Assim caminha a humanidade
Não tenho gosto. Na boca uma total neutralidade. As folhas caem e não é inverno. Não é. Dentro de mim uma casa grande e arejada, diferentes pisos e texturas. Ladrilho, cimento, areia, mato. Na pedra fria, o toque, na madeira morna, o aconhego, nos santos da prateleira, a fé. Pela janela um mundo calmo, pacificado. Passáros e outros bichos. O tempo sendo levado pelo labor das horas. Uma existência sem estranhamento. No quarto as cores, o tecido tépido, a maciez da cama. O rosário, a flor, o retrato. Na cozinha as ervas, as frutas do pomar, o limão amarelado, alecrim, panelas de barro e cobre, o fogo dançando debaixo da comida, a caneca de chá, o vinho. Isso tudo é o que trago dentro. Uma ideia de vida. Do lado de fora, as grades, a janela pequena, o piso deformado, a hidráulica barulhenta, os cantos escuros de um lugar que agoniza. Assim como agonizam os seres que agora dormem nesse prédio, fermentados, dormentes, dementes. Em breve acordarão felizes e estúpidos. Buscarão uma rápida compensação para o gosto amargo na boca, para o perigo da consciência que se aproxima sorrateira pelos parapeitos das janelas enferrujadas, que se infiltra pela umidade da área de serviço, a condição humana chegando vagarosa, opaca como um espelho velho, um reflexo indesejável. É preciso ser rápido. Ligar a TV, aumentar o volume da música, acionar os cliques da abertura das latinhas da cerveja, é preciso sair de si e ir para outro lugar. Porque ficar perto do que somos é muito perigoso. Um filme talvez, um sexo coreografado, um campeonato de futebol, uma ida ao clube, uma passada nas lojas do centro, um almoço na casa de um amigo onde outros cliques serão ouvidos, outros absurdos serão inventados nessa alegria urgente de domingo. No final do dia voltarão todos para o mesmo prédio, para fermentarem na mesma caixa, entorpecidos cada um ao seu modo; uma banhada por palavras de fé, outro pela cachaça, outro ainda pelo cigarro e seus aditivos. Voltarão imberbes de si, distanciados daquela coisa que vibra discreta no peito, do chamado, do espelho. Dormirão alheios, acordarão alheios. Seguirão alheios. Estar à margem do grande precipício é imprescindível. Na semana a vida se encarregará de trazer espanto e ressentimento, uma porcentagem mínima de camaradagem porque é preciso morrer aos poucos, o desespero dispersado em frascos pequenos, à conta gotas. A raiva do chefe, a amargura do colega, o gol perdido, o romance que não vingou, o aumento de 3% no salário, uma TV nova paga em prestações, porque é preciso volume e distração na casa, consagrar o altar dos bobos, hipnotizar-se na lareira dos estúpidos, exercitar a grande expectativa, a liturgia demente de cada dia. Segunda, terça, quinta. Na sexta a euforia, despressurização. No sábado se comemora, no domingo se foge. E tudo se repetirá como numa dança. Mas agora, por agora, todos dormem. É cedo e eu escrevo. Na caixa de cimento, sonhos de ferro circulam, o ar rarafeito de seres ainda viventes. Ainda.