Jornal do Commercio

Justiça feita para Glitter e Mariah Carey

CLÁSSICO Disco lançado em 2001 é disponibil­izado nas plataforma­s

- MÁRCIO BASTOS marciobast­os.jc@gmail.com

Aimagem de um outdoor anunciando o lançamento do disco Glitter, de Mariah Carey, com as torres gêmeas do World Trade Center pegando fogo ao fundo, é um prato cheio para a semiótica. Lançado no fatídico 11 de setembro de 2001, o álbum marcou o período mais conturbado para a artista, que culminou com uma crise emocional, a rescisão de um contrato avaliado em 100 milhões de dólares e comentário­s cruéis afirmando que sua carreira estava acabada. Dezenove anos depois, o trabalho ganhou o status de cult e, após várias campanhas de seus fãs, Mariah disponibil­izou o disco ontem nas plataforma­s digitais.

A mítica em torno de Glitter

demorou para ganhar corpo. Ainda que seus fãs mais ardorosos defendesse­m o valor do álbum desde seu lançamento, o trabalho carregava uma aura de maldito, alimentada pela própria Mariah, que apesar de defender a qualidade do material em entrevista­s, se afastou dele por anos. A artista voltou a abraçá-lo em 2018, após a campanha #JusticeFor­Glitter, iniciada nas redes sociais, que levou o álbum ao topo das paradas do iTunes 17 anos após seu lançamento.

“Eu acho que esse movimento de ‘justiça para Glitter’ foi direcionad­o para mim porque eu nunca fiz performanc­es daquelas músicas já que quase acabaram com a minha vida (risos). Mas a verdade é que é pela nostalgia porque, de fato, é um ótimo álbum e hoje eu posso dizer isso. Então eu tenho que agradecer a eles (os fãs), isso é por eles, e não tenho mais que me sentir mal (sobre a má recepção), porque foi tudo resultado das circunstân­cias de quando o álbum foi lançado”, afirmou a cantora e compositor­a ao Good Morning America à época.

As circunstân­cias citadas por Mariah realmente foram a confluênci­a de uma série de fatores internos e externos. Na vida pessoal, Mariah ainda se recuperava do divórcio com o empresário Tommy Mottola, à época presidente da Sony/Columbia. Durante o relacionam­ento amoroso e profission­al, Mottola se opôs às tentativas da artista de explorar outras sonoridade­s, como o hip hop e vertentes mais dançantes do r&b, instruindo Carey a se ater à composição e interpreta­ção de canções românticas.

A artista começou a explorar mais outros gêneros a partir de Butterfly (1997) e consolidou esse processo com Rainbow (1999), em parte gravado durante o processo de divórcio. Com esses álbuns, Mariah também começou a mudar sua imagem, apresentan­do-se mais sensual e jovial. Com Rainbow, ela finalizou o contrato com a Sony e assinou um acordo avaliado em 100 milhões de dólares com a Virgin para gravar cinco discos.

Glitter, trilha sonora do filme homônimo que marcou a estreia de Mariah no cinema, foi o primeiro álbum lançado sob este contrato. Com total liberdade criativa, a artista optou por celebrar a música dos anos 1980, especialme­nte o crepúsculo da disco music, o r&b e o hip hop, dialogando, assim, com o período no qual o longametra­gem era ambientado.

Mariah, no entanto, começou a dar sinais de cansaço e perturbaçã­o emocional durante a campanha promociona­l do trabalho, o que fez com que fosse internada para tratar de uma “exaustão física e mental”. Por esse motivo, tanto o álbum, que deveria sair em agosto, quanto o filme, foram adiados para setembro.

Na semana de lançamento, Glitter atingiu o sétimo lugar na parada americana, até então a pior posição para um trabalho da artista, que foi a mulher que mais vendeu álbuns na década de 1990. O filme teve uma recepção ainda pior, com críticas duras e uma arrecadaçã­o pífia: apenas 5,3 milhões de dólares contra um orçamento de 22 milhões para ser produzido.

Diante da má recepção, a Virgin rescindiu o contrato da artista, pagando a ela uma multa de 20 milhões. A percepção do público sobre Mariah, dando-a como “acabada” foi cruel e só viria a mudar em 2005, quando ela fez um retorno triunfal com o disco The Emancipati­on of Mimi, sucesso de crítica e comercial, com mais de 10 milhões de cópias vendidas.

Para emular a sonoridade dos anos 1980 em Glitter, ela contou com colaborado­res como a dupla Jimmy Jam & Terry Lewis, que assinou a produção de cinco das 12 faixas do álbum. Jam & Lewis foram nomes seminais na música pop dos anos 1980, assinando trabalhos clássicos de Janet Jackson, Human League e S.O.S Band. É deles também a produção original de Didn’t Mean To Turn You On (1984), de Cherelle, que é regravada com excelência por Mariah em Glitter.

Outro cover irretocáve­l e que mostra a sensibilid­ade de Mariah com os gênero que ela celebra no álbum é Last Night a DJ Saved My Live (1983), originalme­nte lançada pelo grupo Indeep. Mariah celebra a cultura do hip hop com as participaç­ões dos rappers Busta Rhymes e Fabulous e do DJ Clue.

Majoritari­amente dançante, Glitter tem uma atmosfera festiva e sedutora, que transporta o ouvinte a festas reais e utópicas. Apesar de feito para as pistas, o disco não deixa de lado as baladas românticas que consagrara­m Carey como uma das maiores vocalistas de todos os tempos

Que Glitter tenha sido relançado agora, em meio a uma pandemia, parece emblemátic­o. Além de evocar, em sua sonoridade e composiçõe­s, momentos de êxtase, comunhão e alegria, pelos significad­os que o disco adquiriu ao longo das últimas duas décadas, pode também ser entendido como um símbolo de que fracasso e sucesso são conceitos relativos e, muitas vezes, injustos. Ressignifi­car as experiênci­as – e a arte – é não só possível, como necessário.

Não só o disco, mas também o filme foi soterrado por críticas

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Álbum marcou período conturbado para a artista, que culminou com uma crise emocional
DOWN Álbum marcou período conturbado para a artista, que culminou com uma crise emocional
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