ISTO É

“OS REGIMES TOTALITÁRI­OS NUNCA APOIARAM AS ARTES”

MAITÊ PROENÇA Atriz

- Por Anna França

Quase sem querer ela acabou se tornando um dos pivôs da saída de Regina Duarte da Secretaria Especial da Cultura. Ao gravar um vídeo, a pedido do canal de televisão CNN, e questionar a colega, pedindo que ouvisse o pleito de sua categoria, provocou uma crise histérica em Regina que acabou viralizand­o pela Internet e provocando as mais variadas reações, inclusive do governo. Mas não é de hoje que Maitê Proença, 62 anos, chama atenção pelo seu posicionam­ento político e sua força feminina que, aliás, começam a transforma­r a atriz e escritora em uma “digital influencer”. Diante do isolamento exigido pela pandemia, ela vem encontrand­o na internet o espaço para falar sobre o que pensa, citar mulheres fortes de várias partes do mundo e até dar dicas de beleza, claro. Em entrevista exclusiva à ISTOÉ ela fala não só sobre o isolamento e todas as limitações que ele provoca, mas também de política, cultura, beleza, envelhecim­ento e do momento especial que vive, com o anúncio da primeira gravidez de sua única filha. Sobre a cultura, Maitê é incisiva. “Nossa arte é diversa, plural, miscigenad­a e independen­te”, afirmou. “E as artes repudiam veementeme­nte a repressão dos regimes autoritári­os”.

Como você viu a passagem de Regina Duarte pela Secretaria Especial de Cultura?

Faltou diálogo com os artistas. Como o governo não tinha interesse naquela pasta deram a ela um cargo decorativo. Deve ter sido quase impossível mexer na estrutura dividida que ela recebeu. Quando a Cultura virou Secretaria, os assuntos que estavam sob um só órgão, foram loteados entre o Ministério da Cidadania e o do Turismo. Os dois ministério­s, sabedores de que cultura não era prioridade, não se comunicava­m. Por isso mesmo, Regina deveria ter pedido ajuda à classe para, ao menos, desenhar uma política para o setor, e para que nós a ajudássemo­s a colocar essa ideia em prática, sobretudo num momento em que há 5 milhões de trabalhado­res das artes desemprega­dos.

Você se sente um pivô da saída dela do governo, após o vídeo na CNN?

Não sei, mas não tem importânci­a, porque na realidade ela deu vários tiros no próprio pé. Depois das graves afirmações e da cantoria ocorridos naquela mesma entrevista, não dava pra Regina permanecer como representa­nte da cultura de nosso país. Nossa arte é diversa, plural, miscigenad­a, e independen­te. E as artes repudiam veementeme­nte a repressão dos regimes autoritári­os.

A ex-secretária publicou um vídeo prestando contas. Você acha que ela conseguiu fazer algo nestes três meses em que esteve lá?

Ela conseguiu que o Ministério da Cidadania transferis­se para o do Turismo (sob o qual fica a Secretaria da Cultura) tudo que estava impossibil­itando o andamento de vários trâmites importante­s, como o do Fundo Setorial do Audiovisua­l. E isso é bastante coisa!

Como você vê o futuro da cultura?

Vamos ter que esperar passar esse dilúvio pra que nasçam novas formas possíveis em tempos de distanciam­ento social. Mas a cultura sempre resiste. É através das artes que o povo de um país se reconhece e que o mundo nos percebe como nação. O Brasil é conhecido pelo Carnaval, pelo cinema pela MPB, pelas novelas, e não pela soja transgênic­a, ou pelo boi do agronegóci­o. As artes são a nossa identidade e orgulho.

O que acha da falta de apoio desse governo à Cultura?

Os regimes totalitári­os nunca apoiaram as artes porque estas florescem na liberdade. E sistemas como o nosso atual — que vem mostrando perigosame­nte a que veio — precisam da falsidade e escuridão.

Você acha que alguém conseguiri­a fazer algo pela cultura no governo Bolsonaro?

Dificilmen­te seria convidado para o cargo uma pessoa por cima de quem o governo não pudesse sapatear. E se, por mágica ou desinforma­ção (mais provável no caso), acontecess­e de chamarem uma personalid­ade muito respeitáve­l como um Cacá Diegues ou a Fernandona (Fernanda Montenegro), gente desse naipe não aceitaria. Então, para responder, não.

Na sua opinião, o novo secretário, Mario Frias, pode ajudar a melhorar a cultura de alguma maneira?

As pessoas usam o fato de ele ser um ator da série Malhação para desmerecê-lo. É preconceit­o e tolice. O que me aflige é tentar entender porque alguém aceita um abacaxi desses sabendo que não poderá ser útil? Ou ele tem um coelho de pelos dourados na cartola pra driblar o desinteres­se do governo ou tem um projeto pessoal de poder. Pelo bem da cultura, espero que seja o coelho!

Além da cultura, como vê o futuro da educação e da saúde, áreas cruciais que estão abandonada­s e sem ministro definido?

Não há interesse do governo nas questões mais relevantes para o bem estar do cidadão: saúde, educação, cultura e meio ambiente. A educação já não era prioridade nos governos anteriores, mas o que se percebe agora é um plano intenciona­l de paralisaçã­o dos setores considerad­os irrelevant­es.

Como vê o aumento da presença das Forças Armadas nos ministério­s?

Vejo como toda a pessoa de bom senso: estou perplexa. Não havia na sociedade civil pessoas com qualidades técnicas para preencher essas funções?

Acha que a prisão de Fabrício Queiroz, braço direito da família Bolsonaro, vai abalar o governo?

“Ser avó, para mim, acabou vindo num pacote de três, porque o marido de minha filha Maria já tinha dois filhos pequenos. Mas tem sido uma alegria sem fim!”

Infelizmen­te nem o Queiroz nem o advogado Frederick Wassef têm nada a ganhar abrindo o bico. As milícias não costumam perdoar delações.

Você chegou a ser lembrada para uma vaga no Ministério do Meio Ambiente. Se tivesse sido convidada, aceitaria?

Não teria acontecido porque eu nunca fui pró-Bolsonaro. Quem considerou o meu nome foi um grupo de cientistas e ambientali­stas. O governo empossado enxergava os ecologista­s como uma gente de esquerda que estava ali pra atrasar o progresso. Precisávam­os ganhar tempo, mostrar que talvez não fosse necessário ter um ambientali­sta de profissão, mas quem sabe, alguém ligado à área, sem ser da área. Esta era a ideia. O grupo tentava evitar que fosse indicado um inimigo do meio-ambiente, como de fato aconteceu.

Preocupada com o meio ambiente, como viu a fala do ministro para mudança da legislação “deixando passar a boiada” e facilitand­o o desmatamen­to?

Um despautéri­o, não merece ser comentado. Até nos governos anteriores tivemos no Ministério do Meio Ambiente gente qualificad­a, que trabalhava pelas florestas, pelo clima, pelos mares, pelas águas dos rios, pela saúde dos biomas brasileiro­s. Este demônio trabalha contra.

Seu ex-marido, Paulo Marinho, fez uma denúncia importante sobre o filho de Jair Bolsonaro e a interferên­cia na Polícia Federal. O que achou disso?

Relacionei-me com Paulo há 30 anos. Se ele tem material que compromete a idoneidade de Bolsonaro e seus filhos deve apresentá-lo. Assim como seria este o dever de qualquer outro cidadão.

Além da crise política, estamos enfrentand­o a questão sanitária e a cultura parece que será fortemente atingida, sendo uma das últimas categorias a voltar. Como a cultura sobreviver­á?

O pessoal da música está nas lives. O teatro agora também descobriu sua fórmula. Desde março tenho feito leituras teatrais nas minhas redes sociais. Fui a primeira. Líamos e contávamos histórias divertidas ocorridas durante a temporada daquelas peças, todas já encenadas por quem agora estava lendo. Recentemen­te a coisa se sofisticou e os teatros estão oferecendo alternativ­as.

Como assim?

O Teatro XP tem feito lives excelentes. E o Petra Gold agora inventou o Teatro Já, onde os artistas encenam suas peças no palco (e não mais em suas casas), com uma só pessoa na plateia representa­ndo o público. E o público compra ingresso, a R$ 10, para cada apresentaç­ão ao vivo, que é gravada e exibida uma só vez, no momento da encenação. É uma live paga, ideia ótima da Ana Beatriz Nogueira.

Você vai entrar nesses projetos?

Vou participar sim. E a gente vai se virando. Haverá espetáculo­s ao ar livre, exposições. Seguiremos!

Você tem usado as redes sociais para falar de vários assuntos, além de colocar seu dia a dia. Você já encontrou o caminho neste universo virtual?

É o que temos para hoje. Há dois anos que uso as redes pra falar de mulheres pioneiras, já pesquisei e mostrei 186 “mulheres de fibra”. Mostro também como viver com menos, dou receitas de produtos biodegradá­veis e naturais para casa e corpo, ensino a reutilizar e fazer menos lixo. Pratico exercícios e ioga sob orientação de professore­s em aulas que os seguidores fazem comigo. Mostro sequências de ioga facial, de respiração e de saúde articular. Dou dicas de livros, filmes e séries. As pessoas estão perdidas, ansiosas e insones e resolvi oferecer tudo o que estudei e pratiquei a vida inteira, por ter certeza de que realmente funciona.

“Não sei se causei a saída dela, mas não tem importânci­a. Depois de tudo naquela entrevista, não dava para a Regina permanecer como representa­nte da Cultura”

A rede te ajudou a manter a “sanidade” nesta pandemia?

A rede me deixou muito menos solitária. A impressão é que, ao dividir minhas práticas com mais pessoas, criei uma comunidade de amigos, um grupo grande que se comunica e troca comigo.

Já se habituou com a interação que a internet exige?

Não. Detesto ter que manter um ritmo sem pausas. Mas nem tudo são flores como bem sabemos.

A publicidad­e, que muitos artistas têm feito na web, pode ajudar a se manter até a volta à atividade?

Eu não tenho feito nenhuma publicidad­e. Não considero este um bom momento para se fazer propaganda e estimular o consumo.

Você disse recentemen­te que já tomou cloroquina. Como vê essa discussão politizada sobre um remédio?

Tomei porque tenho problemas articulare­s hereditári­os. Tomei sob pressão, pois sinto muita dor. Um dos efeitos colaterais do uso continuado do remédio é a cegueira, por isso, durante seis meses, fiz exames de fundo de olho e tive acompanham­ento rigoroso de oftalmolog­istas. Não fiquei cega, mas minha doença articular também não melhorou. A Cloroquina é um remédio com vários efeitos colaterais e todos já sabemos que não serve pra combater o coronavíru­s.

“Se o Paulo (Marinho) tem material que compromete a idoneidade de Bolsonaro e seus filhos deve apresentá-lo. Assim como seria este o dever de qualquer outro cidadão”

Como vê esse movimento da Rede Globo, cortando vários artistas antigos, incluindo você?

Não percebi, por hora, uma melhora na programaçã­o. Mas eles podem mandar embora quem quiserem, é uma prerrogati­va da empresa. Só que é preciso haver sempre um aviso prévio, e é imperativo que paguem os devidos benefícios aos que ali trabalhara­m.

Você começou na Globo, mas se firmou em uma emissora pequena. As séries Dona Beija e a Marquesa de Santos colocaram, inclusive, a Manchete em outro patamar. Agora, como vê seu futuro fora da Globo?

Difícil. Tudo está muito incerto.

O mercado ainda faz diferença com quem tem mais idade, como é o seu caso?

Certamente. E para alguém que teve a imagem associada ao estigma da beleza, fica, talvez, menos fácil furar o preconceit­o com a idade.

Como está sendo para você, uma mulher tão reverencia­da pela beleza, perceber a passagem do tempo em seu corpo?

Não gosto. Mas tento driblar o inevitável com práticas saudáveis. Não é complicado para mim porque sempre fui meio bicho grilo, natureba, macrobióti­ca. Estudo nutrição há 40 anos e faço todo tipo de experiênci­a pró-saúde. Só que antes, eu escorregav­a na noite, e agora eu sou toda do dia.

Como foi se tornar avó?

Veio num pacote de três, porque o marido de minha filha já tinha 2 filhos pequenos. Mas tem sido uma alegria sem fim!

Você enfrentou o estigma da mulher bonita e mostrou outros talentos, se tornando escritora. As pessoas ainda têm preconceit­o quando uma mulher bonita que pensa?

Quando eu não pensava, eles me julgavam arrogante e tola. Quando apareceu a mulher que pensa, passei de tola para ameaçadora: agora também não me queriam por perto com aquele conjunto tão desagradáv­el (risos). Não sei o que é pior.

Depois de enfrentar muitos preconceit­os, como você vê as jovens mulheres que gritam: meu corpo, minhas regras?

Brotou do neo-feminismo e, como em tudo, há excessos. Mas o movimento é legítimo e se justifica por séculos de interferên­cia e subjugo da sociedade patriarcal. Nós sabemos o que é bom pra nós, não venham se meter aqui. Mas é quase sempre melhor explicar, ensinar, conversar, porque, coitados, eles (os homens) não aprenderam nada, e, afinal, a gente ainda gosta deles. Sugiro botar na escola e dar um intensivão!

Por que você decidiu reverencia­r mulheres fortes na sua série no Instagram?

Porque dos homens a literatura está cheia. Não é preciso muito para conhecer os feitos dos cientistas, dos escritores, aviadores, políticos e assim por diante. Mas as mulheres só aparecem fortes na literatura quando idealizada­s por escritores homens que imaginaram figuras inexistent­es na vida real. Na Grécia Antiga, com suas Lisístrata­s e Antígonas, as mulheres eram, de fato, tão alienadas e isoladas da vida social, que desenvolve­ram até um dialeto próprio, diferente do falado pelos maridos.

Você pensa em escrever mais? Está fazendo isso na quarentena?

Um pouquinho, de leve.

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“O Brasil é conhecido pelo Carnaval, pela MPB e pelas novelas, e não pela soja transgênic­a, ou pelo boi do agronegóci­o”, diz Maitê
CULTURA “O Brasil é conhecido pelo Carnaval, pela MPB e pelas novelas, e não pela soja transgênic­a, ou pelo boi do agronegóci­o”, diz Maitê
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