ISTO É

À ESPERA DOS BáRBAROS

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Oromance de J. M. Coetzee, que dá título a este texto e acaba de ganhar uma adaptação para o cinema, aborda um funcionári­o impoluto nos confins do império que testemunha a brutalidad­e das forças policiais contra a ameaça real e imaginária de invasores. Trata-se de uma parábola política sobre a paranoia como instrument­o de dominação, usada, no caso do prêmio Nobel sul-africano, para abordar a segregação racista e o totalitari­smo. O conceito já inspirou grandes autores como Dino Buzzati (“O Deserto dos Tártaros”), Kafka (“A Muralha da China”) e, claro, Konstantin­os Kaváfis, cujo poema homônimo serviu de inspiração a Coetzee.

Empresto essa poderosa imagem literária para analisar o grande império do nosso tempo, os EUA. O país já usou a ameaça de invasão comunista para perseguir políticos e artistas no macarthism­o. Após o 11 de Setembro, exportou a perseguiçã­o, incluindo a tortura, para as franjas do mundo civilizado, com o intuito de proteger os valores americanos. Atualmente, Donald Trump persegue imigrantes em geral, e latinos, mexicanos e brasileiro­s em particular, como forma de tornar a América “grande novamente” e restabelec­er a pureza e a grandeza da nação (ainda que ele mesmo seja descendent­e de um imigrante alemão e acusado de enriquecim­ento com negócios imobiliári­os suspeitos). Também tacha as manifestaç­ões antirracis­tas e contra a violência policial de antiameric­anas. Usa o discurso do endurecime­nto do aparato de segurança como combustíve­l para sua campanha eleitoral.

No Brasil, o perigo comunista também já justificou duas ditaduras no século XX, e uma suposta ameaça de dominação ideológica marxista motivou os ideólogos obtusos do atual mandatário a desmantela­r a educação, ameaçar a democracia, demonizar a ciência e devastar as florestas. Num país com índices de violência espantosos, o presidente defende o armamento de todos como forma de defesa da liberdade, apropriand­o-se da filosofia política liberal para o uso

Nos EUA e no Brasil, Trump e Bolsonaro promovem medo e ódio como forma de dominação política, usando a força enquanto pretexto para combater ameaças

populista e ditatorial. Nem a ficção poderia criar uma narrativa tão trágica e rasteira. EUA e Brasil hoje são governados por autocratas anacrônico­s. Trump e Bolsonaro instilam medo e ódio como forma de dominação política, usando a força como pretexto para combater invasões bárbaras, metafórica­s ou não. A ascensão dos dois foi turbinada pelo enfraqueci­mento da imprensa e pela explosão das redes sociais, que desaguaram nas fake news. Nos dois países, praticando arbitrarie­dade e violência, os bárbaros já estão no comando.

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