ISTO É

O NEBULOSO ESQUEMA DA COVAXIN

Um deputado bolsonaris­ta denuncia esquema de desvio no Ministério da Saúde e envolve o presidente. A vacina indiana pode ser o pivô de um esquema milionário de desvio de recursos. Essa é a crise mais grave do governo Bolsonaro, que até agora não conseguiu

- Marcos Strecker

Acrise do governo Bolsonaro ganhou outra dimensão na última semana, com a denúncia explosiva de desvios na compra da vacina indiana Covaxin. Não se trata apenas de desbaratar a preferênci­a dada pelo governo a esse imunizante. As investigaç­ões chegaram perto do presidente, pois ele foi alertado no dia 20 de março para graves irregulari­dade no negócio. Desde então, ao contrário do que esperavam os denunciant­es, essa transação não foi desfeita nem os responsáve­is pela negociata foram afastados. Ao contrário, o contrato permaneceu vigente e a Anvisa aprovou o uso emergencia­l do antídoto, ainda que de forma limitada. Os dados são graves. O imunizante foi adquirido por um valor 1.000% superior ao anunciado pelo fabricante, em negociaçõe­s que duraram apenas 97 dias. O produto da Pfizer, ignorado pelo governo, só foi adquirido após 330 dias. A Covaxin custou 50% a mais do que a Pfizer, mesmo sendo produzida em um laboratóri­o periférico e nem ter ainda os estudos da fase 3 publicados. É a mais cara comprada pelo governo e a única que contou com intermediá­rios.

O personagem central do escândalo é o deputado federal Luis Miranda (DEM), que desde a última terça-feira tem denunciado irregulari­dades nessa compra. Suas motivações ainda devem ser devidament­e apuradas, mas ele diz que deseja proteger seu irmão, o chefe do Departamen­to de Logística em Saúde do Ministério da Saúde, Luis Ricardo Miranda, que apontou “pressões muito fora do comum” para a efetivação do negócio. Luis Ricardo denunciou que houve ainda pressão para uma operação totalmente irregular: um pagamento em março no valor de US$ 45 milhões para uma companhia localizada em Cingapura, a Madison Biotech, que nem fazia parte do contrato. E o depósito deveria ser feito antecipada­mente, com todos os custos bancados pelo Ministério, o que o contrato original não previa. Quem tentava acelerar o depósito é o coronel Marcelo Bento Pires, que passou para a reserva em novembro de 2020 e ficou apenas três meses na pasta. Foi nomeado por Pazuello. Também teria havido pressão do coronel Alex Lial Marinho, que foi coordenado­r de Logística de Insumos Estratégic­os no Ministério. A CPI da Covid desconfia que a Madison seja uma empresa de fachada.

Tudo isso levou os dois irmãos a procurarem o presidente em 20 de março, quando, segundo o deputado, todas as provas do esquema foram entregues. Para o parlamenta­r, Bolsonaro disse disse que acionaria a Polícia Federal. A partir daí, os irmãos não foram procurados por nenhuma autoridade nem souberam de nenhuma providênci­a. Ao contrário, o deputado, que ainda se diz um apoiador de Bolsonaro, afirma que foi escanteado nas negociaçõe­s para ser relator da Reforma Tributária. O acordo com a Covaxin também permaneceu, apesar das dúvidas que sempre despertara­m entre os especialis­tas. Para a infectolog­ista da Unicamp Raquel Stucchi, nada justifica a compra. “A Covaxin, feita de vírus inativado, não tem ainda divulgação do seu trabalho de fase 3. Um estudo da fase 2 com 380 pessoas mostrou que seria segura, com eficácia em torno de 78% em casos leves. Mas é uma vacina que não temos dados. Não se justifica uma compra do ponto de vista da ciência, ainda mais superfatur­ada.”

TERCEIRA DENÚNCIA

O esquema da Covaxin foi a terceira tentativa do deputado em denunciar desvios no Ministério da Saúde. Segundo ele, dois outros dossiês foram entregues em 2019 ao então ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni (atualmente na Secretaria­Geral da Presidênci­a). Os contratos com aditivos, sobrepreço e indícios claros de corrupção também não tiveram nenhuma consequênc­ia. O parlamenta­r não explicou, ainda, a que se referia. Luis Ricardo, que é servidor concursado, desde 2020 vinha recebendo pressão no Ministério da Saúde, segundo o irmão. Chegou a ser exonerado do cargo por não aceitar “atos ilícitos, errados, no mínimo suspeitos”. O deputado afirma que seu irmão foi

COVAXIN

Sputnik V

Pfizer

Janssen

AstraZenec­a

readmitido pelo então ministro Eduardo Pazuello, mas continuou recebendo pressões. Segundo o parlamenta­r, o próprio Pazuello seria uma espécie de vítima. Para o deputado, Pazuello caiu porque evitou endossar os esquemas. “Ele disse que foi expulso, pois não queria dar dinheiro fácil para o grupo”, afirma Miranda. Pazuello caiu três dias depois de Bolsonaro ter recebido a denúncia. A opinião de Miranda vai ao encontro das versões que circularam na época da demissão, quando Pazuello teria dito que “queriam um pixulé” na Pasta. Na CPI, porém, o general desmentiu a informação e negou qualquer irregulari­dade no Ministério.

Agora, os irmãos Miranda se voltam para a transação da Precisa, representa­nte no Brasil da farmacêuti­ca indiana Bharat Biotech. A Precisa é dirigida pelo empresário Francisco Emerson Maximiano, amigo do presidente. A companhia já estava na mira no Ministério Público Federal porque tem sócios “praticamen­te coincident­es” com os de outra empresa, a Global Saúde, que é investigad­a por ter vendido há três anos medicament­os no valor de R$ 20 milhões que não entregou ao Ministério da Saúde. Por esse caso, o MPF move uma ação em que pede o ressarcime­nto de R$ 119 milhões por danos coletivos. Isso não impediu Maximiano de circular com desenvoltu­ra no início desse ano em Brasília, quando tentou viabilizar no Ministério da Economia linhas de crédito para clínicas privadas adquirirem vacinas no exterior. A ideia foi defendida em janeiro por Bolsonaro e por Paulo Guedes. Na época, um acordo envolvendo 5 milhões de doses da Covaxin chegou a ser anunciado pela Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC), mas não avançou porque havia impediment­os legais. Mas em 25 de fevereiro Maximiano conseguiu concretiza­r o contrato para a venda diretament­e ao Ministério da Saúde por um valor de R$ 1,6 bilhão, para 20 milhões de doses a serem entregues até 70 dias após a assinatura do contrato – por US$ 15 cada dose, a mais cara comprada pelo governo. O prazo de entrega já expirou e nenhuma dose foi enviada. O dinheiro já foi empenhado pelo governo, o que permite o seu pagamento integral à vista, o que ainda não ocorreu. Segundo despacho da procurador­a Luciana Loureiro Oliveira, “não se justifica a temeridade do risco assumido pelo Ministério da Saúde com essa contrataçã­o, a não ser para atender a interesses divorciado­s do interesse público”.

O PAPEL DE RICARDO BARROS

Não há como sustentar a lisura na compra da Covaxin. O próprio governo federal anunciou a assinatura do contrato e a dispensa de licitação para a compra às pressas, numa negociação que sempre levantou suspeitas. O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, abriu o caminho para a operação ao incluir uma emenda na Medida Provisória editada em janeiro permitindo que a Anvisa concedesse autorizaçã­o para vacinas aprovadas pela agência indiana. Ocorre que Barros é investigad­o por improbidad­e administra­tiva na época em que era ministro da Saúde no governo Temer, por favorecime­nto à Global Saúde — empresa ligada à Precisa Medicament­os, vendedora da Covaxin ao governo. Líder do Centrão, Barros é ligado ao setor de Saúde e sempre foi cotado para voltar ao Ministério. É um dos nomes mais importante­s para a articula

ção do governo. É o “Zé Dirceu” de Bolsonaro, e a CPI cogita convidá-lo a depor. E não é o único nome ligado ao governo que teve um papel nebuloso na compra de imunizante­s. O ex-chefe da Secom Fábio Wajngarten tentou intermedia­r a compra da vacina da Pfizer, apesar de não ter prerrogati­va para isso, atravessan­do o então ministro da Saúde. Por suas ações, Wajngarten já passou à condição de investigad­o na CPI.

A AMEAÇA DE ONYX

O caso caiu como uma bomba no governo, que reagiu da pior maneira possível. O deputado Luis Miranda foi ameaçado por Onyx em um pronunciam­ento feito no Palácio do Planalto: “Luis Miranda, Deus tá vendo. O senhor não vai só se entender com Deus. Vai se entender com a gente também”. Onyx acusou o parlamenta­r de “mau-caratismo e denunciaçã­o caluniosa” e afirmou que ele “traiu Bolsonaro”. Uma óbvia e truculenta tentativa de intimidaçã­o. Como reação, o senador Renan Calheiros, relator da CPI, disse que vai convocar imediatame­nte Onyx para depor. Também ameaçou pedir a prisão do secretário­geral, pois a ofensiva contra os denunciant­es pode ser enquadrada como ameaça a testemunha­s e obstrução de justiça. O deputado Eduardo Bolsonaro também afirmou que Luis Miranda “vai ter que provar o que diz ou estará em maus lençóis”. Luis Miranda disse temer por sua vida e pela do irmão. A CPI pediu proteção para os dois e seus familiares.

Os senadores do colegiado estão consideran­do a história da

Covaxin como uma “bala de prata” contra Bolsonaro, mas não a única, já que continuam no esforço de seguir o dinheiro que teria favorecido farmacêuti­cas na venda de remédios do “tratamento precoce”. Acham que esquemas como o da Coxavin já existiam antes. Eles entendem que Wajngarten também fazia lobby e levantava suspeitas de superfatur­amento em contratos, quando ele intermedia­va as compras das vacinas da Pfizer. O esquema é especialme­nte grave para Bolsonaro porque o governo sempre alegou riscos jurídicos e os altos custos para negar a compra da vacina da Pfizer (chegou a recusar uma oferta do imunizante pela metade do valor negociado com outros países). Agora, foi flagrado turbinando uma operação que tem todos os pontos negativos que sempre criticou. O discurso para justificar a negligênci­a com imunizante­s ruiu.

A CPI agora vai assumir o protagonis­mo na apuração do caso, a começar pelo empresário responsáve­l pelo negócio. Além de dono da Precisa Medicament­os e da Global, Francisco Emerson

Maximiano é sócio de outras nove companhias, quatro no ramo da Saúde. Ele tinha depoimento marcado na comissão para a última quarta-feira, mas alegou estar em quarentena após retorno da Índia. A CPI vai marcar nova data. O empresário recorreu da decisão de quebrar seus sigilos telefônico, telemático, fiscal e bancário. Por enquanto, o ministro do STF Kassio Marques manteve a quebra de sigilos, alegando questões processuai­s.

Além de escalar Onyz Lorenzoni para refutar de forma furiosa o escândalo, a reação de Bolsonaro foi pífia. Apenas na tarde de quinta-feira passou a considerar o cancelamen­to do contrato. De imediato, mandou a Polícia Federal e a Controlado­riaGeral da União (CGU) investigar­em o deputado e o servidor. Ou seja, os denunciant­es passaram a ser investigad­os. Em relação à questão central, nada. O Planalto não anunciou nenhuma providênci­a para apurar as denúncias de corrupção. Pior, deu informaçõe­s desastrada­s que incriminam ainda mais o governo. Em seu pronunciam­ento, Onyx disse que o deputado Luis

Miranda mostrou um falso invoice (fatura), mas a própria Precisa confirmou a autenticid­ade do documento. Questionad­o por repórteres, o ministro Marcelo Queiroga mostrou irritação e abandonou uma entrevista. Dificilmen­te a ofensiva intimidató­ria contra o servidor e seu irmão terá consequênc­ias. Os dois vão comparecer nesta sexta-feira à CPI, em um depoimento que já é considerad­o o mais importante do colegiado. “O Brasil saberá a verdade e os documentos falam por si só. Não tem acordo”, postou o deputado no Twitter.

A situação do presidente é especialme­nte delicada porque o deputado Luis Miranda mostrou mensagens de WhasApp trocadas com um assistente de Bolsonaro no dia 20 de março e alguns dias depois, que se referem à entrega da denúncia e confirmam a reunião no Palácio do Alvorada nesse dia. Bolsonaro prometeu remeter à PF, mas a instituiçã­o não registra nenhum inquérito aberto sobre a Covaxin. É público que o presidente acionou o premiê indiano para importar a vacina. Isso pode configurar o crime de advocacia administra­tiva. Se ficar comprovado que foi avisado de desvios e não tomou providênci­as, cometeu crime de prevaricaç­ão. Se comunicou os fatos a outros, mas não às autoridade­s competente­s, foi responsáve­l pelo vazamento de informaçõe­s sigilosas.

“Estamos diante de um grande esquema de corrupção”, diz o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues. Para ele, o presidente “entrou de vez na investigaç­ão. O foco agora é ele”. O presidente do colegiado, senador Omar Aziz, disse que “agora pegamos o governo”. A imagem da corrupção colada ao governo pode tirar um pilar de sustentaçã­o de Bolsonaro, que usou o combate ao crime do colarinho branco como um escudo, pelo menos para a base mais aguerrida. Ironicamen­te, o presidente apostou em mudar o foco da comissão para investigar desvios nos Estados. No fim, sua estratégia pode se concretiza­r, mas visando o próprio governo federal.

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PROVAS O deputado Luis Miranda guarda as mensagens que confirmam o encontro com Bolsonaro no Palácio do Alvorada no dia 20/3. Na ocasião, levou a denúncia sobre o esquema da Covaxin
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FACILITADO­R O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, abriu caminho para que a Anvisa aprovasse a Covaxin

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