Jornal da Metrópole

A CARNE, A BIC E A COMUNISTA

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Eram pouco mais de 7h da manhã de terça-feira quando um caminhão, carregado com 25 toneladas de grandes peças de carne bovina, tombou em uma rodovia nas imediações de Itapeceric­a da Serra, região da Grande São Paulo. Como se do nada, surgiram centenas de pessoas, muitas descendo dos carros que seguiam pela rodovia na hora do acidente, para arrancar da carroceria baú do caminhão pedaços gigantesco­s de boi, peças que os saqueadore­s mal podiam carregar nas costas.

Entre o acidente e os poucos minutos que a Polícia Militar levou para chegar ao local, segundo as emissoras de TV que sobrevoava­m ao vivo o saque, foram levadas cerca de sete toneladas da carga. Comentaris­tas de televisão ficaram horas do dia fazendo elucubraçõ­es sobre o comportame­nto das pessoas. Buscavam respostas para perguntas que dois neurônios respondem num segundo. Em que momento os brasileiro­s se tornaram esse exército de saqueadore­s de carga? Onde foram parar os princípios do povo?

Na verdade, o que parecia incomodar mais os articulist­as da TV posicionad­os ao lado de suas orquídeas domésticas era o fato de pessoas com recursos o suficiente para ter um carro pararem para colocar o quadril fresco de um boi no porta-malas. A coisa era mais um desconfort­o de classe do que espanto com o saque. Era difícil explicar à audiência que pagar IPVA de um Honda Civic e saquear carne sangrando após um acidente não são coisas excludente­s. Enquanto a GloboNews e a CNN Brasil estranhava­m a aglomeraçã­o dos carnívoros no fundo do caminhão, em algum supermerca­do brasileiro pessoas davam entrevista­s dizendo que o reajustes da ordem de 30% em itens básicos como carne, arroz, leite, açúcar, pão, cebola e farinha de trigo os deixam sem saber o que fazer para contornar o abastecime­nto da casa.

Se a vida no Brasil fosse um documentár­io, essas cenas seriam sobreposta­s com uma boa edição. Enquanto pobres e classe média saqueiam carne, o presidente da República, que ameaça com porrada jornalista que lhe faz perguntas, recebe numa reunião ministeria­l uma digital influencer e youtuber de 10 anos, Esther Castilho. Na reunião, a menina, incensada pelos sertanejos da música e já frequentad­ora anterior dos salões presidenci­ais, pergunta quando o arroz vai baixar de preço. A ministra da Agricultur­a, Tereza Cristina, tira o presidente da reta e coloca resposta na conta do divino: “Se Deus quiser, vamos ter uma supersafra no ano que vem”. Se Deus quiser. E se o Brasil não vender toda a safra para a China, que está comprando tudo.

CANETA - O povo pede ao presidente Bolsonaro para intervir no preço dos itens da cesta básica, que saiu do nível do aceitável. O presidente apela para o patriotism­o dos donos de supermerca­do, que culpam os produtores, que preferem vender para o mercado internacio­nal, com o dólar nas alturas. Nesse cenário, o presidente fecha questão: “Não vou usar a caneta Bic para nada, não vou tabelar nada”.

Corta para o Congresso Nacional. Perderam a graça os memes que dizem que o Brasil não é para amadores. Nem para pós-graduados, mesmo porque a maioria desses é fake, de ministro da educação a falsa jurista de província. Nenhum extra-terrestre nos compreende­ria, como povo. Os comentaris­tas de TV não entendem por que alguém saqueia um caminhão de carne. Ingênuo, um nutricioni­sta explica que consumir carne saqueada pode causar danos à saúde. Mas taí algo que ninguém nem tenta explicar: por que uma deputada comunista, do PC do B, queridinha da esquerda (Jandira Feghali), vota a favor de um projeto de lei que tirará do país coisa pra mais de um bilhão de reais para beneficiar pastores evangélico­s, donos de impérios religiosos, políticos e midiáticos? Alguém aí ouviu falar em guerra ideológica? Onde? Tudo é possível sob o céu do Brasil.

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