Jornal da Cidade

A doçura do caos

- * Atriz e escritora

ÉBeatriz Aquino * | beapoetisa@gmail.com

sábado, faz sol e eu ando. Na boca nenhum medo grande. Só medo de dar topada numa pedra. muito feio mulher com a unha do dedão rachado, com esmalte por cima, muito feio. Desço pro centro, dia de feira, o verdureiro grita, o homem do queijo grita, a senhora que vende pessêgo grita. Todo mundo grita e é uma alegria. Viver é esticar o passo. O resto a vida se encarrega. Com topada ou não, a gente vive. Vou na loja de suco, quero caldo de cana. A loja de suco não vende caldo de cana, a mulher na minha frente da fila do caixa enrosca sua sacola de plástico no ziper da bolsa da amiga, a amiga derruba o sanduíche, o sanduíche vai direto pra boca do gato, o cachorro inveja a agilidade do gato, o mendigo dá uma pedrada no gato, o mendigo rouba o sanduíche do gato, a pomba rouba o sanduíche do mendigo, a pomba é eletrocuta­da no fio de alta tensão, agora ela é comida pra outros bichos. Ninguém come o sanduíche. O mendigo lamenta, o cachorro lamenta, a amiga lamenta, não a pomba, mas o sanduíche. O gato não lamenta nada porque ele não tem tempo pra isso. As duas amigas saem rindo da loja de sucos. Viver é esticar o passo. O homem do caixa me aponta a barraca de caldo de cana, compro o caldo de cana, espero o caldo de cana, não tem limão pro caldo de cana, a moça sugere maracujá no caldo de cana. Aceito. Não gosto de maracujá no caldo de cana. Compro peixe, dizem que é bom pros neurônios. Esqueço a verdura. Até que maracujá é bom no caldo de cana. Dizem que maracujá acalma. Mas nada me acalma. Sexo me acalma. Mas sexo não tem. Será que posso sugerir a inclusão de sexo na lista da cesta básica? Subo a rua, muita gente na calçada. Tem vinil, tem rádio, tem secador de cabelo quebrado, tem a Roberta Miranda na capa, tem uma rebimboca novinha em folha, pronta pra uso, diz o homem. Muita gente na rua. Pouco verde. Há duas semanas aquilo parecia um canteiro de alface. Alface com raiva faz mal ao estomâgo. Alface armado é estranho. Alface armado é rídiculo. Que bom que acabou o alface. Agora dá pra comer outras cores. A rua tem cheiro de rua, a rua tem cheiro de tudo. O suco vai acabando e vou ficando desapontad­a. Como gosto de caldo de cana! Em casa, preparo às pressas o peixe. “Cuidado com a espinha do peixe!" Eu digo. Morrer engasgado é de lascar. Quero escrever esse texto. Uma hora antes eu tava na frente do computador e nada. É só ir pra rua e os dedos coçam. Gente é uma coisa cheia de

pólen, o mundo é um cio só. O vizinho poe uma música boa. Não vou admitir que a música é boa porque não gosto do vizinho. Está acertado de que o vizinho é mau e eu sou boa. Escrever sobre vizinho é muito chato. Eu nem conheço o vizinho. Guardo o canudo do caldo de cana pra tomar suco de uva. Não quero manchar os dentes. Dentista custa caro. Tudo custa caro. Um sábado não custa caro. Lembro do caldo de cana, eu na feira, o sol sobre a cabeça e o copo gelado na mão. Toda criança é livre. Todo sábado é dia de feira. É bom ser criança. Na feira tem melancia, pessêgo, castanha, peixe. Só não tem alface. Os alfaces foram embora. Montaram uma seita onde tomam chá alucinogên­o e conspiram o domínio do mundo. Um mundo inteiro verde e crente. Que medo desse mundo. Prefiro o sabádo de feira. E caldo de cana. Que raios de escritora sou eu que escreve sobre caldo de cana? Não vou ganhar prêmio. Jabuti aqui só no quintal. Aliás, ainda pode criar jabuti no quintal? Eu não tenho quintal. Esse conto não vai render nada. Me concentro em temperar o peixe e gritar com o crápula do vizinho. Não gosto da música do vizinho. A mulher na minha frente da fila do caixa enrosca a sacola de plástico no ziper da bolsa da amiga, a amiga derruba o sanduíche, o gato, o cachorro, o mendigo e a pomba estão nessa folha e não sabem. Tem um monte de gente que é e não sabe. Viver é só esticar o passo. Eu adoro caldo de cana.

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