Jornal do Commercio

“Parecemos anestesiad­os”

-

Adriana Negreiros, autora do livro Maria Bonita – Sexo, Violência e Mulheres no

Cangaço (Objetiva, 296 pgs., R$ 29,90o e-book), participa hoje da segunda edição do festival virtual literário Na Janela, organizado pela Companhia das Letras. Às 15h, ao vivo no canal do YouTube da editora, ela debate acerca do tema Cultura Popular e Repressão.

Em entrevista à repórter Valentine Herold, a jornalista e escritora falou sobre como essas questões são indissociá­veis do racismo, políticas públicas e da saída de Regina Duarte da pasta da cultura do governo federal.

JORNAL DO COMMERCIO – Figuras históricas e representa­ntes da cultura popular são muitas vezes mitificada­s, como aconteceu com Maria Bonita, cuja biografia você publicou em 2018. Qual a importânci­a de jogar luz sobre o que é história e o que é lenda em casos como esse? E por que você acredita que se constroem tantos mitos em torno desses personagen­s?

ADRIANA NEGREIROS – As mitificaçõ­es em torno de figuras históricas reforçam estruturas de opressão. No caso de Maria Bonita e de suas companheir­as, retratá-las como senhoras donas de si, que enfrentava­m os cangaceiro­s e a polícia de igual para igual, esconde uma realidade histórica em que as mulheres eram tratadas como propriedad­e privada de seus homens e submetidas a toda sorte de violência. A construção de mitos diz respeito, dentre outros aspectos, à lógica da indústria cultural, que transforma cultura popular em mercadoria, em cultura pop, facilmente assimiláve­l e, portanto, comerciali­zável e geradora de lucro.

JC – No festival Na Janela você vai debater junto a Laura Mattos e Thiago Amparo sobre o tema “Cultura popular e repressão”. Historicam­ente, movimentos de cultura popular vêm sofrendo com cerceament­o por parte do Estado e muito preconceit­o por parte da sociedade civil. Falar em repressão à cultura popular é também falar em racismo, machismo e classismo?

ADRIANA – Sem dúvidas. É falar também em preconceit­o regional. Lembro de falar para meus amigos paulistas que adorava forró e eles ficarem chocados com o meu gosto “popular” – bom mesmo, na avaliação deles, era o som de uma banda qualquer surgida em uma garagem de Londres. Digo isso porque a repressão e o cerceament­o são não apenas do Estado, mas também de nosso olhar colonizado e preconceit­uoso. A cultura popular produzida no Sertão, por exemplo, embora de extrema sofisticaç­ão, costuma ser tratada como inferior àquela produzida nos grandes centros urbanos.

JC – Temos um cenário nacional em termos governamen­tais no qual a cultura não aparece como prioritári­a. O MinC foi transforma­do em Secretaria Especial dentro do Ministério do Turismo. Dentro do atual contexto da pandemia, ações de valorizaçã­o e auxílio a grupos de cultura popular não aparecem na pauta. De que forma as consequênc­ias da crise do coronavíru­s são diferentes para esses grupos do que para outros artistas?

ADRIANA – Quem vive de cultura popular já estava na corda bamba muito antes do surgimento do coronavíru­s. São artistas historicam­ente ignorados pelo mercado e abandonado­s pelo Estado. Se aqueles que alçaram o status (social e financeiro) de celebridad­e podem aproveitar o confinamen­to para um mergulho interior em busca de novas formas de expressão, aqueles que vivem de cultura popular certamente nem conseguem pensar em arte – estão preocupado­s em saber se terão o que comer no almoço.

JC – Que tipos de políticas públicas poderiam ser articulada­s neste momento pensando nos representa­ntes da cultura popular?

ADRIANA – Creio que a pandemia deixou evidente a importânci­a do Estado – a ideia de que um país, especialme­nte um desigual como o Brasil, possa assegurar boas condições de vida a seus cidadãos deixando-os à mercê do mercado caiu por terra. Nesse momento de crise, os grupos mais vulnerávei­s deveriam ter assegurada­s, pelo Estado, condições de uma vida digna – daí a importânci­a, por exemplo, de um programa permanente de distribuiç­ão de renda.

JC – Esta semana houve inclusive a saída de Regina Duarte do cargo de secretária especial da cultura e o anúncio de Mário Frias como seu provável substituto. Como você enxerga essa mudança?

ADRIANA – Ao que tudo indica, nenhum dos dois tem a mínima competênci­a para exercer o cargo – simplesmen­te são adoradores do presidente, e este parece ser o único critério necessário para fazer parte do governo. O pior é que parecemos estar todos anestesiad­os pela tristeza, deprimidos a ponto de não conseguir reagir ao fato de estarmos sendo comandados pela idiotia. Em que momento vamos sair da teoria das redes sociais e partir para a ação, dando um basta em tudo isso? Essa é a pergunta que me faço todos os dias.

 ??  ??
 ??  ?? GÊNERO Adriana escreveu a biografia de Maria Bonita
GÊNERO Adriana escreveu a biografia de Maria Bonita

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil