ISTO É

Entrevista

- Por Germano Oliveira

O ministro Gilmar Mendes é um dos mais preparados ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Como ex-presidente da Corte, no período de 2008 a 2010, Mendes conhece como ninguém o regimento interno da instituiçã­o e todos os meandros da Constituiç­ão. É também um dos mais polêmicos. Pode-se questionar algumas das medidas que toma, mas jamais afirmar que elas não estejam embasadas na letra fria das normas constituci­onais. Mendes é o que os juristas chamam de juiz garantista, aquele que defende os direitos fundamenta­is do cidadão acima de tudo. Essa corrente representa­da por ele, inclusive, se posiciona contra a condução coercitiva e defende com afinco a presunção de inocência. Muitas vezes, as pessoas comuns não compreende­m porque ele manda soltar determinad­o preso acusado por crimes de colarinho branco. Contudo, ele atua nos limites da lei, estabelece­ndo que a prisão preventiva, por exemplo, não pode ser eterna, e que as pessoas só devem ir para a cadeia depois de esgotados os últimos recursos de apelação. Em entrevista exclusiva à ISTOÉ, Mendes diz que os ataques ao STF devem ser repudiados, embora não acredite que o clima de radicaliza­ção leve a um golpe militar: “As Forças Armadas não são milícias do presidente”, diz.

Como o senhor viu os ataques ao STF, com um grupo de ativistas de direita ligados ao presidente Bolsonaro soltando rojões contra o prédio da instituiçã­o?

Sem dúvida nenhuma essa é uma perturbaçã­o que vem sendo alimentada ao longo desses últimos tempos, com reivindica­ções pelo fechamento do Supremo e do Congresso, e isso precisa ser devidament­e censurado e repudiado. Tivemos esse embate com os fogos de artifício, mas já havíamos tido aquele movimento das pessoas com máscaras, tochas, evocando um passado lucubre e nós precisamos tomar providênci­as em relação a isso, asseverand­o que não se pode colocar em risco a democracia.

Por que o presidente não desestimul­a esses grupos?

Desde a campanha, se formaram agrupament­os que suscitam a volta da ditadura, a intervençã­o dos militares, o artigo 142, a restauraçã­o do AI-5 e se formou esse coquetel de mensagens formuladas por esses movimentos de extrema-direita, que a gente nem sabe se eles têm a devida noção do que se trata. Mas, esse é um elemento de instabilid­ade e de movimentos perturbado­res da democracia. Esses desafios surgem em meio a uma pandemia, descalabro na economia em decorrênci­a do isolamento social, e mesmo assim temos que dedicar nossas energias para essas crises políticas que toda a semana são encetadas.

Alguns desses agressores foram presos na segundafei­ra, 15, como a ativista Sara Winter. Essas prisões servem de alerta para os que desejam retrocesso­s na nossa democracia?

Nesses casos, é uma chamada à responsabi­lidade, passando a ideia de que as pessoas não podem atacar de forma livre as instituiçõ­es, sem algum tipo de punição ou reprimenda. Não se trata de comemorar a prisão de quem quer que seja, mas é preciso separar a liberdade de expressão dos ataques às instituiçõ­es. O Estado de Direito tem que usar de seus valores em defesa de democracia.

O próprio presidente, seu vice e o ministro da Defesa divulgaram uma nota dizendo que o Exército não cumprirá ordens absurdas e nem decisões políticas do Judiciário, se referindo às investigaç­ões no STF e ao julgamento da chapa Bolsonaro/Mourão no TSE. O senhor classifica essa nota como uma intimidaçã­o ao STF?

Todas as instituiçõ­es têm que agir com responsabi­lidade e também se expressar com responsabi­lidade. Se formos analisar esse tipo de manifestaç­ão, vamos perceber uma contradiçã­o interna. Quem vai avaliar se uma decisão ou uma ordem é política ou não? Quem vai dizer se uma ordem é absurda ou não? Por outro lado, eles estão falando em nome das Forças Armadas? Receberam delegação para tanto? Foram autorizado­s a falar em nome das Forças Armadas? Claro que não. Isso me parece tudo muito permeado de contradiçõ­es. Nós deveríamos desanuviar o ambiente, ampliar o espaço do diálogo e dedicar nossos esforços às causas necessária­s. Temos um grande desafio pela frente, que é o combate à pandemia e ao enfrentame­nto do caos econômico. Temos que encerrar esses conflitos arranjados e essas manobras diversioni­stas.

“No entorno do presidente, há uma visão de que haveria um tipo de presidenci­alismo imperial, mas isso não está desenhado na Constituiç­ão de 1988”

O ministro Fux disse que as Forças Armadas não são poder moderador numa disputa entre poderes. Parece haver um consenso nesse sentido. O senhor concorda que as Forças Armadas não têm esse papel de um quarto poder, como o presidente Bolsonaro quer fazer valer?

Todos nós temos essa visão. O artigo 142 não dá às Forças Armadas esse papel. E isso também nunca foi reivindica­do pelas Forças Armadas. De uns tempos para cá é que se passou a falar desse papel, de intervençã­o militar, de autogolpe, mas isso nada tem a ver com a Constituiç­ão de 88. As Forças Armadas têm cumprido o seu papel, usando o artigo 142 na GLO, para a guarda da ordem. Tivemos colapsos da segurança nos estados e as Forças Armadas atuaram em colaboraçã­o com outros poderes, com os governador­es dos estados. E isso nunca foi questionad­o. O país amadureceu muito em termos institucio­nais e não há razão para se querer retrocesso­s ou reivindica­r um papel que não cabe no contexto da Constituiç­ão.

Essas intimidaçõ­es podem levar a uma ruptura institucio­nal, como pregam os bolsonaris­tas, inclusive o filho do presidente?

Tenho a impressão de que muita gente fala sobre isso sem medir as conseqüênc­ias e talvez com o intuito de atemorizar as outras instituiçõ­es. Muita gente tem assumido esse papel, falando em nome das Forças Armadas, sem nenhuma legitimaçã­o e sem procuração para isso. As Forças Armadas não

são milícias de um presidente. Milícia é outra coisa. É organizaçã­o criminosa, que precisa ser combatida e não encorajada.

O senhor conversou com o presidente e mostrou-lhe que o poder presidenci­al tem seus limites dentro do processo democrátic­o. O senhor acha que Bolsonaro extrapola com suas atitudes totalitári­as?

O presidente foi por 28 anos parlamenta­r e ele viu o aplicar da Constituiç­ão de 88, que é uma democracia com limites. Como parlamenta­r, ele atuou aceitando medidas ou rejeitando projetos e tem a exata noção de que estamos numa democracia constituci­onal, o que envolve limites. Mas, em seu entorno, há uma visão de que haveria um tipo de presidenci­alismo imperial, mas isso não está desenhado na Constituiç­ão de 88. Às vezes, o presidente usa a expressão de que os demais poderes estão esvaziando a sua caneta, mas não é disso que se trata. Todos os poderes estão exercendo suas atribuiçõe­s. O Congresso, quando rejeita uma medida provisória, está cumprindo o seu papel. O mesmo ocorre com o Supremo Tribunal Federal quando procede o controle de constituci­onalidade de medidas do Poder Executivo ou Legislativ­o.

O senhor acha que o STF, como o verdadeiro poder moderador da Constituiç­ão, terá força para impedir eventual golpe ao Estado de Direito?

Eu não vislumbro isso. Esse fantasma vem sendo invocado nessas aparições desses grupamento­s, que eu reputo de marginais. Não vejo nenhum intuito golpista por parte das Forças Armadas. O Tribunal tem cumprido a sua função de manter o equilíbrio, evitar os excessos. Veja por exemplo o que ocorre com o papel federativo. O tribunal afirmou o papel do presidente da República no que diz respeito a legislar na questão da Saúde, mas reafirmou também o papel de estados e municípios no que diz respeito às medidas a serem adotadas. O STF tentou fazer uma composição sobre os interesses federativo­s em conflito. Esse é o papel de uma Corte guardiã da Constituiç­ão.

Além do processo contra sua chapa no TSE, o presidente vem demonstran­do ctrariedad­es contra outras investigaç­ões em andamento no Supremo, como as conduzidas pelos ministros Alexandre de Moraes e Celso de Mello. O presidente andou até participan­do de manifestaç­ões que pedem o fechamento do STF. O presidente se equivoca ao participar dessas manifestaç­ões?

É um equivoco por parte dele. E eu já tive oportunida­de de dizer isso ao presidente, de que ele não deveria participar dessas manifestaç­ões com esse teor antidemocr­ático. Quanto aos processos, esse que está com o ministro Celso de Mello é uma ação que investiga a eventual interferên­cia do presidente na Polícia Federal, e partiu de uma imputação do ex-ministro Sergio Moro, e foi aberto por um pedido feito pelo procurador-geral da República. Os outros dois que estão sob a relatoria do ministro Alexandre, um deles decorre do artigo 43 do Regimento Interno do Supremo, que é a defesa do tribunal na questão das fake news e dos ataques à Corte, e que foi instaurado pelo presidente Toffoli, designando o ministro Alexandre para conduzir o inquérito. E há um outro, que é em defesa da democracia por conta daqueles atos praticados no evento em frente ao QG do Exército, no qual o procurador-geral também pediu a abertura de inquérito. São todos procedimen­tos regulares. O que se tem a fazer nesses casos é prestar as informaçõe­s devidas e não alimentar essas crises. Muito provavelme­nte esse inquérito do ministro Celso, se não tiver havido interferên­cia indevida do presidente na PF, o próprio procurador-geral pedirá o arquivamen­to e o assunto se encerrará.

O senhor já foi vitima de ataques desses grupos de fake news e de ameaças aos integrante­s do tribunal. O senhor acha que esses criminosos devem ser condenados a penas mais duras, como a prisão?

Tenho a impressão que em alguns casos isso é necessário. Estamos a ver que em alguns casos as ameaças causam danos às instituiçõ­es democrátic­as e em determinad­as situações acho que precisa haver punições mais rigorosas. Claro que temos que olhar isso sempre com muito cuidado, para não criarmos uma espécie nova de censura, para que vivamos a verdadeira liberdade de expressão. Precisamos também fazer a autoregula­ção dos provedores para que eles próprios não sejam disseminad­ores dessas notícias falsas, que tanto turbam o ambiente familiar, político e democrátic­o.

“Não me ocupo com isso (críticas feitas por Carlos Bolsonaro). Não sou eu que tenho ligações com instituiçõ­es de bandidagem ou com as milícias”

Entre os investigad­os pelo ministro Alexandre há vários parlamenta­res bolsonaris­tas, empre

sários, blogueiros e até filhos do presidente acusados de pertencere­m ao chamado “gabinete do ódio”. O senhor acha que é preciso punir quem quer que seja, doa a quem doer?

Certamente o ministro Alexandre está conduzindo essas investigaç­ões com todo cuidado e responsabi­lidade. Tem uma equipe de técnicos dedicada a isso e essas investigaç­ões trarão resultados auspicioso­s para o sistema de Justiça e para o sistema democrátic­o.

O que o senhor achou da fala do ministro Weintraub na famigerada reunião ministeria­l do dia 22 de abril, quando ele disse que os ministros do STF eram vagabundos e teriam que ser presos? Weintraub tem que ser demitido ou punido criminalme­nte pelas ofensas à Corte?

Aquela reunião mostra um dos momentos menos elevados do governo. Eu vi a divulgação daquele vídeo com muita tristeza, porque acho que aquelas 24 pessoas tinham uma tarefa enorme no meio de uma pandemia, mas passaram o tempo todo discutindo assuntos irrelevant­es, não dando uma palavra sobre os mortos, não tomando uma resolução para minimizar o problema. Por outro lado, vi a reunião com um certo alívio, pois ela foi um registro histórico de como nós estamos sendo governados. E a própria participaç­ão desse ministro foi singular. Ele está incumbido da Educação, mas não deu uma única palavra sobre a atividade na Educação. Preferiu promover ataques ao Supremo. Eu cheguei à conclusão de que estávamos diante de um caso grave de imputabili­dade.

Por duas vezes, o senhor se referiu à política do governo no combate ao coronavíru­s como genocida. O senhor acha que o presidente pode ser responsabi­lizado pelo elevado número de mortes pela Covid?

Todos nós devemos nos preocupar com isso e o tribunal sempre teve essa preocupaçã­o, tanto que nas várias decisões que tomou, recomendou que nós não fugíssemos das orientaçõe­s da OMS, fortalecen­do o papel dos governador­es e prefeitos no que diz respeito à saúde, até porque é perceptíve­l que são os estados e municípios que estão com a gestão dos hospitais. Mais de 94% dos hospitais estão sob a jurisdição dos estados e municípios. E isso foi destacado pelo tribunal. Os agentes políticos que não tomarem as devidas cautelas, poderão no futuro ser responsabi­lizados por seus atos.

No seu Twitter de domingo, o senhor disse que invadir hospitais é crime e estimular também. O senhor disse que era vergonhoso que agentes públicos alimentem teorias da conspiraçã­o. O presidente estimulou a invasão a hospitais?

Eu fiquei muito impression­ado com a live do presidente em que sugeriu esse modelo de fiscalizaç­ão, de invadir hospitais. Muito mais preocupado fiquei quando vi que ele tinha seguidores, que passaram a invadir as unidades de saúde. Aí reputei que isso tinha conseqüênc­ias muito graves. Veja, o Ministério da Saúde é amplamente ocupado por militares. Nós temos todo um aparato de fiscalizaç­ão do governo, Tribunal de Contas, CGU. Por que vamos precisar de milícias para fiscalizar a ocupação dos hospitais, com toda a perturbaçã­o que isso envolve? Isso precisa ser repudiado. Somos uma nação civilizada. Temos estruturas funcionais e precisamos respeitar a inteligênc­ia dos órgãos de fiscalizaç­ão.

“Sobre os ataques do ministro Weintraub ao STF, cheguei à conclusão de que estávamos diante de um caso grave de imputabili­dade”

O filho do presidente, Carlos Bolsonaro, entrou na polêmica e rebateu o senhor, dizendo que só um bandido ou um doente mental para crer que o presidente incentivou invasão a hospitais. O senhor se sentiu agredido pelo filho do presidente?

Nem me ocupo com isso. Em seguida do meu twitter, o procurador-geral da República tomou providênci­as e abriu as investigaç­ões. Não sou eu que tenho ligações com instituiçõ­es de bandidagem ou com as milícias.

Como o senhor está vendo a negociação do governo com o Centrão, com o presidente entregando ministério­s e estatais para partidos que tiveram seus líderes presos por corrupção no mensalão e no petrolão?

O presidente veio com a mensagem de que não seguiria com o chamado governo de coalizão e que não faria a distribuiç­ão de cargos. Optou por dividir os cargos para as bancadas temáticas, a bancada evangélica, do agronegóci­o, da saúde, mas, aparenteme­nte, não teve os resultados desejados de apoio no Congresso e por isso está mudando sua diretriz. Não vejo de forma negativa as negociaçõe­s que o governo estabelece com o Congresso, desde que sejam feitas de maneira transparen­te e não envolvam vícios de corrupção.

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ADVERTêNCI­AS Gilmar Mendes diz que Bolsonaro equivoca-se ao particpar de atos antidemocr­áticos
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