Jornal do Commercio

Nada ficaria do mesmo jeito

BITCHES BREW Cinquenta anos depois de lançar seu revolucion­ário disco, Miles Davis continua sendo sinônimo de quem faz a diferença

- JOSÉ TELES teles@jc.com.br

Durante o tumultuado ano de 1968, Miles Davis andava com a cabeça a mil. A cantora Betty Mabry (que assumiu depois o sobrenome Davis), sua mulher na época, mostrara-lhe que havia uma nova onda musical no ar, enquanto ele vivia recolhido ao seu mundinho do jazz.

Betty o convenceu a trocar os ternos bem cortados por roupas menos convencion­ais, apresentou-o a músicos como Sly Stone e Jimi Hendrix. O trompetist­a, que quase sempre criou tendências, não queria seguir as de terceiros, muito menos continuar tocando para meia dúzia de aficionado­s em jazz. Passou até a renegar o termo. “Jazz”, disse em uma entrevista na época, era uma palavra criada pelos negros Pai Tomás (Uncle Tom, no original).

Esta foi a semente do álbum Bitches Brew, que está completand­o meio século (foi lançado nos EUA em 30 de março de 1970), que teve uma espécie de teste com o disco de 1969, In A Silent Way.

Como já havia acontecido, Miles Davis voltava a ser tendência. Criou uma nova sonoridade, empregando 14 músicos (incluindo Airto Moreira, em uma faixa). Com a nova música, a nova banda, ele conseguiu a antipatia de quase todos os críticos de jazz que, até então, o endeusavam. Mas atraiu a atenção da leva de críticos surgida com as proliferaç­ão de revistas dedicadas ao rock e à contracult­ura. Ele deixou de tocar para poucos, em clubes pequenos de jazz, para participar de festivais de rock para milhares de pessoas.

Miles Davis tinha o dom de escolher quem tocaria com ele. Quase todos se tornaram estrelas de brilho próprio depois que saíram de sua banda. O baixista inglês Dave Holland tinha 21 anos quando Miles Davis o viu tocando no Ronnie’s Scott, em Londres. Ron Carter, baixista que tocou alguns anos com ele, estava deixando o grupo. Ele procurava um substituto e o encontrou em Holland. O convite foi feito ali mesmo no clube. O inglês demorou a acreditar, mas dias depois estava em Nova Iorque.

Wayne Shorter, Chick Corea, Joe Zawinul, John McLaughlin, Dave Holland, Jack DeJohnette, Larry Young, Harvey Brooks, Lenny White, Jim Riley, também conhecido por Jumma Santos, Bennie Maupin e Airto Moreira (numa única faixa) foram os músicos que participar­am de Bitches Brew.

A capa é assinada por Abdul Mati Klarwein e a ousadia já começava pelo título. “Bitches” (“putas”) pode ter também um significad­o positivo, no caso, “puta músicos”, grosso modo, “Puta músicos trabalhand­o”. Brew, como verbo, tem vários sentidos, um deles é fabricar cerveja. Foi a primeira vez que a palavra “bitch” apareceu na capa de um de disco, nos EUA.

DEZ DA MANHÃ

Às 10h do dia 19 de agosto de 1969, estavam todos a postos para a primeira sessão de Bitches Brew, com o engenheiro de som Stan Tonkel e o produtor Teo Macero, que teve importânci­a primordial no álbum. Neste disco, ele está para Miles Davis como George Martin para os Beatles. Ao contrário de outros álbuns que eram criados praticamen­te no estúdio, em um único dia, Bitches Brew tem três músicas que já haviam sido testadas no palco. Uma delas, Sanctuary, de Wayne Shorter, foi gravada com outro arranjo e andamento com o último quinteto de Miles, em 1968, tendo George Benson na guitarra.

Foram três dias de gravações, num dos estúdios da Columbia, no centrão de Manhattan. Os temas pediam mais ou menos músicos. No terceiro e último dia, Miles resolveu dar a carga toda. Tocou com onze músicos, três tecladista­s, um guitarrist­a, dois baixistas, dois baterias um percussion­ista, e clarinetis­ta. O gravador registrou do primeiro ao último minuto.

O restante ficou por conta do produtor Teo Macero. Centenas de solos, intervençõ­es, foram trabalhada­s, durante cinco semanas. O tema Pharaoh’s Dance recebeu 17 edições. Sem esquecer o acréscimo de eco, delay. Macero recebeu carta branca. O que se escuta no álbum é uma grande montagem de Macero, que trabalhou com Miles durante mais de 20 anos, mas nunca recebeu os devidos créditos do músico, que não gostava nem de incluir o nome dos músicos da banda na contracapa dos discos.

Toda a zueira que permeia

Bitches Brew dura 94 minutos. Num artigo, Paul Tingen cita um comentário do músico erudito inglês Paul Buckmaster sobre Bitches Brew, ressaltand­o o formato de sonata que Macero empregou nas edições das faixas do álbum: uma exposição com dois temas, uma seção intermediá­ria, uma volta aos temas iniciais, e a coda, o final (coda é cauda em italiano).

Bitches Brew merece o clichê: um divisor de águas na música popular do século 20. Mudou o rock, o jazz, incentivou ousadias em produtores mundo afora. Cinquenta anos depois de lançado, espanta a quem o escuta pela primeira vez e até hoje divide opiniões dos que curtem jazz.

O cinquenten­ário não ganhou mais uma reedição de luxo, nem caixa recheada de CDs, com sobras, registros de shows e pendurical­hos. A edição especial de 40 anos, com quatro CDs, foi suficiente.

Uma década depois, a Columbia/Legacy relançou uma edição limitada em vinil. A única em relação a Bitches Brew. A novidade foi a liberação para streaming de um concerto em novembro de 1969, no Tivoli Koncertsal, em Copenhague, na Dinamarca. O link está no youtube.

O trompetist­a, que sempre criou tendências, não era de seguir os outros

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Miles Davis (D) ao lado d produtor Teo Macero, que teve importânci­a primordial no álbum
CAPRICHO Miles Davis (D) ao lado d produtor Teo Macero, que teve importânci­a primordial no álbum
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