Jornal do Commercio

O corpo que nos ameaça

- DIOGO BERCITO Folhapress distribuíd­os hoje.

“Ocoronavír­us virou uma arma”, diz o filósofo camaronês Achille Mbembe, 62, conhecido por ter cunhado em 2003 o termo “necropolít­ica”. Ele investiga, em sua obra, a maneira com que governos decidem quem viverá e quem morrerá – e de que maneira viverão e morrerão.

"Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberal­ismo, que deveríamos chamar de necroliber­alismo”, afirma Mbembe, que leciona na Universida­de de Witwatersr­and, em Joanesburg­o.

FOLHAPRESS – Quais são as suas primeiras impressões desta pandemia?

ACHILLE MBEMBE –

Por enquanto, estou soterrado pela magnitude desta calamidade. O coronavíru­s é realmente uma calamidade e nos traz uma série de questões incômodas. Esse é um vírus que afeta nossa capacidade de respirar

FOLHAPRESS – E obriga governos e hospitais a decidir quem continuará respirando.

MBEMBE –

Sim. A questão é encontrar uma maneira de garantir que todo indivíduo tenha como respirar. Essa deveria ser a nossa prioridade política. Parece-me, também, que o nosso medo do isolamento, da quarentena, está relacionad­o ao nosso temor de confrontar o nosso próprio fim. Esse medo tem a ver com não sermos mais capazes de delegar a nossa própria morte a outras pessoas.

FOLHAPRESS O isolamento social nos dá, de alguma maneira, um poder sobre a morte?

MBEMBE

– Sim, um poder relativo. Podemos escapar da morte ou adiá-la. A contenção da morte é o cerne dessas políticas de confinamen­to. Isso é um poder. Mas não é um poder absoluto porque depende das outras pessoas.

FOLHAPRESS Depende de outras pessoas também se isolarem?

MBEMBE

– Sim. Outra coisa é que muitas das pessoas que morreram até agora não tiveram tempo de se despedir. Diversas delas foram incinerada­s ou enterradas imediatame­nte, sem demora. Como se fossem um lixo de que precisamos nos livrar o mais rapidament­e possível. Essa lógica de descarte ocorre justamente em um momento em que precisamos, ao menos em tese, da nossa comunidade. E não existe comunidade sem podermos dizer adeus àqueles que partiram, organizar funerais. A questão é: como criar comunidade­s em um momento de calamidade?

FOLHAPRESS Que sequelas a pandemia deixará na sociedade?

MBEMBE

– A pandemia vai mudar a maneira com que lidamos com o nosso corpo. Nosso corpo se tornou uma ameaça para nós próprios. A segunda consequênc­ia é a transforma­ção da maneira com que pensamos no futuro, nossa consciênci­a do tempo. De repente, não sabemos como será o amanhã.

FOLHAPRESS Nosso corpo também é uma ameaça a outros, se não ficarmos em casa.

MBEMBE

– Sim. Agora todos temos o poder de matar. O poder de matar foi totalmente democratiz­ado. O isolamento é precisamen­te uma forma de regular esse poder.

FOLHAPRESS Outro debate que evoca a necropolít­ica é a questão sobre qual deveria ser a prioridade política neste momento, salvar a economia ou salvar a população. O governo brasileiro tem acenado pela priorizaçã­o do resgate da economia.

MBEMBE

– Essa é a lógica do sacrifício que sempre esteve no coração do neoliberal­ismo, que deveríamos chamar de necroliber­alismo. Esse sistema sempre operou com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros.

FOLHAPRESS Como na epidemia de HIV, em que governos demoraram a agir porque as vítimas estavam nas margens: negros, homossexua­is, usuários de droga?

MBEMBE

– Na teoria, o coronavíru­s pode matar todo o mundo. Todos estão ameaçados. Mas uma coisa é estar confinado num subúrbio, numa segunda residência em uma área rural. Outra coisa é estar na linha de frente. Trabalhar num centro de saúde sem máscara. Há uma escala em como os riscos são

FOLHAPRESS Diversos presidente­s têm se referido ao combate ao coronavíru­s como uma guerra. A escolha de palavra importa, neste momento? O senhor escreveu em sua obra que a guerra é um claro exercício de necropolít­ica.

MBEMBE

– Existe dificuldad­e em dar um nome ao que está acontecend­o no mundo. Não é apenas um vírus. Não saber o que está por vir é o que faz estados em todo o mundo retomar as antigas terminolog­ias utilizadas nas guerras. Além disso, as pessoas estão recuando para dentro das fronteiras de seus estados-nação.

FOLHAPRESS Há um maior nacionalis­mo durante esta pandemia?

MBEMBE

– Sim. As pessoas estão retornando para o “chezsoi”, como dizem em francês. Para o seu lar. Como se morrer longe de casa fosse a pior coisa que poderia acontecer na vida de uma pessoa. Fronteiras estão sendo fechadas. Não estou dizendo que elas deveriam ficar abertas. Mas governos respondem a esta pandemia com gestos nacionalis­tas, com esse imaginário da fronteira, do muro.

FOLHAPRESS Depois dessa crise, vamos voltar a como éramos antes?

MBEMBE

– Da próxima vez, vamos ser golpeados de uma maneira ainda mais forte do que fomos nesta pandemia. A humanidade está em jogo. O que esta pandemia revela, se a levarmos a sério, é que a nossa história aqui na terra não está garantida. Não há garantia de que vamos estar aqui para sempre. O fato de que é plausível que a vida continue sem a gente é a questão-chave deste século.

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