ISTO É

“AS MILíCIAS DIGITAIS ACHAM QUE A INTERNET é TERRA DE NINGUéM”

- Por Germano Oliveira

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, diz ter provas concretas para a punição dos integrante­s das milícias digitais que utilizam as redes sociais para cometer uma série de crimes, que vão do enriquecim­ento ilícito e lavagem de dinheiro ao ataque à reputação de seus inimigos políticos. Ele está convencido de que esses grupos têm por objetivo “abalar as instituiçõ­es e a estrutura democrátic­a”, afirmando que se o Supremo não tivesse agido com firmeza, dentro do que prevê a Constituiç­ão, por volta do final de maio e início de junho, “nós poderíamos ter tido resultados muito ruins para a estabilida­de democrátic­a”. Responsáve­l pelos inquéritos das fake news e dos atos antidemocr­áticos conduzidos pela Corte, com a participaç­ão da PGR e da PF, o ministro coordena 82 inquéritos contra os membros dessas “verdadeira­s organizaçõ­es criminosas”. Para Moraes, “as milícias digitais acham que podem tudo e que a Internet é terra de ninguém e não é”, acrescenta­ndo: “As redes sociais não são um mar de impunidade”. O magistrado adianta com exclusivid­ade à ISTOÉ que deve concluir essas investigaç­ões até o final de novembro.

O sr. entende que a ação firme do STF nos inquéritos que investigam as fake news e os ataques às instituiçõ­es foi responsáve­l por dar um freio nas ameaças que vinham se intensific­ando no País?

O STF teve a oportunida­de de antecipar um pouco a discussão que estourou no primeiro semestre deste ano. Em março do ano passado, o então presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, instaurou o inquérito das fake news, que acabou ficando sob minha relatoria. Esse inquérito foi instaurado porque já estávamos percebendo uma série de ataques verbais, ameaças de morte a ministros e seus familiares, não só nas redes, mas também na Deep Web, ou seja, o que tem de pior na Internet.

Naquele momento, as pessoas entenderam que ele se voltaria para investigar críticas. Obviamente que as críticas fazem parte da democracia.

Não eram críticas, eram ameaças?

Se fôssemos investigar críticas, não seria constituci­onal. E seria uma perda de tempo. As pessoas podem se expressar como quiserem em relação, principalm­ente, aos órgãos públicos. Liberdade de expressão e liberdade de crítica, porém, não se confundem com licença para agressão. E era isso que vinha ocorrendo de maneira profission­al. O inquérito foi iniciado, e a partir do cruzamento de dados, feito pelos peritos que acompanham os trabalhos, pudemos perceber que havia todo um procedimen­to, uma metodologi­a, não só para ofender de forma criminosa, ameaçar pessoas, mas também para desestabil­izar as instituiçõ­es, como foi o caso do STF. Na sequência, houve a abertura de um segundo inquérito, a pedido do Procurador-Geral da República, sobre as manifestaç­ões e atos antidemocr­áticos, e que foi distribuíd­o também para mim. Essa segunda investigaç­ão tem ligação umbilical com a primeira. O procedimen­to é muito semelhante, o financiame­nto das ações é parecido e a finalidade é idêntica, com a tentativa de abalar as instituiçõ­es e a estrutura democrátic­a.

“Eles pretendiam abalar e atacar o Poder Judiciário como instituiçã­o, e não com meras críticas. Foram ataques com rojões e cruzes na porta do STF”

Esses grupos são articulado­s entre si?

Eu não tenho dúvida que são milícias digitais e verdadeira­s organizaçõ­es criminosas. Elas têm vários núcleos: o de financiame­nto das ações, de produção, de divulgação das notícias falsas, o núcleo de apoio e o núcleo político. Ou seja, ao mesmo tempo em que há um profission­alismo na produção de conteúdo criminoso, de ataque às instituiçõ­es, há pessoas investigad­as, que exploram essa estrutura economicam­ente, monetizand­o essa rede. E há pessoas que a exploram politicame­nte, não para fazer propaganda ou publicidad­e dos seus feitos, mas para destruir os seus inimigos políticos. Eles não são tratados como adversário­s, mas como inimigos.

As investigaç­ões já identifica­ram os chefes dos grupos?

A partir das duas grandes operações que já foram feitas em maio e junho, estamos analisando o material apreendido, que é muito grande. Estamos cruzando esses dados com o resultado das quebras de sigilos bancários e fiscais, além de uma série de outros documentos já solicitado­s. Temos que analisar tudo detalhadam­ente, pois, obviamente, não podemos repetir o que essas pessoas fazem. Ou seja, não podemos divulgar nada sem ter a comprovaçã­o de tudo. Ao final das apurações da PF, com diligência­s pedidas pelo MPF e que estão sendo realizadas, vamos mostrar que as redes sociais não são um mar de impunidade. Muitas pessoas, incentivad­as por essas milícias digitais, acham que a Internet é terra de ninguém e que a lei não se aplica nas redes sociais. Acabaram incentivan­do outras pessoas a se unirem a elas de forma radical, com discurso de ódio, discursos criminosos e, mais ainda, na tentativa de abalar estruturas da democracia.

O que eles pretendiam?

Abalar e atacar, de um lado, o Poder Judiciário como instituiçã­o, e não com meras críticas. Foram ataques com rojões e cruzes na porta do STF. Fizeram manifestaç­ões defronte minha casa em São Paulo e contra outros ministros também. Mas o STF estava preparado para reagir, porque já havíamos antecipado o surgimento dessas ameaças e dado início às investigaç­ões em março. E as apurações continuam sendo realizadas, porque elas são uma garantia da estabilida­de democrátic­a. Eu volto a insistir: o STF é defensor da liberdade de expressão, da liberdade de reunião, mas a Constituiç­ão não admite o discurso de ódio, a utilização de uma suposta liberdade de expressão, como escudo protetivo para a prática de inúmeros crimes, como a ofensa e agressões à honra, à dignidade alheia, com o objetivo de ganhar dinheiro e fazer política. Isso não é possível.

O inquérito das Fakes News identifico­u o uso de cursos, lives e sites de crowdfundi­ng nesse esquema criminoso. Como eles funcionam?

Estamos aprofundan­do as investigaç­ões e cruzando os dados à medida que as informaçõe­s vão chegando. Há mais do que indícios. Há provas de que vem ocorrendo uma grande lavagem de dinheiro e sonegação fiscal nas redes sociais, seja por meio de cursos, seja por doações e lives pagas. Há pessoas que se identifica­m como jornalista­s, mas são pseudo jornalista­s e que vêm utilizando as redes para ganhar verdadeira­s fortunas para lavar dinheiro e para praticar crimes. Eu venho reiteradam­ente dizendo que é preciso separar o joio do trigo. Por que a imprensa tradiciona­l, que também tem seus sites, blogs e utiliza as redes, pode ser responsabi­lizada, mas essas milícias digitais não podem? Elas se escondem atrás da responsabi­lidade penal e civil. Temos que garantir o que a Constituiç­ão consagra: liberdade com responsabi­lidade. As pessoas têm total liberdade

de manifestaç­ão e de expressão. Não cabe censura prévia e a Constituiç­ão não autoriza. Só que as pessoas podem ser responsabi­lizadas a posteriori, seja na rede social ou fora dela. É que nas redes sociais se criou um falso entendimen­to de que é um vale tudo. As pessoas pensam que podem fazer o que quiserem. Podem ofender, podem criminosam­ente imputar fatos às pessoas, fazer ameaças graves, como as registrada­s contra ministros do STF, e não acontece nada?

Quando o sr. diz que há uma grande lavagem de dinheiro com esses sites se refere ao enriquecim­ento ilícito ou é para o uso em campanhas eleitorais?

Esse é um dos pontos que ainda estamos aprofundan­do na investigaç­ão. As duas possibilid­ades são viáveis. Uma objetiva o enriquecim­ento desses pseudo jornalista­s, mas há muitas doações que são feitas a esses sites. E da mesma forma que o dinheiro entra, ele some. E isso é preocupant­e, pois pode propiciar um desequilíb­rio nas campanhas eleitorais. Esses sites e links podem simular doações de pessoas físicas que não existem. Ou seja, você simula uma operação e acaba possibilit­ando que determinad­os partidos políticos tenham mais dinheiro para campanhas, desequilib­rando o jogo eleitoral. Estamos aprofundan­do as investigaç­ões para que as conclusões não sejam apenas no sentido punitivist­a. Os que cometeram crimes serão enviados ao MP para que se promovam as ações penais correspond­entes, mas também para auxiliar o Congresso e o TSE para se evitar ataques ao processo eleitoral.

Alguns desses blogueiros deixaram o Brasil, como foi o caso de Allan dos Santos, que está nos EUA, e de lá continuam agindo como agiam aqui...

Essa questão é importante. Quando eu determinei o bloqueio a determinad­os sites e endereços eletrônico­s, houve por parte dessas pessoas a alegação de que eu estaria fazendo censura prévia. Ora, tudo o que foi bloqueado já havia sido divulgado. Então, de prévio não houve nada. Foi tudo a posteriori. E foram bloqueados os que estavam sendo instrument­o de crime. Eu faço sempre um paralelo com o sigilo bancário. Quando a Justiça determina o bloqueio de uma conta, ela não pode mais ser utilizada, porque é o instrument­o do crime e precisa se apurar tudo o que ocorreu com ela, dinheiro que entrou, que saiu, saques. É a mesma coisa com os sites e perfis bloqueados. São instrument­os de crime. Nada impede, como não se impediu, que essas pessoas abrissem novos perfis e novos endereços. Obviamente que isso não pode ser proibido. Proibir que alguém abra um perfil seria censura prévia. E se essas pessoas continuare­m a cometer crimes? Ora, serão responsabi­lizadas a posteriori. Agora, se pretender uma fraude para burlar medidas judiciais, outras medidas devem ser tomadas. O Poder Judiciário tem o dever de garantir a efetividad­e de suas decisões.

As empresas provedoras que divulgam esses conteúdos criminosos também podem ser responsabi­lizadas?

Entendo que toda a modernidad­e acaba criando vácuos legais. A legislação acaba tendo que se adaptar. Quando me formei, há 30 anos, jamais imaginaria que hoje eu poderia conversar com você pelo computador. As empresas que recebem as informaçõe­s e as divulgam, ganhando milhões, são classifica­das como empresas de tecnologia e não como empresas de mídia. Mas, verdadeira­mente, elas são empresas de mídia. Elas monetizam a publicidad­e a partir das notícias que veiculam. Eu já tive três reuniões com o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, e com o relator da Lei das Fake News na Câmara, deputado Orlando Silva, sugerindo algumas medidas que a parte técnica do STF encaminhou. A sugestão é que essas empresas de tecnologia também sejam classifica­das como empresas de mídia, para que tenham a mesma responsabi­lidade legal sobre o que publicam. Não há censura, mas elas têm responsabi­lidade ética e social.

Em algum momento a democracia correu risco?

Entendi que no final de maio e começo de junho nós poderíamos ter uma grave fase de instabilid­ade política, que não seria boa para ninguém, nem para a sociedade e nem para as instituiçõ­es democrátic­as. Cada uma das instituiçõ­es tem que atuar dentro do que a Constituiç­ão estabelece. O sistema de freios e contrapeso­s e a atuação do Supremo nos momentos de crise garantiram a tranqüilid­ade e a normalidad­e. Há três meses estávamos numa crise muito grave. Desde então, não houve a necessidad­e de nenhuma medida extraordin­ária. Bastou a adoção dos freios e contrapeso­s que a Constituiç­ão autoriza. Muitos desses grupos imitam outros movimentos de extrema-direita do Leste Europeu, mas, tirando a questão ideológica, não se verifica ligação com grupos paramilita­res. O que há é uma estrutura, uma ideologia desvirtuad­a, e um desrespeit­o intenso dessas pessoas pela democracia.

“Há provas de que vem ocorrendo uma grande lavagem de dinheiro e sonegação fiscal nas redes sociais, seja por meio de cursos, doações ou lives pagas”

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MILÍCIAS DIGITAIS Alexandre de Moraes enfrentou o crime organizado nas redes sociais e salvou as instituiçõ­es de ataques
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