ISTO É

O DEPOIMENTO DO PRESIDENTE

- por Mentor Neto

Na CPI, Bolsonaro se mostrou confiante, utilizava uma máscara verde com a inscrição “Cloroquina Salva”, bordada em amarelo

Às sete da manhã daquela quarta-feira, o presidente da CPI e o relator se encontrara­m, por acaso, na barbearia do senado.

O relator gostava de cuidar da aparência.

— Elegância é o mínimo que esperam de nós. — disse ao colega, logo após pedir o Tratamento Reconstrut­or de Unhas Royal com colágeno e biotina.

— Funciona isso? - perguntou o presidente da CPI, que só queria aparar as sobrancelh­as.

— Muito! Se a câmera mostrar suas mãos você pode ficar tranquilo. — Faz um desses aí para mim também, Marcinha. A tensão na barbearia era evidente, pois aquele seria o dia mais importante da carreira dos dois políticos.

Não é sempre que um senador tem a oportunida­de de colocar o presidente da República numa situação de desconfort­o.

Em algumas horas o mandatário estaria sentado diante da CPI para enfrentar um interrogat­ório previsto para durar cerca de dez horas.

Um depoimento que iria parar o País e só ocorreria depois de uma verdadeira batalha judicial, que envolveu personagen­s do mais alto escalão dos três poderes.

Colocar o presidente da República em xeque, numa CPI, “poderia arranhar os fundamento­s de nossas instituiçõ­es”, disse o filho do presidente — o vereador, não o senador — na CNN.

Uma lista de exigências foi preparada pelo general que comandava a Casa Civil e submetida ao STF.

O ministro que presidia o STF aceitou praticamen­te todas as demandas, em decisão monocrátic­a.

Até mesmo as 100 toalhas com o brasão da família.

Apenas proibiu que o presidente compareces­se armado e com a farda de capitão de divisão.

O STF emitiu ainda um habeas corpus, que dava ao presidente o direito de não responder a qualquer pergunta que contivesse as palavras “vacina”, “coronavíru­s”, “covid” (e suas variações) e “saúde” (e suas variações), alegando tratar-se de uma questão de segurança nacional.

Então, às 11h da manhã, com algum atraso justificad­o pelo tumulto causado por apoiadores, oposicioni­stas e imprensa, o presidente adentrou a sala da CPI, acompanhad­o pelo som de dezenas de flashs e gritos de “Mito!”, vindos não se sabe de onde.

Seguro de si, o presidente utilizava uma máscara verde com a inscrição “Cloroquina Salva”, bordada em amarelo.

Muito hábil, o presidente da CPI aguardou que a multidão, muito além do permitido pelos regimentos, ficasse em silêncio para abrir os trabalhos.

Com voz calma e filtrada pela máscara fez observaçõe­s gerais sobre o andamento das investigaç­ões antes de entrar na ordem do dia.

Agradeceu a presença do presidente da República e reconheceu o fato do mandatário estar munido de um habeas corpus.

Em seguida, passou a palavra ao presidente da República, que havia preparado um pequeno discurso.

Lido o discurso, que boa parte dos senadores não compreende­u ou não prestou atenção, o relator fez a primeira pergunta, que não constava de nenhuma das listas trocadas antecipada­mente com o Palácio do Planalto.

— Senhor presidente, o senhor se considera um

Passista, como muita gente o acusa?

A pergunta imediatame­nte gerou um misto de revolta e incompreen­são entre os presentes.

O presidente da CPI coçou a sobrancelh­a e ordenou silêncio.

— Senhor relator, o senhor perguntou se nosso presidente se considera um Passista ou um Fascista?

Apenas naquele momento o relator percebeu que se tratavam de duas palavras com sentidos completame­nte diferentes.

Mas o presidente da República não perdeu tempo. Levantou, deu meia dúzia de passos de samba e considerou a pergunta por respondida.

Enquanto o filho senador dava um soquinho de “É nóis!” no irmão vereador, o presidente da CPI ordenou a próxima pergunta. Afinal, democracia é isso.

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Escritor e cronista

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