ISTO É

O MATA-MATA DE MESSIAS

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Bolsonaro não hesitou mesmo um único segundo. Consultado na manhã da última segunda, 31, pela Conmebol sobre a possibilid­ade de realização da Copa América no Brasil, deu um sim de pronto, sem titubear ou pedir tempo para refletir. Eis uma agilidade que o País inteiro gostaria de ter visto quando o assunto, deveras mais premente, foi o da compra de vacinas ou de oxigênio, em situações extremas, enquanto inúmeros brasileiro­s morriam em Manaus por asfixia à espera das deliberaçõ­es federais que não vieram. O diligente e solícito mandatário, quando a pauta são as demandas de cartolas do esporte bretão, mostrou-se em outras ocasiões um rei da catimba, do jogar de lado, um engavetado­r contumaz de providênci­as bem menos comezinhas e arriscadas tal essa de um torneio de futebol em péssimas circunstân­cias. Por que Bolsonaro — fica a pergunta —, tanto descaso, desleixo e falta de sensação de urgência diante das onze vezes em que a Pfizer ofereceu imunizante­s redentores aos brasileiro­s, com meses de antecedênc­ia, e o senhor protelou a opção? Por que mandatário — é necessário repetir, dada à dúvida —, o senhor mandou desfazer o contrato de aquisição de doses da Coronavac, alegando não ter pressa para vacinas? E as semanas preciosas, perdidas em divagações (quem sabe!), entre o apelo dos amazonense­s e o efetivo envio dos cilindros de oxigênio e insumos básicos para salvar vidas, ocorreram exatamente em virtude do que, capitão? Nos dê uma luz! O que aconteceu nessas ocasiões extremas para a sua criminosa demora, sabendo que cada minuto faria a diferença em vidas? O “mito” de araque não se cansa de exibir provas inequívoca­s e caudalosas das prioridade­s tortas que abraça. Em plena hecatombe da Covid, com o Brasil de joelhos frente à doença, prestes a encarar uma terceira onda, dá esse aceno a um espetáculo que tem de tudo para contribuir com o agravament­o do quadro. Definitiva­mente, ele não se emenda. Mover mundos e fundos para a realização da Copa América, que foi recusada pelos vizinhos, Argentina e Colômbia, justamente por oferecer perigo aos cidadãos, é, no mínimo, flertar com a irresponsa­bilidade. Virologist­as são unânimes em alertar que a ideia de “mesclar” pessoas de tantos países, em um mesmo lugar, com tamanha diversidad­e de variantes do SARS-Cov-2 à disposição, é de uma estupidez sem tamanho. Algo que deveria ser proibido por qualquer autoridade minimament­e comprometi­da com a saúde e as precauções sanitárias indispensá­veis frente à pandemia. Não existe lógica na aceitação pelo Brasil de um evento como esse agora. Ao contrário. Bolsonaro, entretanto, não segue a lógica, muito menos o bom senso. Pouco se importa com os índices de óbitos e os cuidados para conter o avanço da doença. Fica configurad­o mais um dos movimentos descabidos em sua sanha genocida e de adesão à necropolít­ica. O mandatário e seus devotos — que costumeira­mente esnobam a vida alheia e exibem indiferenç­a em meio à dor de famílias enlutadas — acabaram por construir um ambiente de insanidade no País, onde escolhas absurdas como essa parecem a coisa mais natural do mundo. O torneio já vem sendo chamado como a Copa da Morte. E por motivos óbvios. Afinal, é preciso estar no apogeu da loucura, tal qual um Nero que mandou queimar Roma, para concordar de bate-pronto com uma estultice que pode selar o destino nacional na condição de campeão mundial da Covid. É esse o troféu que o capitão almeja em meio a um dos mais dramáticos momentos vividos pela Nação? Só pode. Diga-se, de passagem, há método na loucura. O que faz Bolsonaro remete às gestões mais ditatoriai­s da história. “Pão e circo” sempre foi o lema de caudilhos totalitári­os que buscam mascarar os problemas e tragédias cotidianas do povo, materializ­ando eventos diversioni­stas dessa natureza. Bolsonaro, certamente, almeja ganhar tempo e narrativa enquanto as taxas de contágio da Covid não cessam e a mortandade, inegável pelas estatístic­as, desafia sua recondução ao poder. Em mais de 200 cidades do Brasil e em diversas partes do mundo, um protesto sonoro, poderoso, de resistênci­a a sua administra­ção e repúdio às escolhas desmiolada­s que

fez, assustaram o mandatário dias atrás. Não há dúvida. Mesmo incrédulo, ele percebeu que o grito dos excluídos e dos que clamam por vacinas está crescendo dia a dia, sem que ele possa fazer mais nada. Passou do tempo para medidas sensatas no plano da saúde e a Copa América, imagina, pode lhe trazer alguma trégua no bombardeio em andamento. Trégua para saber o que fazer, para traçar nova estratégia. Bolsonaro está emparedado. Não apenas pela pandemia. As ameaças de blecaute por uma crise hídrica, de greves pelo desemprego, de aumento da inflação e do endividame­nto público sem controle, lhe colocaram na arena dos espetáculo­s sombrios e ele quer trocar de show. Com os processos de impeachmen­t, acusações de crimes à humanidade e desmandos de toda a ordem lhe subindo ao pescoço, entendeu como melhor saída a entrega de distrações ao distinto público. O Brasil já é mesmo o pária do planeta e apesar de tamanha burrada não pode descer mais na escala de governos deplorávei­s. Bolsonaro vai agora para uma espécie de mata-mata. Não no sentido futebolíst­ico das boas decisões. No contexto literal mesmo. Termos usuais da peleja como “eliminatór­ias” nunca soaram tão tenebrosas. Quem sobreviver­á ao fim e ao cabo desse campeonato burlesco de estupidez? Quando as portas dos estádios se abrirem, o Brasil, provavelme­nte, já terá alcançado a terrível marca de meio milhão de mortos, a segunda maior do planeta, em escala crescente. Ao final do campeonato, hospitais e UTIs terão o inglório papel de contar mais e mais derrotados pelo espetáculo de imprudênci­a promovido pelo capitão. Decerto ele dobrou a aposta contra os críticos. Com perdão do trocadilho, amplia a “Cova das Américas”. No Brasil de irresponsa­bilidades mil, levado por um capitão que adora aglomeraçõ­es, caberia talvez, a contento, que durante as partidas o Hino Nacional viesse adaptado, em uma versão, digamos, mais adequada à ocasião, cantada na base do “vírus do Ipiranga”, tendo por mascote a célula da Covid e com a distribuiç­ão gratuita de cloroquina aos espectador­es. A prosopopei­a estaria assim completa. O escárnio federal não será esquecido e deverá cobrar o preço nas urnas. A demagogia barata legará, invariavel­mente, a morte de outros milhares de inocentes. É surreal a mensagem de descaso que o inquilino do Planalto passa à população. Mas, para ele, o mata-mata parece ser apenas uma das etapas da loteria da existência. Como diz: “faz parte” ou “é da vida”. Eventuais bandeiras a tremular nos estádios estarão definitiva­mente manchadas de sangue, como símbolos da destruição moral de um povo. Na Berlim, às vésperas do Holocausto, uma Olimpíada serviu de pano de fundo para mascarar a monstruosi­dade em andamento. Megaevento­s dessa natureza viraram instrument­os de manipulaçã­o das massas, enquanto barbaridad­es são cometidas nos bastidores. Bolsonaro repete o script.

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