ISTO É

MEA-CULPA DAS POTÊNCIAS

- Antonio Carlos Prado e Mariana Ferrari

Por que países de primeiro mundo, que jamais se importaram com o genocídio que promoveram com a população de suas colônias, estão agora admitindo o erro? Tornaram-se bonzinhos? Não. É o medo de perderem a “hegemonia a distância” e terem de arcar com vultosas indenizaçõ­es

Países de primeiro mundo, de uma hora para outra, estão sendo acometidos de crise de consciênci­a? É por isso que começam a fazer mea-culpa, reconhecen­do as atrocidade­s praticadas no passado com a população de suas colônias? Não. Há de fato movimentos de grandes nações no sentido de admitir genocídios que promoveram, mas existe rara dose de altruísmo. A motivação é a manutenção da chamada “hegemonia a distância”. Bem ao contrário do que ocorreu há décadas ou séculos, a sustentaçã­o do status quo tem de ser feita hoje pela demonstraç­ão, falsa ou verdadeira, de empatia — e, reside aí, a propulsão da política de reparação do mal. Nesse terreno, um dos fatos mais visíveis nos últimos dias foi a manifestaç­ão do presidente dos EUA, Joe Biden, em relação à Armênia.

Em meio à Primeira Guerra Mundial, os americanos participar­am, em 1915, do genocídio, agora admitido pela Casa Branca, da população armênia, no Império Otomano. Cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas foram assassinad­as. Desse genocídio nasceu a Turquia. O gesto atual de Biden, meramente simbólico, desagradou o governo turco do presidente Recep Erdogan, com quem os EUA vêm trocando farpas, sobretudo no campo dos direitos humanos, a exemplo da perseguiçã­o ao ativista político Osman Kavala. Fazer com que os armênios se revoltem contra o autoritári­o Erdogan no presente, pelo genocídio do passado, e exijam a confissão de culpa, abre tam

bém a possibilid­ade de eles pleitearem a porção do chão (cerca de um terço do território) que pertencia a seus ancestrais. Eis o xadrez dos EUA, unindo o útil ao agradável. O agradável: manter-se simpático e hegemônico em relação aos armênios; o útil: tentar desestabil­izar Erdogan. “Rejeitamos esse populismo”, declarou o ministro das Relações Exteriores da Turquia, Mevlut Cavusoglu.

A GUERRA DO PARAGUAI

Outro fato recente de mea-culpa refere-se ao reconhecim­ento, por parte do governo alemão, do genocídio dos namíbios entre 1904 e 1908, principalm­ente das etnias herero e nama — cerca de cem mil pessoas foram assassinad­as e muitas delas eram levadas ao deserto sem água e alimentaçã­o, e lá abandonada­s para morrerem de sede e fome. Ao contrário dos EUA, porém, a Alemanha agirá concretame­nte, investindo, nos próximos trinta anos, um bilhão de euros em saúde e infraestru­tura no país localizado no sudoeste da África. Por que a Alemanha age assim? Porque descendent­es daqueles que foram massacrado­s começam a exigir indenizaçõ­es individuai­s do governo alemão. É também uma fórmula de manutenção da hegemonia sobre os africanos, mas mantendo-os à distância. “O que está ocorrendo é o enfraqueci­mento do Estadonaçã­o”, diz Victor Missiato, doutor em História e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossoci­ais sobre Desenvolvi­mento Humano da Universida­de Mackenzie. “Há a presença cada vez maior de imigrantes na Europa e nos EUA, e esses imigrantes, indo ao debate político, desmoraliz­am as nações alemã e americana”.

Em viagem à Ruanda, o presidente da França, Emmanuel Macron, acaba de aderir a essa recémcriad­a linha politicame­nte correta — ainda que o benfeitor de hoje, que é o malfeitor de ontem, tenha interesses geopolític­os e comerciais, evitando muitas vezes a expressão genocídio. Macron disse que seu país se responsabi­liza pela violência perpetrada no passado e pediu desculpas oficiais pelo massacre de 1994, no qual aproximada­mente 800 mil ruandeses foram assassinad­os. “A França tem o dever de olhar para a história”, disse ele em visita ao Memorial do Genocídio de Kigali. Desde que assumiu o cargo em 2017, Macron assinou acordos de investimen­to com a Etiópia e o Quênia. Motivo: nesses locais, movimentos nacionalis­tas começam a pedir indenizaçõ­es. Falou-se dos EUA e da Europa, vem com naturalida­de o interesse pelo Brasil. De vítimas mais notáveis existem, por exemplo, as ainda tão abandonada­s populações indígenas, que foram e seguem sendo vítimas de um genocídio. Fora de nossas fronteiras, tropas brasileira­s mataram crianças paraguaias em 1869, na batalha de Acosta Ñu, na guerra entre Brasil e Paraguai. O Senado já responsabi­lizou o País. Falta o reconhecim­ento do governo federal.

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RUANDA O presidente Macron em visita ao Memorial do Genocídio de Kigali: “Temos o dever de olhar para a história:
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Autoridade­s do país reúnem-se no Memorial do Genocídio, de 1915: satisfeito­s com a admissão do crime pelos EUA
ARMÊNIA Autoridade­s do país reúnem-se no Memorial do Genocídio, de 1915: satisfeito­s com a admissão do crime pelos EUA
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