doutor Ferreira deixou escapar, atrasado, a alegria que todos já haviam demonstrad­o.

– Os senhores sabem o que isso vai representa­r para o nosso escritório, não é mesmo? — Doutor Fonseca prosseguiu — Por favor, os números, Doutor Plínio.

Diretor financeiro, Doutor Plínio já havia desenhado uma tabela sobre uma tampa de privada.

– Bem... Entre nossos clientes que serão privilegia­dos estão 213 assassinos, 450 traficante­s e 75 sequestrad­ores, além de mais 645 que denominamo­s de casos menores. Um total de 1.383 indivíduos, cidadãos como vocês, eu e o Lula, que foram presos injustamen­te!

– Não se empolga, Doutor Plínio. — Doutor Fonseca arretou o colega.

O homem do financeiro se acalmou e continuou.

– Temos ainda mais 1.437 que estão cumprindo pena por cautelar, fuga, compra de testemunha. Sabem como é, essas bobagens... Esses não podem sair, mas quem sabe a gente empurra junto. Aí é com o pessoal do tributário, que sempre acha um jeitinho.

– Bom, então vocês já sabem. Temos que preparar esses

1.383 habeas corpus com urgência! — ordenou Doutor Fonseca.

– Mas Doutor... Vamos levar dias para isso, consideran­do que nem computador­es temos. — Disse o Doutor Domingos, da logística e TI — Temos só aquelas três máquinas de escrever que o diretor libera depois do almoço.

Doutor Ferreira saltou da cama.

– Esse final de semana ninguém descansa. Os que têm letra bonita ajudem, porque HC pode ser até em papel de pão.

– Se é o que temos, é o que vamos usar. — Doutor Fonseca apoiou o sócio — Vamos liberar em ordem alfabética, que é para não privilegia­r ninguém.

– Ordem alfabética? — estranhou alguém. Os sócios pensaram um pouco.

– É... Na alfabética não vai dar. Comecem por vocês sabem quem. Depois os outros cinco e em seguida, o Pé de Mesa...

– O Pezão... Mas ele tá aqui por estupro.

– Um estuprinho só. Não complica! Manda pau. Digo, vamos em frente na vara. Ô, meu deus, vocês entenderam.

– E nós? — alguém perguntou.

– Nós ficamos para o fim, claro. Temos que dar exemplo. Primeiro salvam-se os passageiro­s, depois os tripulante­s.

Assim, pelos oito dias seguintes o escritório Fonseca, Ferreira & Associados trabalhou diuturname­nte para soltar os clientes presos injustamen­te. Em pouco tempo os HCs começaram a ser cumpridos.

De sua cela, Doutor Fonseca olhava orgulhoso a longa fila de clientes deixando o pavilhão. Assassinos, sequestrad­ores, pedófilos, assaltante­s de banco, estuprador­es. Tudo gente injustiçad­a.

O sol se punha no horizonte quando o velho advogado deixou escapar:

– Que coisa linda é fazer a Justiça cega enxergar, não é mesmo, Doutor Ferreira?

Mas o sócio não ouviu. Dormia em paz, profundame­nte.

Mentor Neto é escritor e cronista

Na cela 171, os causídicos mais talentosos trabalhara­m sem descanso para libertar assassinos, sequestrad­ores, assaltante­s, estuprador­es e corruptos. Só gente injustiçad­a

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