ISTO É

PRENDER SIM, CANCELAR JAMAIS

- Por Mentor Neto

Sempre fomos muito bons para julgar os outros. Muito antes de inventarem o cancelamen­to, já éramos ótimos para condenar quem não vivesse de acordo com nossas normas.

Muito antes do advento das redes sociais, já éramos exímios juízes do próximo.

Quando eu tinha 8 anos, no século passado, lembro de uma senhora que morava no nosso prédio. A “desquitada do 41”.

A mulher perdeu a própria identidade, o próprio nome, para virar uma zinha qualquer, numa época em que casamento tinha que ser para sempre. Se você fosse mulher, claro.

Na História sempre foi assim.

É só pensar na quantidade de figuras que foram mortas em nome de uma verdade que não era a delas.

Bruxas queimadas em fogueiras, aos milhares. Isso sim um belo cancelamen­to, muito mais sério do que esse de hoje, onde o infeliz - no máximo - perde seguidores que ficam felizes por terem feito justiça com os próprios dedos.

Sócrates, o filósofo também foi cancelado. E Galileu. E Tiradentes.

Mas esses a gente não dá muita bola, porque não seguimos no Insta.

Quanto mais importante, ou mais alto na pirâmide da fama, melhor, porque a queda é mais espetacula­r.

Nessa hora, nos transforma­mos num único organismo. O sujeito que cancela é indetermin­ado.

No momento da execução da pena, nos transforma­mos numa enorme bactéria pronta para fagocitar o contravent­or.

As consequênc­ias, muitos podem dizer, são mínimas. Que importa se a influencer de maquiagem perdeu 132 mil seguidores porque falou bobagem?

O problema é que a Cultura do Cancelamen­to, como se convencion­ou chamar esse vício moderno, deu uma nova dimensão à Justiça offline.

Tudo que acontece fora das redes não é mais tão importante.

Aos poucos, a Justiça dos homens está passando a ser a Justiça das redes.

E o nosso comportame­nto fora delas é menos importante.

Nossas pequenas contravenç­ões não são mais tão graves, já que no mundo real não podemos ser cancelados, só presos. E na prisão a gente arruma WiFi.

Outro dia, por exemplo, precisei dos serviços do seu Manoel, um pintor de primeira — se quiser, mando o celular. A certa altura, pergunto:

— Seu Manoel, o senhor já tem o orçamento da pintura da parede do banheiro?

— Opa! O senhor trabalha com nota?

— Não seu Manoel, eu trabalho com publicidad­e. — Não...não…eu quero saber se o senhor vai querer nota fiscal.

— Ah, eu vou querer sim, seu Manoel, sabe como é, né?

É a lei.

— Então, é que eu não trabalho com nota.

— Eu sei seu Manoel. O senhor é pintor. Trabalha com pintura.

— Não…é que eu não dou Nota.

Aos poucos, as redes sociais criam uma constituiç­ão paralela

Isso o Instagram não mostra.

O dia a dia das nossas pequenas contravenç­ões.

Nossa hipocrisia diária, julgando o sujeito que falou sei-lá-o-que, esconde nosso falso moralismo.

O mundo virou uma Escola de Base por dia.

Um grande influencia­dor foi acusado de traficar drogas. Antes de contratar um advogado, rapidament­e recorreu as redes sociais, temendo perder seu imenso contingent­e de seguidores.

Se vai em cana ou não, é menos importante.

A gente reclama do presidente, dos deputados, dos tribunais. Mas não são só os políticos.

A Constituiç­ão, aquela do Congresso, aos poucos vai dando lugar a essa outra, que é individual, que críamos todos os dias. Na Constituiç­ão do seu Manuel não se trabalha com nota. Na do João não se paga imposto.

Na do deputado Fulano é normal levar unzinho.

Porque, medo mesmo, a gente tem de ser exposto. A vergonha das redes é a pior punição.

Então vale tudo.

E se o @ do sujeito não for cancelado é vida que segue.

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Escritor e cronista

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