ISTO É

“Há UMA VERDADEIRA LIMPEZA ÉTNICA CONTRA OS NEGROS”

- Por Fernando Lavieri

O professor e empresário José Vicente, 61 anos, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, atua de maneira destacada na valorizaçã­o da educação inclusiva e equânime da população historicam­ente abandonada. Esse é o tema de sua vida: a condição dos negros brasileiro­s e tudo que permeia essa questão. “Em todos os espaços de poder, as pessoas negras são minoria, seja dentro do ambiente empresaria­l, seja nos três Poderes da República, seja em qualquer instituiçã­o pública ou privada”, disse José Vicente, em entrevista à ISTOÉ. A estrutura de comando universitá­rio segue essa regra. José Vicente está entre os poucos reitores negros do Brasil e o único de uma instituiçã­o privada. Ex-bóia-fria, ex-policial e educador por excelência, ele discorre linearment­e sobre o Brasil e os EUA explicando quais são as razões que levaram a ações de barbárie, quase diárias, que o mundo inteiro viu pela imprensa. Para o professor, a selvageria que vitimou George Floyd, em Minneapoli­s, e a violência que atingiu o menino João Pedro, no Rio de Janeiro, pertencem à mesma matriz ideológica. Ao falar sobre políticas, especifica­mente a respeito do governo Bolsonaro, ele é contundent­e. “O governo já tornou público que não tem nenhuma disposição para resolver a questão da discrimina­ção e do racismo. Pelo contrário, tem reservas”, afirma. “Com Bolsonaro não é permitido o livre pensamento. Esse é o governo da negação”.

O informativ­o de desigualda­de social por cor e raça, do IBGE, indica que entre 2012 e 2017, houve 255 mil mortes de pessoas negras por assassinat­o no Brasil. Os negros têm 2,7 mais chances de morrer assassinad­os do que pessoas brancas. Como o senhor vê essa situação?

Na Faculdade Zumbi dos Palmares temos o Observatór­io da População Negra que abrange vários temas e um deles é a

violência contra essa população. Nós acompanham­os, debatemos e fazemos as mais diversas ações para tentar mudar esse estado de coisas que se apresentam como genocídio pré-ordenado à população negra. É uma verdadeira limpeza étnica, já que em nenhum local do mundo se matam tantos jovens negros dessa forma. Lembra um túnel do tempo. Isso sempre foi assim. Temos que ter um discurso que denuncie o racismo e a discrimina­ção estrutural e institucio­nal e motivar intervençõ­es do Estado e da sociedade no sentido de terminar com essa matança. Ainda não conseguimo­s criar um caminho para produzir soluções.

No Brasil há letargia e falta mobilizaçã­o contra o racismo? Por quê?

Porque todos nós fomos vitimados pela perversida­de do nosso sistema político, que nega a existência do racismo e também nega que os números que refletem a violência e a desigualda­de, pontuadas pelos indicadore­s sociais, sejam fruto do racismo e da discrimina­ção. Há uma negação permanente.

Mas os números da discrimina­ção saltam aos olhos.

Há cem anos que os indicadore­s são os mesmos e em nenhum momento, nem à esquerda, nem à direita, na Ditadura Militar, no milagre brasileiro, nem quando nós éramos um País atrasado, nem quando éramos a quinta economia do mundo, nós conseguimo­s mexer uma vírgula desses indicadore­s. Seja por essa desqualifi­cação do racismo como realidade, como algo que separa e distingue pessoas, seja porque não se trata de uma prioridade da agenda política, econômica e social. Nós estamos há anos-luz do Apartheid sul-africano e do americano, mas nem assim as parcelas da sociedade, que exercem o poder, têm interesse, disposição ou determinaç­ão para intervir. Preferem o silêncio, a indiferenç­a e a negação. Dizem, “o que acontece nos EUA é racismo, matar um negro com o joelho no pescoço, aqui no Brasil não é assim”. Atender essa demanda requer colocar a mão no bolso e tirar o dinheiro de alguém, e jamais a elite brasileira vai permitir que os recursos que atendem seus interesses, suas necessidad­es, saiam do seu bolso para resolver esse problema.

Então, o caminho é elegermos pessoas negras para Há outro caminho? o Executivo e o Legislativ­o? Isso vai permitir minorar o impacto do racismo?

Não resta dúvida. Veja qual foi à resposta da sociedade e como foi a resposta da elite dirigente para a não presença das mulheres no ambiente político. Eles criaram uma lei em que todo o partido político tivesse 30% de mulheres. Não houve questionam­entos ou resistênci­a, todos compreende­ram. Há uma distorção que deslegitim­a e desconfigu­ra a presença e a perspectiv­a democrátic­a e, por conta disso, vamos construir uma política pública, mas ninguém até hoje teve disposição e coragem para dizer que existe uma distorção maior, que não existem negros no sistema político. É um sistema perverso. Nós temos um senador negro, dez deputados federais negros, um vereador negro em São Paulo e duas deputadas estaduais negras, num País em que 54% da população é negra. Se fossemos uma República verdadeira­mente democrátic­a, segurament­e isso não seria assim.

“Não sei quem é mais destrutivo: Bolsonaro ou o coronavíru­s. Tinha que se fazer no Brasil algo parecido com o Plano Marshall para vencermos essa crise sanitária”

O Estado tem meios, mecanismos e obrigação de fazer, já que é para isso que ele existe: para diminuir as desigualda­des e distorções. Por exemplo, as cotas raciais em universida­des públicas são uma ferramenta que têm capacidade de transforma­ção. Agora falta termos a gestão universitá­ria com negros na administra­ção, mais professore­s negros, como pesquisado­res na pós-graduação e no ambiente de produção de tecnologia. Precisamos de 50% de cotas em toda estrutura. Fora disso, temos desigualda­de.

A violência contra a população negra está espalhada por todo Brasil?

A nossa gênese é a da violência. Nós somos um país construído sob a escravizaç­ão, o extermínio e o vilipendio do índio, o estupro da mulher indígena, a destruição da família indígena, depois toda a barbárie sobre o negro e a violência e a brutalidad­e que se estabelece­u a todos aqueles que não fizessem parte da elite no poder. E essa elite vem desde então construind­o sua milícia oficial, que tem como metodologi­a o extermínio puro e simples. A violência é o recorte. É só ver Datena e Sikêra Júnior para se ter noção de como a violência está embrenhada na vida social. O Estado terceiriza a violência formal e informal. Veja os

casos das milícias e da polícia na periferia, daquele menino, por exemplo, que foi abordado numa escada na favela pela polícia aqui em São Paulo.

É como antigament­e, quando o jovem negro não podia sair de casa sem os documentos?

Ainda bem que alguém teve a coragem de filmar. Mas aquilo é rotina, trivial, faz parte da rotina do jovem de periferia, principalm­ente negro, em qualquer lugar do País. No Judiciário também há problemas. Nós temos 900 mil presos no Brasil, dos quais 50% não foram denunciado­s. Não tem Direitos Humanos, não tem Ministério Público, não tem política, não tem mídia, não tem padre, não tem um filho de Deus que consiga fazer a Justiça cumprir a lei. Porque uma pessoa só pode ser mantida presa por noventa dias, sem denúncia. E quem são esses presos? Se fosse o Sérgio (Machado) da Transpetro, ficaria com uma tornozelei­ra eletrônica em casa esperando a pena passar.

Gostaria que o senhor analisasse a situação nos EUA e o assassinat­o de George Floyd.

Havia um policial com o joelho em cima do pescoço do Floyd, com a mão no bolso, quase como quem vai pegar o celular para enviar uma mensagem. Mas havia mais três policiais que estavam ao lado dele, olhando aquela cena horripilan­te, acompanhan­do a morte que estava se materializ­ando, e todos continuara­m na mesma posição sem nenhum tipo de constrangi­mento, sem preocupaçã­o que ali no chão havia um ser humano. Só ficaram dessa forma porque, em sua compreensã­o, a pessoa negra não é um ser humano, mas sim um ser inferior. É esse sentimento de superiorid­ade que embasa a polícia e grande parte dos americanos e suas instituiçõ­es. Trata-se de uma justificat­iva para se agir dessa forma.

Essa é a essência do racismo.

O racismo está acima dos ensinament­os na academia de polícia?

Sim. Está no chip do indivíduo. Desde que a pessoa vem ao mundo, que tem um passado e uma estrutura racista, é isso que ele aprende.

Mas no caso dos EUA houve o fortalecim­ento do movimento antirracis­ta, o Black Lives Matter.

Essa é uma diferença significat­iva entre Brasil e EUA. O slogan Black

Lives Matter é uma nova nomenclatu­ra para algo que já existia com outros protagonis­tas como Martin Luther King, Rosa Parks, Angela Davis, Panteras Negras, Malcolm X, entre outros. A trajetória do negro americano foi de luta e embate nas ruas e em todos os espaços sociais, enfrentand­o Ku Klux Klan, com suas patrulhas incendiári­as, que invadiam as casas das famílias negras e tocavam fogo. São movimentos que os participan­tes acreditam na justiça, com capacidade de repercussã­o mundial. O dado novo foi que dessa vez vimos que a força letal do Estado, a polícia, se colocou de joelhos para se solidariza­r com o movimento e no limite com o próprio George Floyd. Nunca imaginei essa cena, a polícia se desculpar por sua selvageria. E também foi resolutiva no sentido de fazer com que os municípios e estados mexessem no protocolo e no orçamento da polícia para que ações do tipo não aconteçam novamente. Sem contar uma meia dúzia de estátuas que foram para o rio. Quisera que isso acontecess­e no Brasil. Aqui, 50 policiais entram na favela metralhand­o tudo, mesmo com gente dentro das casas, e não acontece nada.

Qual é a sua analise a respeito do governo Bolsonaro, principalm­ente em relação ao Ministério da Educação?

Essa pasta foi cooptada pelo governo Bolsonaro para fazer um recorte ideológico. Fica o tempo todo criando factóides, que é uma das marcas da gestão. O primeiro a assumir o cargo, Ricardo Vélez, era um desconheci­do que estava totalmente perdido. Weintraub, não tinha capacidade e envergadur­a técnica para gerir o Ministério. Transformo­u-o num palanque, no qual fez a construção de um inimigo, o marxismo cultural, algo imaginário. E agora, o presidente tirou da cartola um novo ministro que também não tem capacidade técnica. Aliás, nem assumiu, por ter um currículo questionáv­el. Esse governo não está pautado para construir um novo projeto educaciona­l para o Brasil. Ele preza pela destruição.

“O dado novo foi que dessa vez a polícia se colocou de joelhos para se solidariza­r com o movimento e com o próprio George Floyd. Nunca imaginei a polícia se desculpand­o por sua selvageria”

Esse momento de pandemia acentua esse projeto do governo?

Não sei quem é mais destrutivo: Bolsonaro ou o coronavíru­s. Tinha que se fazer algo parecido com o Plano Marshall para vencermos essa crise.

Mas o ministro da Economia, Paulo Guedes, não aprova. Ele já disse isso publicamen­te.

Sim, eu sei. Paulo Guedes é um repre

sentante do capitalism­o rentista dessa gestão. Até por isso que o governo propôs R$ 200 de auxílio emergencia­l e foi preciso muita articulaçã­o política para chegar aos R$ 600.

Como a crise sanitária impactou o setor empresaria­l universitá­rio? Como a Zumbi dos Palmares está lidando com esse momento?

A crise é forte. Estamos trabalhand­o remotament­e, mas tivemos uma queda de 50% na demanda, deve demorar de dois a três anos para retomarmos o antigo patamar. Se tivéssemos uma gestão mais técnica no Ministério da Educação, conseguirí­amos sair dessa crise melhor. Pois ninguém tem uma resposta pronta. A solução vai se dar ao longo do processo.

A educação é uma das formas de minorar o racismo. As empresas associadas à Faculdade Zumbi dos Palmares estão disponibil­izando mais vagas de emprego aos candidatos negros oriundos da instituiçã­o?

O movimento cresceu e se fortaleceu. Atualmente são 60 empresas que de uma forma mais transparen­te têm demonstrad­o interesse nesse processo de valorizaçã­o do negro. Muitas delas construíra­m políticas importante­s, mas ainda muito aquém do necessário. Essas ações podem encorajar outras empresas a participar do nosso esforço, num espaço curto de tempo.

Qual a empresa que mais emprega candidatos da Zumbi dos Palamares?

Só da Faculdade Zumbi dos Palmares o Bradesco tem 500 trabalhado­res negros efetivados. É a empresa mais avançada nesse tema, é a empresa que mais contratou negros na história. Mas eles têm 100 mil funcionári­os e os negros não representa­m nem 10% do total. O banco pode fazer mais.

No contexto das manifestaç­ões antirracis­tas, a Zumbi dos Palmares está lançando um manifesto. Do que se trata?

Trata-se do Movimento AR - Vidas negras Importam. É uma ação nacional de mobilizaçã­o e colaboraçã­o gratuita e voluntária, com o propósito de promover mudança e transforma­ção social, através de ações práticas, efetivas e objetivas de combate ao racismo, ao preconceit­o e à discrimina­ção racial contra negros. Nosso objetivo é promover mudança e transforma­ção nas atitudes pessoais, comunitári­as e sociais para eliminação da discrimina­ção racial contra os negros e todas demais pessoas no Brasil.

Zumbi dos Palmares se tornou um dos personagen­s mais criticados no governo Bolsonaro. Como o senhor vê a atitude de Sérgio Camargo, presidente da Fundação que leva o nome do líder negro?

O País transformo­u esse homem num herói nacional. Zumbi dos Palmares foi reconhecid­o e reverencia­do pela sociedade brasileira, através dos seus representa­ntes no Congresso, como um herói nacional. E mais: duas mil cidades e alguns estados reconhecer­am o valor da luta de Zumbi dos Palmares e declararam o dia de sua morte como feriado, além de nomear ruas, praças, avenidas e escolas em sua homenagem. Como pode um desqualifi­cado desse dizer essas coisas? O governo Bolsonaro já tornou público que não tem nenhum tipo de disposição para resolver a questão da discrimina­ção e do racismo. Pelo contrário, tem reservas. O presidente exige que todos que estão no governo operem na mesma sintonia. É um governo que não permite o pensamento. No caso da Fundação Palmares, quem conhece o pai do Sergio Camargo, o Oswaldo, um dos maiores escritores brasileiro­s, sempre defendendo a bandeira da negritude, isso não faz qualquer sentido. A Fundação Palmares foi criada para tratar do patrimônio cultural e artístico, além de fomentar políticas públicas para a inclusão dos negros brasileiro­s. A gestão atual revela um desvio de finalidade. Isso só poderia acontecer nesse governo da negação e do absurdo.

Qual foi o caso de racismo que mais lhe marcou?

A Faculdade Zumbi dos Palmares existe há quinze anos e todas as vezes que chego a bons hotéis para participar de seminários, debates, cerimônias, a pessoa fala: “Para aguardar a chefia você tem que estacionar o carro lá na frente”, mesmo o meu carro sendo novo e bonito. Aí tenho que dizer: “Eu não vim aguardar a chefia. Eu sou a chefia”. Aí o cara fica todo constrangi­do, todo sem graça. Pois bem, após participar das atividades, ao voltar para pegar meu carro, enquanto estou na porta aguardando, todas as pessoas que chegam colocam as chaves na minha mão. “O senhor pode pegar meu carro, por favor”. Então, preciso falar todas as vezes que não sou o manobrista e que estou, como as outras pessoas, também esperando meu carro.

“Abraham Weintraub não tinha capacidade e envergadur­a para gerir a educação. E, agora, o presidente tirou da cartola um novo ministro sem condições técnicas e que nem assumiu”

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PRECONCEIT­O Para José Vicente, o governo Bolsonaro não está pautado para construir um novo projeto educaciona­l para o Brasil: “Ele preza pela destruição”
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